julho 23, 2017

do querer bem & os buracos sagrados


Corpo, sexualidade, afetividade
- Palestra proferida no dia 03/09/2015, no período noturno, pela
 Profª Dra. Nancy Cardoso, transcrita pelo
 acadêmico Erick Dorff Schmitz -


                   Introdução

Para permanecermos vivos nós precisamos de energia, mas para permanecermos vivos nós precisamos gastar energia, e tudo se dá em trocas constantes de energia. Para respirar, nós trocamos o ar sujo com ar limpo, além de respirar nós precisamos comer, beber, de abrigo... São essas questões e trocas concretas como o ar, alimento, água que nós precisamos para fazer funcionar essa coisa incrível que é o nosso corpo. Nós só pensamos no nosso corpo quando ele dói, quando vem uma dor forte ou uma privação, se não, na maioria do tempo não pensamos em nosso corpo.
Essas trocas são pessoais e sociais, por isso quando eu falo corpo, estou entendendo o corpo pessoal, o corpo social e o corpo do mundo, essas três dimensões tem que estar articuladas quando falo sobre corpo e corporeidade. O meu corpo só é corpo em relação ao corpo social e em relação ao corpo do mundo. Se não houver uma relação de perguntas e respostas, de entradas e saídas do meu corpo com o corpo social, a vida não é vivida.

A relação do corpo pessoal com o corpo social

Nós fazemos o tempo todo intervenções no corpo do mundo, respirando, comendo, bebendo, etc. A minha boca precisa trazer o mundo para dentro, eu preciso comer o mundo, aproximar o mundo de mim. Crescemos no grupo social, depois escolhemos o grupo social que viveremos e esse grupo tem mecanismos de aproximar o meu corpo do corpo do mundo, esse é um aprendizado que fazemos na família, na escola, na igreja, com as pessoas que convivemos. São mecanismos para continuar vivos. Viver é basicamente isso e é tudo isso. Essa relação do corpo pessoal, com o corpo social é muito boa. E “Deus viu que era bom”.
Mas nessa relação, por exemplo, a água está lá e minha sede está aqui, por isso, na história da civilização o ser humano desenvolveu técnicas de aproximar essa água para perto do meu corpo. Essa foi uma revolução que nos deixou mal acostumados a acessar o corpo do mundo e matar a sede. Essas resoluções se dão nas formas de trabalho. É no trabalho, na tecnologia e na criatividade que os seres humanos fazem essa aproximação para responder aos desejos, as vontades e as necessidades.
O trabalho, a tecnologia, a arte, são formas que nós recebemos no grupo social e vamos vendo de que maneira pode ser melhorado e modificado. Por exemplo, a água, que foi sequestrada na garrafa, e cada vez mais as empresas detém esse recurso e lucram com isso; nós acolhemos essas tecnologias ou dizemos que é indigno. Isso é fundamental para discutir corpo.
 Precisamos falar de certas materialidades, que já estamos tão acostumados, que precisamos desacostumar, ou desconstruir algumas dessas resoluções que são repostas ao corpo pessoal, ao corpo social e ao corpo do mundo. Essas trocas do corpo pessoal e do corpo social produzem dejetos, lixos, e precisamos resolver isso também. Mas isso não está resolvido e nos acostumamos. Consumir produz energia; para viver eu preciso de ar, água, comida, roupa, limpeza, moradia; todas essas coisas são necessárias para que os corpos tenham condição de viver como gente.

Teologia e materialidade

Os corpos estão envolvidos por essa trama de relações de produzir as relações da vida material. Uma teologia que quer pensar o corpo está aí! E todas essas questões arranham os corpos das pessoas, dos idosos, das crianças, etc. e arranham de forma desigual, pois nem todos participam desse corpo social de forma igualitária. Os corpos vão definir a classe social, a raça e a participação do corpo no corpo social. Viver é relação, são os corpos que vivem, e esses corpos precisam se relacionar entre si para viver no corpo do mundo. Infelizmente, a grande maioria, dos pobres, dos negros, das mulheres, não tem acesso ao corpo do mundo. Por isso não podemos fazer uma teologia do corpo de forma universal, não existe corpo universal, existem corpos concretos, e isto exige na teologia tratar com as materialidades.
E entre as trocas materiais, as formas de estar vivo, está também o sexo. Aliás, todas essas formas de estar vivo entram pelos buracos maravilhosos do nosso corpo. O que conta no nosso corpo não são as partes densas, que são boas também, mas são os orifícios. São todos esses orifícios que nos fazem estar vivos, que estabelecem as relações do meu corpo com outro corpo, com o corpo social, com o corpo do mundo. É por essas partes abertas que a vida entra e sai, sai e entra. Essas relações com o corpo social, com o corpo do mundo e com o corpo do outros tem mediações.
A teologia esta aí para complicar, “desexplicar”, criar o estranhamento. A teologia não explica nada, os teólogos fazem confusão, polêmica. E viver no corpo social causa esse estranhamento que provém dos buracos sagrados, que vêm de Deus.


Desejos e vontades

Quando falamos de corpo temos que analisar todas essas formas de comer, de mexer, de respirar, de beber, de dormir, etc. Mas o corpo humano não é só essas necessidades, é também desejo e vontade. Na relação do corpo pessoal com o corpo do mundo há desejo e há vontade. Os animais também tem necessidades, mas eles possuem memória biológica e eles têm como resolver essas questões do corpo. O ser humano não é só memória biológica; nós também lembramos como nossos pais resolveram essas questões da vida. Os seres humanos tem também memória social, pelo fato de ver e conviver com a família e com os grupos, e ali aprender como resolver os problemas. Porém, nós podemos alterar isso e fazer diferente. A arte, o trabalho, etc. são ferramentas que o corpo pessoal tem para interagir e modificar o corpo social e a memória social. O ser humano tem memória social, e pode modificar o que aí está.
Necessidade, desejo e vontade existem para viver, para comer e para fazer sexo. A questão da sexualidade é desejo, necessidade e vontade. É descobrir como se dá a relação do meu corpo com o outro corpo. No sexo eu deixo que o outro chegue perto de mim definitivamente. Há sexo bom, e há sexo ruim. Há sexo que é obrigação, que é comércio, que é estupro. Assim como há formas sociais de resolver questões de comida, de beber, de sono, há também formas de resolver questões de sexo. É dar e receber. O sexo é uma forma de produzir energia e gastar energia, e é uma tarefa do grupo social também, pois influi na população, no grupo social, etc. O sexo serve também para resolver questões de reposição populacional, que já pode ser feita de maneira artificial, e é uma questão também para reflexão teológica.
Comida não é só necessidade, mas também vontade e desejo, então é arte. Há maneiras de se vestir, de resolver as questões da casa e de sexualidade também; há maneiras de resolver questões de grupo, mas também é vontade e desejo. E assim como nas soluções referentes à               água e à comida há formas opressivas, também no sexo acontece a mesma coisa: culturalmente as mulheres sofrem mais com arranjos matrimonias e sexuais ruins. Isso é perverso para as mulheres e para os homens. Deve haver um acordo de amor, para ter satisfação a ser partilhada, do contrário, no corpo social se pode ter formas diversificadas de escravidão e de opressão.


Deus quando veio morar definitivamente perto de nós, quis ficar definitivamente perto de nós, por isso o Verbo se fez carne. É extremamente sensual e erótico esse desejo de Deus por nós. Deus, o divino, se fez carne e de forma concreta no menino. O Natal é altamente erótico, a Páscoa é ressurreição da carne, é vida que continua. Os cultos neopentecostais e carismáticos colocam o erotismo na relação com o sagrado, mas não o colocam na relação com o corpo social e o corpo do mundo, o resto do mundo não importa. Nossa teologia é uma teologia de corpo, e a teologia da libertação entendeu isso, porém alguns teólogos se cansaram, pois não é fácil afirmar o totalmente divino no totalmente humano.

A proposta de Jesus

Nos evangelhos há muita comida e há muitos corpos doentes; há muitas andanças;  o evangelho transpira essa corporeidade. Só não há sexo nos evangelhos, nem há uma família inteira, nem mesmo José, Maria e Jesus. Há fragmentos de grupos humanos, o que expressa a realidade de opressão de sistemas políticos com suas vítimas: pessoas enlouquecidas, com fome, doentes... E daí surge a proposta de Jesus.
Recuperar as relações é urgente para Jesus, e aí entra a comida. Também a família entra aqui. Contra a família patriarcal tradicional Jesus vai propor outra família: minha mãe e meus irmãos são aqueles que fazem a vontade do Pai. A proposta de Jesus é essa família ampliada, é essa outra subjetividade, onde ninguém vai ficar com fome ou sozinho. No Reino de Deus Jesus projeta novas subjetividades e novas formas das pessoas se relacionarem consigo mesmas, com a sociedade e com o corpo do mundo.
O Evangelho de Mateus 15 dialoga diretamente com o Levítico que mostra claramente a relação do ser humano com a comida, sexo e saúde. Mas a proposta do Levítico é controlar a comida, o sexo e a saúde a partir do altar. 

Em resposta ao Levítico, Jesus nos evangelhos conversa com os corpos pessoais e sociais e propõe uma nova subjetividade e afetividade, contrária a do Antigo Testamento. No Levítico, a comida, o sexo e a saúde passam pelo poder do altar e do sacerdote que exercerá um controle sobre o corpo pessoal e o corpo social. O altar vai ter a função de disciplinar o corpo. O Evangelho vai refletir essas questões corporais e oferecer uma revolução social. Há uma questão cristológica muito forte na questão da comida, do sexo e da saúde. O Evangelho de Jesus recupera a máxima que também está no Levítico, dando-lhe o verdadeiro sentido: amar o próximo como a si mesmo.


Dra. Nancy Cardoso.
A Bíblia não é plana: é pluri-dimensional. A Bíblia não é linear... nem circular: é acontecimento. Qualquer leitura fundamentalista paralisa a “palavra de Deus” que precisa ser lida na Bíblia e na Vida como simultaneidade de tempo e espaço. Quando estudamos a Bíblia um texto remete a outro texto e capítulos e versículos organizam a busca tornando possível ir abrindo janelas (Windows) sem perder o rastro da pesquisa. Assim o texto bíblico pede uma agilidade de uso de ferramentas de interpretação internas e externas ao texto bíblico, o que é parte do desafio e o compromisso de uma reflexão ecumênica e popular em que a Bíblia esteja entre outros livros amados, lidos e suados.

roteiros de reinvenção da família no evangelho de Marcos




A família no evangelho de Marcos está e não está, é e não é importante. Sempre presente, mas sem definir o principal das relações que movimentam o Evangelho.
Vamos apontar alguns textos e fazer a pergunta por esta presença ausente: de que maneira as relações familiares são apresentadas? Qual o papel/lugar dessas relações no desenvolvimento das narrativas do Evangelho?

1-      “primo” não é parente?
A primeira relação familiar já se apresenta no Evangelho de Marcos capítulo 1, vv. de 2 a 11: João Batista primo de Jesus.
Eis aí envio diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho...
O texto de Marcos não aponta para a relação de parentesco entre Jesus e João Batista. O texto de Lucas faz a referência da relação familiar entre Isabel e Maria:
                                               E Isabel, tua parenta... (Lucas 1, 36)
O que vai explicar a relação entre Jesus e João vai ser a participação na missão de Deus: João vai ser apresentado com uma moldura de profecia (Malaquias 3,1) como meu mensageiro, voz do que clama no deserto. Sem qualquer indicação de ser parte da mesma parentela, o texto caracteriza João com os elementos da vida no deserto: vestes de pelo de camelo, cinto de couro e alimentando-se de gafanhotos e mel (Marcos 1, 6). Não há nenhuma indicação de que Jesus e João compartilhassem um mesmo estilo de vida o que poderia ser caracterizado como um habitus familiar.
A mensagem de João Batista é:
Após mim vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual eu não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias das sandálias. (Marcos 1,7)
Seria possível apontar para um processo significativo de adequação e subordinação das narrativas sobre João Batista aos ciclos narrativos de Jesus. Este processo obedeceria a uma lógica cronológica – João vem primeiro – e uma lógica de qualidade da ação no projeto de Deus – João prepara, Jesus realiza; João anuncia, Jesus atualiza; João batiza com água, Jesus com o Espírito Santo; João batiza, Jesus é o batizado (Marcos 1, 8). Deste modo o texto de Marcos reconhece a importância do movimento de João Batista para a criação das condições para o movimento de Jesus. O processo de ajuste das narrativas vai ser pleno com a informação da prisão de João:
Depois de João ter sido, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus. (Marcos 1, 14)
Esta breve análise dos textos deixa ver que o vínculo familiar não é, em nenhuma hipótese, utilizado pelo Evangelho de Marcos para consolidar o ritmo inicial de sua narrativa. João e Jesus se aproximam a partir do que interessa para a apresentação da Boa Nova.
Vamos utilizar esta mesma chave de leitura para estudar outros textos do Evangelho de Marcos. Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

2-      pescadores que são irmãos? irmãos que são pescadores?

Caminhando junto ao mar da Galiléia, viu os irmãos Simão e André, que lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhe Jesus: vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homem. Então eles deixaram imediatamente as redes, e o seguiram. Pouco mais adiante, viu Tiago filho de Zebedeu, e João seu irmão, que estavam no barco consertando as redes. E logo os chamou. Deixando eles no barco a seu pai Zebedeu com os empregados, seguiram após Jesus. (Marcos 1, 16 a 20)

Roteiro de Leitura:
1-      identifique no texto as relações familiares
2-      identifique no texto as relações de trabalho
3-      identifique o cenário (lugar e coisas)
4-      como vocês caracterizariam a relação entre trabalho e família?
5-      o que vai ser deixado para trás? o que Jesus pede deles?
6-      no segundo chamado o pai Zebedeu não vai ser incluído no chamado e também vai ser deixado: o que isso significa no chamado de Jesus?
7-      no chamado para o discipulado o que é mais significativo: o fato de serem irmãos? o fato de serem pescadores? o fato de estarem dispostos a se comprometer?






3-      a sogra de Pedro é mãe de quem?

E, saindo eles da sinagoga, foram com Tiago e João, diretamente para a casa de Simão e André. A sogra de Simão achava-se acamada, com febre; e logo lhe falaram a respeito dela. Então aproximando-se, tomou-a pela mão; e a febre a deixou, passando ela a servi-los. (Marcos 1, 29 a 31)

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      quem fala sobre a febre as sogra de Simão? quem são eles que falaram?
4-      como vocês avaliam as relações entre estes personagens?
5-      qual a resposta da mulher depois do encontro com Jesus?
6-      a “casa” é um lugar só para a família?
7-      o serviço na casa é só para os familiares?






4-      discípulos: filhos de... irmãos de... (Marcos 3, 14 a 19)
Depois subiu ao monte e chamou os que ele mesmo quis, e vieram para junto dele. Então designou doze para estarem com ele e para os enviar a pregar, e a exercer a autoridade de expelir demônios. Eis os doze que designou: Simão a quem acrescentou o nome de Pedro; Tiago filho de Zebedeu e João seu irmão, aos quais deu o nome de Boanerges, que quer dizer filhos do trovão; André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o Zelote, e Judas Iscariotes, que foi também quem o traiu.

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      qual o objetivo desse texto? quais as tarefas atribuídas?
4-      que relações familiares são apresentadas? de que personagens?
5-      quem não tem referência familiar apresentada?
6-      quem tem seu nome trocado? qual seria o motivo?
7-      de Simão sabemos que é Zelote; de Judas temos a informação de que foi o traidor: o que estas informações nos dizem sobre o grupo convocado?
8-      como avaliar o papel da família na convocação do discipulado?




5-      a família de Jesus (Marcos 3, 31 a 35)
Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos, e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele, e lhe disseram: olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então ele lhes respondeu, dizendo: quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.
Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      compare com Lucas 8, 19 a 21: alguma informação diferente?
4-      como entender o chamado da família de Jesus?
5-      o que Jesus estava fazendo e com quem?
6-      como entender a resposta de Jesus?
7-      Jesus foi desrespeitoso com sua família?
8-      qual compreensão de família Jesus apresenta neste texto?





6-      não é este o filho de Maria? (Marcos 6, 1 a 6)

Tendo Jesus partido dali, foi para a sua terra e os seus discípulos o acompanharam. Chegando o sábado passou a ensinar na sinagoga; e muitos, ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: donde vêm a este estas cousas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas mãos? Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? e não vivem aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se nele. Jesus, porém, lhes disse: não há profeta sem honra senão na sua terra, entre seus parentes e na sua casa. Não pode fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos.
Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      como entender os comentários sobre Jesus? o que dizem dele?
4-      como as questões familiares são utilizadas nesses comentários?
5-      por que as pessoas se escandalizavam? com o que?
6-      como entender a resposta de Jesus?
7-      como Jesus relaciona a profecia e a honra com a “terra”, os “parentes” e “sua casa”?
8-      como entender a informação de que Jesus “não pode fazer nenhum milagre” na região de seus familiares?



7-      nenhum pai (Marcos 10, 23 a 31)
Então Jesus, olhando ao redor, disse aos seus discípulos: quão difícilmente entrarão no reino de Deus os que têm riqueza. Os discípulos estranharam estas palavras; mas Jesus insistiu em dizer-lhes: Filhos, quão difícil é (para os que confiam nas riquezas) entrar no reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus. Eles ficaram sobremodo maravilhados, dizendo entre si: então quem pode ser salvo? Jesus porém fitando neles o olhar disse: para os homens é impossível; contudo não para Deus, porque para Deus tudo é possível. Então Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. Tornou Jesus: em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho que não receba, já no presente, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos com perseguições e no mundo por vir a vida eterna.

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
                Da 1ª. parte: versículos 23 a 28
1-      identifique o assunto principal da fala de Jesus
2-      que personagens e coisas são apresentadas como ilustração?
3-      como os discípulos reagem à fala de Jesus?
4-      por que Jesus insiste no mesmo tema?
5-      qual a reação de Pedro?

Da 2ª. parte: versículos 29 a 31
1-      identifique o que precisa ser deixado de acordo com a fala de Jesus (faça uma lista num papel grande dividido em 2 partes)
2-      o que exige o “deixar”? que amor é esse?
3-      o que Jesus aponta para ser “recebido”? (anote cada item ao lado da lista já feita)
4-      o que é “deixado” que não vai ser “recebido”? como entender isso?
5-      por que este projeto implica em perseguições?

6-      que modelo de família e de sociedade aparece neste texto?

Celebração das coisas santas mundanas e humanas: as calcinhas


- liturgia para um encontro de mulheres (2014)

Aqui estamos. Chegamos até aqui trazendo nós mesmas
Nossas histórias e nossas realidades
O dia a dia e o extraordinário de nós todas
O mais cotidiano e suas relações sociais de gênero
Na leitura da Bíblia, na leitura da vida, no trabalho de base,
Aonde vamos, do que falamos, do que vestimos: somos nós



(cantar)
De braços erguidos a Deus ofertamos,
Aquilo que somos e tudo que amamos.
O que nós vestimos, compartilharemos
Por fora e por dentro não nos envergonhamos

As coisas, as pessoas, os lugares impregnadas de uso se desgastam, envelhecem e ficam sujas. As roupas, os copos e as janelas. As crianças, os idosos e os doentes. O quarto, o escritório, a estação, a praça, a rua, a igreja. De estar vivo e de estar em uso, as coisas repetidamente estão necessitadas de cuidado, limpeza, consertos. De novo e de novo, viver produz lixo, produz cansaço, produz poeira, produz manchas, restos, cheiros. Qualquer que seja a forma social de produção ela tem de ser contínua, deve repetir rotineiramente as mesmas atividades criando as condições para continuar existindo.
As casas que sempre se sujam. As camas sempre reviradas, o banheiro com cheiro ruim, a louça acumulada na pia... as roupas que nunca ficam em paz! Sempre em trânsito entre as gavetas, os corpos e o tanque ou a máquina, o varal, o ferro a gaveta, o corpo e tudo de novo. E calcinhas necessárias e escondidíssimas. Trazemos na mala. Usamos, gastamos, lavamos, secamos... e elas retornam para o uso fruto do trabalho e do cuidado.
Parte da estratégia patriarcal de dominação e violência passa pela invisibilização da vida doméstica, do corpo, das coisas humanas demais...  e nossas “calcinhas” desaparecem, o modo como organizamos e vivenciamos o vão de nossas pernas deixam de ter dignidade.
Estamos aqui e afirmamos tudo que somos e tudo que amamos, nossa humanidade de calcinhas e o trabalho de todo dias de fazer de novo a vida se restaurar.
(escutar a música da Mercedes Sosa e mostrar umas para as outras uma “calcinha”; depois pendurar as calcinhas num varal ao som da música)

Música disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0SL6BEgaFIU








Soy Pan, Soy Paz, Soy Más

Yo so-o-oy, yo so-o-oy, yo so-o-oy
Soy agua, playa, cielo, casa, planta
Soy mar, Atlántico, viento y América
Soy un montón de cosas santas
Mezcladas con cosas humanas
Como te explico cosas mundanas

Fui niño, cuna, teta, techo, manta
Más miedo, cuco, grito, llanto, raza
Después mezclaron las palabras
O se escapaban las miradas
Algo pasó no entendí nada

Vamos, decime, contame
Todo lo que a vos te está pasando ahora
Porque sino cuando está el alma sóla llora
Hay que sacarlo todo afuera, como la primavera
Nadie quiere que adentro algo se muera






Hablar mirándose a los ojos
Sacar lo que se puede afuera
Para que adentro nazcan cosas nuevas

Soy, pan, soy paz, sos más, soy el que está por acá
No quiero más de lo que me puedas dar, uuuuuuh
Hoy se te da, hoy se te quita
Igual que con la margarita igual al mar
Igual la vida, la vida, la vida, la vida

Vamos, decime, contame
Todo lo que a vos te está pasando ahora
Porque sino cuando está el alma sóla llora
Hay que sacarlo todo afuera, como la primavera
Nadie quiere que adentro algo se muera
Hablar mirándose a los ojos
Sacar lo que se puede afuera
Para que adentro nazcan cosas nuevas
Cosas nuevas, nuevas, nuevas, nuevas






Oração da calcinha: Deus das nossas vidas, Deus do cotidiano trabalho de existir, recebe nossas calcinhas como sinal do que somos, nossas andanças, nosso corpo e suas escolhas, nosso cotidiano e de tantas mulheres. Caminha conosco, lava conosco nossas calcinhas e não deixe que nenhuma de nós viva com vergonha, com medo ou com o poderio do olhar, da decisão e o preconceito do mundo patriarcal. Amém

O riso da escrava trácia e a lida com o mundo

Viver é relação.  Meu corpo em relação com o corpo do mundo e o corpo social: diversas e simultâneas relações de estar vivo. E o corpo é esta rede de poros, estas aberturas famintas e úmidas, que precisa de pedaços do mundo na forma de ar, comida, água para se refazer. E o corpo é esta rede de poros, estas aberturas famintas e úmidas na relação com outros corpos nos corpo social nas formas do trabalho e seus modos de produção, reprodução, distribuição e consumo; nas formas culturais e estéticas, nos modos de desejo e nas variadíssimas possibilidades de prazer. Ou dor. Perigo.
As relações pacificadas no discurso científico, são regulares até não serem mais, repetem repetem entram penetram expelem gotejam
A ciência descreve como se pudesse reduzir os sustos, o inesperado, tudo gira igual até ser diferente, roça, toca, atrita... reduz! mas não controla. Se controlasse, já não seria ciência.

As sementes em sua lida, se modificam, se alteram biodiversidade, pluri invenção genética. O mundo está vivo e pulsa, deseja entre liberdade e necessidade.
Este conjunto de perguntas e respostas, estes diálogos ordinários de chuva-sol-terra & semente, a comida no prato e os arranjos de junto e separado da vida em sociedade, famílias e coletivos, bandos de ser feliz. Ou tentar.

Quando a escrava trácia riu de Tales de Mileto[1]  – que observava atentamente o céu e as estrelas e, descuidado, caiu num poço de água – riu de que? Seria um riso de depreciação da investigação cósmica do filósofo? Não. Ela riu o riso das trabalhadoras vinculadas ao mundo da necessidade e todas as relações com todo o mundo habitado. “Ele – o filósofo - quería saber o que se passava no céu, mas ele não quería ver o que estaba adiante de seus próprios pés.”[2]


Quero aproveitar o riso da escrava/trabalhadora como um lugar possível para uma reflexão sob os nossos pés latinoamericanos e todo o mundo habitado.
Palavras vizinhas se atritam aqui: economia, ecologia, ecumenismo. As três compartilham o oikos: unidade básica social (casa, mas também mundo). O uso ampliado e extensivo de oikos de modo a fazer caber a “casa” e o “mundo” tem sido negligenciado. A palavra, que quer dizer as duas coisas (casa e mundo), o diz assim por fazer caber uma na outra, isto é, as medidas do mundo todo se mostram num lugar de vida habitat. O metabolismo dos espaços de viver - sem desconhecer a escala e as variações - aproxima “o mundo da casa” e “a casa do mundo” revelando as relações de relações que fazem a vida funcionar. Neste sentido o olhar sobre o oikos não pode ser tão grande que afaste a vida cotidiana dos viventes de sua compreensão. Viventes aqui são um montón de cosas santas mescladas con cosas humanas como te explico . . . cosas mundanas - da música de Mecedes Sosa.
Na imagem da escrava trácia, o mundo seu da necessidade d´água e o mundo do filósofo – o céu sobre a cabeça, condensação de estrelas – são acontecimentos simultâneos e entretecidos de uma mesma vida. O que cria ruído não é a risada da escrava, mas as tantas formas de hierarquia que se levantam entre “ela” e “ele”, a hierarquia entre o trato da vida doméstica e o trato da vida do cosmos: esta hierarquia sim a dimensão política que estrutura o “oikos” – casa e mundo: sexismo, racismo, desigualdade social.
Coisas humanas: de viver em sociedade. Coisas mundanas: de viver na vida do mundo. Tudo-tudo um “amontoado” de coisas santas, a simultaneidade de viver o corpo-meu no corpo social, corpo do mundo. Esgotadas das falas científicas e filosóficas que segmentam e hierarquizam o conhecimento do oikos, e cansadas dos modismos neo-coloniais que queriam proibir as “grandes narrativas” um pensamento crítico latino-americano têm diante de si o desafio de apurar toda a sua paixão libertadora articulando as coisas mundanas – humanas – santas como mescla vital: economia – ecologia – ecumenismo.
Nas palavras de Ivone Gebara:
“Os problemas sociais imediatos, aqueles que nossos olhos podem ver e nossos corpos sentir, são esquecidos ou tornados coisa banal. Para muitos, isso não é ecologia! A ecologia social não tem mais espaço público significativo. Aliás, não se percebe a injustiça social como um problema ecológico, ou seja, como um problema que tem a ver com a “oikia”, a nossa casa comum, origem da palavra e da ciência ecológica[3]


São assim três formas de estar no mundo e organizar a vida no mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender essas relações suas lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. Propomos três desafios antigos e novos para nós mesm@s no pensamento crítico latino-americano: o enfrentamento dos fundamentalismos econômico (capitalismo), social (racismo e sexismo) e religioso como expressão de uma práxis libertadora.

Do riso e das lutas na América Latina:

            Nas lidas dos movimentos sociais por terra e território na América Latina todas estas possibilidades atravessam momentos e propostas evidenciando a centralidade crescente da questão ecológica e as dificuldades concretas de articular esta questão com outras pautas vitais da vida plural do campesinato, populações tradicionais e indígenas latino-americanos. De modo especial as complexas questões que se organizam em torno da pauta da reforma agrária precisam ser consideradas. Este lugar “do povo da terra” se parece ao riso da escrava/mulher trácia: não despreza o debate acadêmico e científico, mas afirma o chão da vida do povo pobre com/na natureza como lugar de reflexão e mística que cria os critérios de aproximação ou não dos modos ecológicos/econômicos disponíveis.
“É por isso que milhares de camponeses, pescadores, povos nativos, mulheres, pastores, trabalhadores rurais sem terra e outras organizações da sociedade civil mobilizaram-se em massa durante a conferência. Exigimos uma nova visão de reforma agrária.
O movimento internacional de camponeses La Via Campesina acredita que uma reforma agrária genuína oferece um modelo alternativo importante de desenvolvimento. Isto inclui arrancar o controle sobre a terra, a água, os recursos marítimos, as sementes e outros recursos naturais das garras dos que utilizam essas vantagens para aumentar seus próprio lucros, e dá-lo ao povo da terra.”26

            Os povos da terra e territórios se enfrentam com as garras mais afiadas do capitalismo explorador e depredador, e é nas terras e territórios dessas populações a nível mundial que sistemas de vida, florestas e águas continuam intactas ou em preservação de resistência. Não considerar a demanda desses segmentos sociais em suas relações concretas com o corpo do mundo a partir de qualquer abordagem filosófica, torna a ecologia/terra um apetrecho das políticas de manutenção dos poderes constituídos e suas violências institucionais.

            Para os povos da terra e territórios a questão da reforma agrária pontua uma questão fundamental e imprescindível: o enfrentamento e desmontagem das estruturas de propriedade privada da terra, tanto na forma do modelo agrário como do modelo agrícola. Para os movimentos sociais latino-americanos esta é a questão central de toda e qualquer conversa sobre ecologia.

“A alteração mais importante imposta pelo sistema-mundo moderno foi o estabelecimento de uma base legal sistemática para o chamado direito de propriedade da terra. Por outras palavras, criaram-se regras que determinavam que uma pessoa ou entidade empresarial podia “possuir” terra diretamente. A posse de terra – ou seja, os direitos de propriedade – significava que se podia utilizar a terra da forma que se quisesse, e que só se estava obrigado às limitações específicas impostas pelas leis do Estado soberano dentro do qual esta unidade de terra se situava. A terra sobre a qual uma pessoa tinha direito de propriedade, era terra que podia legar aos seus herdeiros ou vender a terceiros ou entidades empresariais”27

            Qualquer formatação, formulação de um pensamento crítico na América Latina (África? Àsia?) precisa se colocar a questão da propriedade e suas ordenações como mecanismo estruturante de toda a desigualdade e toda a voracidade que destrói vidas. Humanas. Vidas de todos os seres viventes. Destruição da Vida. Que sustenta o Estado e sua subserviência aos modelos depredadores da terra, dos viventes, dos seres – o capitalismo.
Tomando esta perspectiva como lugar de avaliação do nosso tempo, precisamos conhecer as formas do dizer, do viver e do lutar do povo latino-americano por terra e território. Problemas de léxico e contornos filosóficos precisam ser subordinados? – reencantados – melhor - aos processos organizativos destas comunidades lembrando e insistindo que são estas, em especial na persistência das mulheres camponesas, indígenas e de comunidades tradicionais, que mantém ainda de pé territórios vivos e viventes, cobiçados pelo capitalismo do agronegócio, das mineradoras, madeireiras e das biopiratarias das indústrias de cosméticos e farmacêutica. Como na “Declaração de Surin”: Encontro Global da Via Campesina sobre Agroecologia e Sementes Camponesas28, em novembro de 2012.
“Também entendemos que a agroecologia é uma parte inerente à resposta global aos principais desafios que enfrentamos como humanidade. Em primeiro lugar, a agricultura em pequena escala pode alimentar e está alimentando à humanidade e pode solucionar a crise alimentar através da agroecologia e da diversidade.
Em segundo lugar, a agroecologia contribui para lutar contra a crise ambiental. Com a agroecologia e a diversidade, a agricultura camponesa esfria o planeta, mantendo o carbono no solo e proporcionando aos camponeses e à agricultura familiar os recursos necessários para ser resilientes (com capacidade de adaptar-se) às mudanças climáticas e ao aumento das catástrofes naturais. A agroecologia transforma a matriz energética e agrícola dependente do petróleo, uma parte fundamental das mudanças sistêmicas necessárias para frear as emissões.
Em terceiro lugar, a agroecologia reforça o bem comum e o coletivo. Ao mesmo tempo em que cria as condições para uma melhor qualidade de vida para as pessoas das zonas rurais e urbanas, a agroecologia, como pilar da soberania alimentar e popular, estabelece que a terra, a água, as sementes e os conhecimentos devem continuar sendo patrimônio dos povos a serviço da humanidade.
Através da agroecologia, transformaremos o modelo hegemônico de produção alimentar, permitindo a recuperação do ecossistema agrícola, restabelecendo o funcionamento do metabolismo natureza-sociedade e colhendo os produtos que alimentarão a humanidade. Como dizem os camponeses filipinos "Kabuhanan, Kalusugan, Kalikasan” (pela economia, pela saúde e pela natureza)”


O riso da mulher/escrava trácia insiste em ser lugar de discernimento e crítica das formas consagradas e legitimadas de saber, de política, de espiritualidade. Não se trata mais da abstrata “sociedade civil”. Trata-se de uma perspectiva de classe social, de gênero e de etnias que se afirmam e se empoderam recusando ao mesmo tempo a minoridade e subordinação da terra e seus seres e das mulheres, pobres e etnias. Os povos da terra e do território riem sua gargalhada pelos corredores e calçadas dos fóruns de debate sobre filosofia, economia, crise ambiental, climática, alimentar... todas as crises. E, riem: Kabuhanan, Kalusugan, Kalikasan”

Voltamos à escrava trácia e seu trabalho com o poço e seus equipamentos:
“Se se considerasse esta mulher em conjunção com a roda (una com ela) um coração da terra, ela operaria sobre o solo, pela via dos regos da água (veias e artérias do corpo/campo) uma acção regeneradora, terapêutica e profiláctica: ensinar-lhe-ia a respiração e a re-circulação de ar e água, sopro e líquido fertilizador, sangue e ânimo de um corpo terrestre que se deseja arejado, vivificado, saudável”

Voltar para este momento do riso da mulher da Trácia é procurar superar o exato momento em que o chamado “pensamento ocidental” preferiu romper a busca de um conhecimento orgânico e úmido quando recusou a mediação do riso da mulher. O texto do Teeteto apresenta esta recusa apontando a fragilidade inútil da mulher e do riso:

“A mesma coisa se pode dizer a todos os que passam a vida a filosofar. É certo que estes não conhecem parentes nem vizinhos, nem sabem o que eles fazem; sabem apenas se são homens ou criaturas de outra espécie; e põem toda a sua atenção a estudar e a descobrir o que é o homem, o que convém à sua natureza fazer ou suportar, o que o distingue dos outros seres. Compreendes, Teodoro, o que quero dizer?”29

            O riso da mulher não vai se sustentar por muito tempo nos argumentos do filósofo, que, por fim, conclui que o conhecimento não responde ao riso - ...não das escravas da Trácia, ou dos ignorantes, porque estes não se apercebem de nada...30. O elogio do conhecimento que não conhece nem parentes nem vizinhos nem muito menos criaturas de outras espécies e que se dedica a estudar “o homem” distinto dos outros seres aponta numa mesma reflexão a separação e a subordinação do homem filosófico sobre todos os outros seres e também sobre as mulheres/escravas.
...(o) filósofo, educado no seio da liberdade e da ociosidade, não deve ser censurado por parecer ingénuo e inútil em presença de trabalhos servis, porque não sabe, por exemplo, arrumar uma mala de viagem, temperar comida, ou dizer lisonjas. O outro é capaz de fazer tudo isso com habilidade e rapidez, mas não sabe usar o manto como um homem livre, compreender a harmonia do discurso, nem cantar a vida dos deuses e dos homens felizes.31

No riso da mulher trácia recuperamos um lugar de suspeita e crítica de um pensamento ocidental que se pensa universal e auto-suficiente na ruptura com o corpo das necessidades, o corpo social e o corpo do mundo e seus “outros seres”. 


A filosofia será da libertação se submergida nas lutas populares. A filosofia escutará no riso das trabalhadoras na busca por água seus motivos últimos e penúltimos: arrumar uma mala, temperar comida... conquistar o manto das gentes libertadas, compreender a harmonia de todo o mundo habitado e cantar a felicidade.

Nancy Cardoso Pereira
nancycpt@yahoo.com.br



[1] PLATÃO, Teeteto/Crátilo (172d – 176 a), tradução: Carlos Alberto Nunes / coordenação de Benedito Nunes. Belém: EDUFPA, 2001
[2] Ibid.
[3] GEBARA, Ivone, Justiça ecológica: limites e desafios, in: Tempo e Presença Digital, ano 5, n° 21, 2010, in: www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=400&cod_boletim=22&tipo=Cr%F4nica (acesso em 22/6/2014). Para a questão do ecossocialismo feminista, cf. PEREIRA, Nancy Cardoso. Remover pedras, plantar roseiras, fazer doces - por um ecossocialismo feminista. São Leopoldo: CEBI, 2009.
26 VIA CAMPESINA, Via Campesina Tempo para Reforma Agrária,Minga/Mutirão Informativa, in: http://movimientos.org/es/cloc/fororeformagraria/show_text.php3%3Fkey%3D6594 (acesso em 18/6/2014)
27 WALLERSTEIN, Immanuel, 2010. “Ecologia versus Direitos de Propriedade. A terra na economia-mundo capitalista”. JANUS.NET e-journalofInternationalRelations, N.º 1, Outono 2010janus.ual.pt/janus.net/pt/arquivo_pt/pt_vol1_n1/pt_vol1_n1_art1.html (acesso em 18/6/2014)
29 PLATÃO, Teeteto.
30 Ibid.
31 Ibid.