agosto 05, 2017

O contrário de absoluto não é relativo - ciência, gênero e diversidade na escola




O desafio colocado para nós é o de não deixar que o debate sobre “ideologia de gênero” se consolide na escola e na sociedade: é preciso recusar de modo firme, crítico e criativo as fórmulas equivocadas do debate proposto pelos setores conservadores. Neste sentido o desafio deve superar a justaposição de discursos e o embate meramente conceitual.

Enfim, autá tà prágmata, as "coisas mesmas" têm outros níveis. Aprendemos com Marx e Engels que as idéias não têm história. Naturalmente não se discute que haja uma história das idéias, mas o que se quer dizer é que a força impulsionadora dessa história não são de novo idéias, e sim que a história material forma o subtexto da história ideal.[1]

As coisas mesmas! Gênero na educação não se resume a circulação de ideias e conceitos, mas a uma força “impulsionadora da história” fruto da práxis de igualdade e diversidade de diversos movimentos sociais. A educação não se entende aqui como depositório de conceitos e discursos, mas como espaço de socialização de saberes e de produção de conhecimentos novos a partir das práticas emancipatórias de todos os agentes envolvidos.




A categoria “gênero” não é endógena, isto é, não tem origem no interior do conceito mesmo mas se move na história. Continuando com a reflexão de Haug:

E isto não só no caso da água — que com as mudanças de temperatura derrete ou gela ou se transforma em vapor, que o vento arrasta já como nuvem — , mas também com as idéias, que se movem com impulso próprio, como se estivessem providas de uma leve potência histórica.

Os usos conservadores do gênero como ideologia querem imobilizar a potência histórico-metodológica da categoria gênero e sua relacionalidade como "conjunto de perigos que ameaçam tanto o transmitido como o receptor da transmissão"

Hoje nos ameaça novamente o perigo, com toda força, de que o ponto de vista dos vencedores domine e suplante de novo a história dos subalternos e de suas lutas de libertação[2]

Esta ameaça se concretiza nos ataques coordenados de setores conservadores, com perfil religioso fundamentalista, contra processos e resoluções no campo da educação no Brasil nas últimas décadas. Os processos temidos e atacados são os das conferências de educação, nos seus diversos níveis e as interações de definição e aprovação nos espaços municipais, estaduais e nacionais. O que se questiona e se nega legitimidade é ao processo participativo – mesmo que problemático – de criação de arranjos e acordos políticos para a área da educação com forte participação de profissionais da área e de comunidades ativistas.

A segunda ameaça se dá no nível de resoluções e seus indicativos. Os processos de conferências reuniram e aglutinaram demandas importantes que até então não estavam presentes nos processos educativos brasileiros mais pautados pela cisão do público/privado e as alternâncias entre conteúdismo/construtivismo. Entre esses consensos duramente presentes está aqueles que colocam desafios para processo de exclusão e desigualdade na sociedade brasileira, em especial as desigualdades de gêneros e suas relacionalidades ( de classe, raça, etc).

Vejo as ofensivas contra a “ideologia de gênero” como a busca de naturalização de posições – as visões bem situadas e particulares de alguns, no caso de grupos religiosos, apresentadas como se fossem universais. Nesse caso, o recurso à ideia de que existe uma natureza/verdade e uma ideologia/falsidade é o dispositivo central para a universalização de uma posição bem situada.[3]

O uso equivocado ou “mal intencionado” do termo ideologia por parte de setores conservadores/fundamentalistas tem como base uma redução desses processos e resoluções em estreitos conceitos que mais escondem do que revelam os verdadeiros eixos de debate sobre estes temas. Como por exemplo no posicionamento oficial de uma Diocese Católica Romana:

Segundo esta ideologia, os papéis entre homens e mulheres, dentro do contexto do matrimônio e da família, devem ser substituídos por relações sexuais física e psicologicamente versáteis e que não obedecem uma ordem da natureza e dignidade que lhes é própria. Segundo essa teoria ideológica os dois sexos – masculino e feminino – são considerados construções culturais e sociais, de modo que, embora existindo um sexo biológico, cada pessoa tem o direito de escolher o seu sexo social (gênero). Seus adeptos querem ensinar às crianças que elas, socialmente falando, não são homens ou mulheres...
                                                                   
Neste sentido, o desafio colocado é muito maior e mais complexo do que a sobreposição e/ou a justaposição de ideias e conceitos. Esta é uma condição para que o debate e as práticas não se imobilizem: a capacidade de pensar todo o processo educativo (práticas, conteúdos e mecanismos) com os instrumentais de crítica e criatividade das teorias de gênero e suas demandas de igualdade e participação.

Gostaria de apontar alguns limites e exercitar algumas possibilidades tomando o conjunto das práticas educativas, pensando os repertórios escolares e a necessidade urgente de que gênero e diversidade façam parte do conjunto dos esforços analíticos, interpretativos, investigativos e criativos. Tomarei a perspectivas das ciências como lugar de exercício. De que modo gênero e diversidade participam das ciências naturais?



AULA DE CIÊNCIAS TEM GÊNERO?
Um olhar sobre a ciência clássica vai nos apresentar três eixos: Ordem, Separabilidade e Lógica... NENHUM GÊNERO! Aqui vou apresentar uma síntese das questões significativas considerando o pensamento sobre complexidade de Edgar Morin[5]
·      * ordem do Universo: tal como entendida por Descartes e Newton, era o produto da perfeição divina. Com Laplace, a hipótese de Deus é descartada: a ordem funciona sozinha, é "autoconsolidada".
·     * separabilidade: conhecer é separar. Em face de um problema complicado, dizia Descartes, é preciso dividi-lo em pequenos fragmentos e trabalhá-los um após o outro. Assim, as disciplinas científicas são desenvolvidas a partir da divisão do interior das grandes ciências, a física, a biologia etc, o que dá origem a compartimentos sempre novos... a separação entre o observador e sua observação
·     * a lógica, a indução: com base em um número importante e variado de observações, podia-se tirar delas leis gerais. Quanto à dedução, era um meio implacável de conduzir à verdade. Os princípios aristotélicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído, permitiam elimina toda confusão, equívoco e contradição.
MAS... 3 problemas
1-A presença da desordem universal se revela em todos os níveis: microscópico, cosmofísico, etc; no reinado da ordem pura não há criação, não há possibilidade de nada novo.

2-      como separar o corpo e seu ambiente? Os seres vivos não são nada sem o seu meio; a organização viva gera um certo número de qualidades, como autoprodução, autonutrição e auto-reparação; tais qualidades não se encontram nas partes;

3-      desafios da ciência e filofofia hoje: entrar numa nova lógica, que nos permita integrar as contradições, mas mostrando que é possível promover um incessante jogo de circularidade entre nossa lógica tradicional e as transgressões necessárias ao progresso de uma racionalidade aberta.

Sem o enfrentamento desses pilares a ciência que socializamos e potencializamos continuam organizando o mundo sem lugar para relacionalidades, simultaneidades e contradições. Mas o debate hoje aponta para três vertentes do pensamento complexo.

1-      Discutir sem dividir: a palavra complexus retira daí seu primeiro sentido, ou seja, "o que é tecido junto". Pensar a complexidade é respeitar a tessitura comum, o complexo que ela forma para além de suas partes.
2-      a imprevisibilidade. Um pensamento complexo deve ser capaz de não apenas religar, mas de adotar uma postura em relação à incerteza.
3-      da racionalização fechada à racionalidade aberta. A primeira pensa que é a razão que está a serviço da lógica, enquanto a segunda imagina o inverso.

As feministas têm discutido as concepções de gênero, suas representações, identificações, exclusões e inclusões nas ciências desde os filósofos gregos, chegando até as ciências modernas. Toda a influência das metáforas de gênero nos processos de construção das ciências modernas foi, e continua sendo, objetos de instigantes e cuidadosas análises das filósofas e historiadoras das ciências feministas... que apontam a necessidade de sairmos do discurso descritivo e do problema para... entrar de vez na sala de aula com gênero!


Se considerarmos este quadro mais amplo de debate no campo das ciências e seus desafios para a educação e a escola: como posicionamos a questão de gênero? Se considerarmos atentamente os parâmetros da legislação para o Ensino de Ciências, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2008) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) – entendidos como processos de participação e resolução[6] – vamos encontrar as seguintes prioridades:

a compreensão da natureza e seus fenômenos, a compreensão da ciência como atividade humana, histórica e associada a aspectos sociais, econômicos políticos e culturais, a identificação das relações entre ciência e tecnologia na atualidade, a formulação de questões a partir dos conceitos aprendidos nas ciências, a associação das leituras, observação, experimentações, organização e discussão de informações visando a formação de um cidadão crítico e a valorização do trabalho em grupo em favor da construção coletiva do conhecimento.


Esta compreensão insiste no caráter coletivo da produção do conhecimento, mas também visibiliza o processo histórico e a importância da contextualidade nos cenários científicos. As grandes narrativas da universalidade, entendida como inerente às ciências, têm como consequência o encobrimento ou deslocamento do lugar, do local social de produção de conhecimento reproduzindo uma visão da ciência independente de qualquer contexto local. Esta marca da ciência clássica tornou a localidade uma marca das formas culturais inferiores, logo, não científicas.


Do mesmo modo esta localidade encoberta/deslocada silencia sobre as vivencialidades dos/as agentes da investigação. Não importa – aparentemente – dizer se se trata de homem ou mulher cientista, nem revelar as perguntas geradoras do processo investigativo. Aqui também a universalidade do “ser” que conhece, inviabiliza as pertenças e os cenários do conhecimento produzido. Mas os parâmetros do Ensino de Ciências que vêm sendo proposto reconhece as localidades e os cenários da ciência como experiência histórica e humana e por isso mesmo marcadas por interconecções entre raça, gênero e ideologias colonialistas que se manifestam nos modos de ensino e pesquisa das ciências entre nós.
Relações sociais de poder e gênero: este o nome completo da urgente e sistemática tarefa. Porque “social” perpassa todos os tempos e espaços; porque “relação” ocupa-se de estruturas e mecanismos; porque pergunta pelo “poder” supera a tarefa descritiva e exige análise, interpretação e... intervenção! Na educação em geral, nas ciências em particular e nas ciências modernas – duras e moles! - concretamente! Alguns exemplos:
O “engendramento” da natureza e da ciência, pela identificação de masculinidade com temas de controle e dominação, no livro da historiadora da ciência, feminista, marxista e ambientalista Carolyn Merchant[7], sobre a morte da natureza, enfocou exatamente a importância da metáfora da natureza como mulher, e da identificação da mulher com a natureza, para a ciência e para o capitalismo.
Londa Schiebinger[8] investigou como as categorias sexuais transpostas para o reino animal, qualificaram a taxonomia: a presença de glândulas mamárias, ou seja, pelas mães amamentadoras. O Homo sapiens por contraste se distingue dos outros mamíferos por sua inteligência. As decorrências dessa estrutura taxonômica nas percepções de gênero são óbvias. A autora sugere que a assimetria engendrada em “mamíferos” e “Homo sapiens” foi um dos suportes da aceitação dessa controversa classificação taxonômica.
Não há uma ciência “melhor” porque feita por mulheres! Helen Longino[9] propõe que não se trata de encontrar um modelo feminista de análise, melhor ou mais correto, mas sim de assumir diferentes modelos gerados a partir de diferentes posições de sujeitos que possam se articular não na produção de um consenso geral e universal, mas na possibilidade de compartilhar modelos que permitissem interações... todas as tentativas de conhecimento seriam socialmente mediadas!


Superar pontos de vista dicotômicos no entendimento das ciências naturais, que opõem concepções de subjetividade e objetividade, construindo como alternativa para os pontos de vista tradicionalmente idealizados “de nenhum lugar”, um entendimento do “conhecimento situado”, incorporado social, temporal e espacialmente.

Desafios da ecologia queer para as ciências na escola: para estudar minhocas

Como um movimento que se remete ao estranho e ao excêntrico pode se articular com a Educação, tradicionalmente o espaço da normalização e do ajustamento? Como uma teoria não-propositiva pode ‘falar’ a um campo que vive de projetos e de programas, de intenções, objetivos e planos de ação? Qual o espaço, nesse campo usualmente voltado ao disciplinamento e à regra, para a transgressão e para a contestação? Como romper com binarismos e pensar a sexualidade, os gêneros e os corpos de uma forma plural, múltipla e cambiante? Como traduzir a teoria queer para a prática pedagógica?[10]

O conceito de natureza tem sido caracterizado por uma série de percepções identitárias e dicotomias - natureza externa/natureza interna, ambiente natural/corpo – que merecem ser questionadas e reavaliadas a partir dos debates propostos pelo pensamento queer, em especial a ecologia queer[11]. Aponto aqui algumas pistas iniciais necessárias para a continuidade da conversa.
A perspectiva ecofeminista queer diagnostica três questões[12] pelas quais a relação entre sexualidade e 'natureza' molda nossa forma de entender, perceber e interagir com o natural.
      A primeira, e a mais óbvia, é a naturalização da heterossexualidade . Por causa de um imperativo sexual repro-centrado (ou seja, centrado na reprodução) ou por causa da erotofobia (medo do erótico);
      A segunda é a projeção de uma heterossexualidade à 'natureza'  - mãe terra;
      A última é a atribuição de um modelo hetero para as relações entre humanas e 'natureza'.

Para as ecofeministas e as ativistas de justiça ambiental, questões de epistemologia estão ligadas inerentemente a questões de poder. Elas argumentam que o sexismo e o racismo são formas sistêmicas de opressão que influenciam negativamente as relações de seres humanos com o mundo natural, e também que ideias e instituições de natureza são locais importantes nos quais o racismo e o sexismo são organizados.[13]
Com o ecofeminismo entendemos que a "natureza" é organizada por nós (mas também organiza-se!) por complexas relações de poder; o ecofeminismo queer adiciona a sexualidade como uma categoria de poder. A sexualidade, como potência de eixo (estrutural e simbólico), organiza a forma como definimos o que conta como "natureza", o que entendemos e como nos relacionamos com o que chamamos natural.
            O desafio está dado e exigirá muito de quem pensa gênero e diversidade na escola para além do discurso. De modo especial para o campo das ciências naturais este debate promete e já tem indicativos de aberturas pedagógicas e de projeção de cenários de aprendizagem vitais para a socialização de um conhecimento científico e, mais importante, a criação de um espaço investigativo que possa responder aos desafios sócio-ecológicos do nosso tempo:

Ao invés de uma ordem de cima para baixo, em que fantasias de dominação e poder estão à espreita, sugere-se um movimento diferente, o qual privilegia a pequenez e a invisibilidade. Mesmo Darwin, como lhe é atribuído, teria escrito uma nota de rodapé em um de seus livros: nunca diga superior ou inferior. Ele queria reverter as hierarquias de modo a estudar minhocas sem recorrer ao mito do progresso. Eis uma comédia que capta sussurros, reverberações e ecos como um tipo de opus contra naturam.[14]




[1] HAUG, W.F., O projeto do Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo, in: http://www.wolfgangfritzhaug.inkrit.de/documents/HKWM-portugies.pdf (acesso em 25/6/2016)
[2] Ibid.,
[3] BIROLI, Flávia, A “Ideologia de gênero” e as ameaças à democracia, BLOG BOITEMPO, junho de 2015, in: https://blogdaboitempo.com.br/2015/06/26/a-ideologia-de-genero-e-as-ameacas-a-democracia/ (acesso em 24/6/2016)
[4] DIOCESE DE GOIÂNIA, O que é ideologia de gênero, in: http://www.catedralgo.com.br/index.php/midias/noticias/244-o-que-e-ideologia-de-genero (acesso em 24/6/2016)
[5] MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000, in: http://www.caosmose.net/candido/unisinos/textos/morin.pdf (acesso em 13/4/2006)
[6] FOUREZ, G. Crise no ensino de Ciências? Investigações em ensino de ciências, v. 8, n. 2, p. 109-123, 2003.
SOUZA, A.M.F.L. Ensino de Ciências: Onde está o Gênero? Revista Faced, n.13, p. 149-160, 2008
LIMA-JUNIOR, P.; OSTERMANN, F.; REZENDE F. Gênero e educação científica: uma revisão da literatura. Anais do VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC), 2009.
MOREIRA-LIMA, A. C. L.; SIQUEIRA, V. H. F. Questões De Gênero No Campo De Ensino Em Ciências: Investigação Sobre Temáticas E Construções Teóricas Prevalentes Em Periódicos. Anais do 9º Fazendo Gênero, 2010
[7] MERCHANT, Carolyn, The Scientific Revolution and The Death of Nature, Isis, 2006, 97:513–533, 2006 by The History of Science Society, in:  http://nature.berkeley.edu/departments/espm/env-hist/articles/84.pdf (acesso em 22/4/2016)
[8] SCHIEBINGER, Londa, Why Mammals are Called Mammals: Gender Politics in Eighteenth-Century Natural History, The American Historical Review, Vol. 98, No. 2 (Apr., 1993), pp. 382-411 in: http://www.bbk.ac.uk/bih/lcts/summer-school-2015/esther-leslie/ls_mammals_e2.pdf (acesso em 22/4/2016)
[9] LONGINO, Helen, The Fate of Knowledge, Princeton University Press, 2001, chapther 1, in: http://press.princeton.edu/chapters/s7156.html (acesso em 25/4/2016); Can There Be A Feminist Science? Kontext: časopis pro gender a vědu 1-2/2005, in: http://www.studiagender.umk.pl/pliki/teksty_longino_can_there_be_a_feminist_science.pdf (acesso em 25/4/2016);
[10][10] LOURO, Guacira, Teoria Queer - uma Política Pós-Identitária para a Educação, Estudos Feministas, ano 9, 2/2001, 541-553, in: http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8639 (acesso em 25/4/2016)
[11] DI CIOMMO, Regina Célia, Relações de gênero, meio ambiente e a teoria da complexidade, Estudos Feministas, Florianópolis, 11(2): 360, julho-dezembro/2003, in: http://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19130.pdf (acesso em 23/4/2016);
[12] GABRIEL, Alice. Ecofeminismo e ecologias queer: uma apresentação. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 19, n. 1, p. 167-174,  Apr.  2011 .   in:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100013&lng=en&nrm=iso (acesso em 25/4/2016)
[13] MORTIMER-SANDILANDS, Catriona. Paixões desnaturadas? Notas para uma ecologia queer. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 19, n. 1, p. 175-195,  Apr.  2011 .  in: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100014&lng=en&nrm=iso (acesso em 24/4/2016)
[14] GOUGH, Noel et al . Contos de Camp Wilde: tornando queer a pesquisa em educação ambiental. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 19, n. 1, p. 239-265,  Apr.  2011 .   in:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100017&lng=en&nrm=iso, (acesso em 26/4/2016)

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE em tempos de fundamentalismos



A Troca da Roda
Estou sentado à beira da estrada,
o condutor muda a roda.
Não me agrada o lugar de onde venho.
Não me agrada o lugar para onde vou.
Por que olho a troca da roda
com impaciência?
(Bertold Brecht)

A roda está quebrada.
Este nosso encontro acontece num momento difícil e dramático do Brasil, de modo muito especial para quem trabalha com educação e diversidade. É de vital importância começar dizendo: não reconheço o governo golpista e sua agenda de ajustes e violência contra direitos conquistados.
Eu venho do processo de formação e educação popular da Comissão Pastoral da Terra e, para nós está claro:
Quando o modelo de desenvolvimento a qualquer custo no país legitima arrebentar com sistemas de vida, biomas e culturas entregando na mão de empreiteiras corruptas e corruptoras todos e recursos e poderes para destruir, legitima também o massacre e a eliminação de alternativas e modos de vida do povo da terra e das águas.
Quando a estrutura política, econômica e jurídica do país se move ao redor dos interesses de uma minoria burguesa, elitista e racista contra os interesses das maiorias negras e pobres autoriza também o terror nas favelas e periferias – no campo e na cidade.
Quando as políticas públicas de saúde e educação são as primeiras a sofrerem com os cortes por conta da “crise” econômica, quando se tolera formas de precarização do trabalho e as políticas sociais não se fazem acompanhar de mudanças estruturais a gente vê a fina camada de democracia e de igualdade no Brasil se desmanchar sob pressão das elites nacionais ainda hoje parceiras e protagonistas de todos os governos.
Quando o fundamentalismo econômico precisa do fundamentalismo religioso para manter funcionando o sistema de exclusão são os direitos das mulheres que desaparecem recolocando sobre elas as tarefas históricas do cuidado e da subordinação, sobrecarregando as mulheres – do campo e da cidade – com o trabalho super-explorado e a violência doméstica e social que rondam os pobres ainda mais nos tempos de crise. São os modos de diversidade que sofrem com a pretensão da mono-cultura na violência diária contra as comunidades LGBTT e a ameaça aos frágeis direitos conquistados.
Pensar o cenário nacional hoje não pode ser um exercício curto de identificar os golpistas de sempre e as manipulações da mídia. Ficar de frente pro mar de costas pro Brasil e não articular os golpes contra nossa frágil democracia com os golpes antigos e novos contra a terra e os povos do campo e da cidade nos manterá de novo no labirinto de poder de oligarquias racistas.
Que sejamos contra o golpe institucional em curso, mas que sejamos também honestos: a democracia que queremos não vai ser fruto de simpósios e congressos, textos e livros... mas nosso encontro aqui pode ser expressão de um acúmulo de forças, crítica e criatividade para o enfrentamento necessário e contribuição para o esforço organizativo necessário de um projeto popular – democrático e diverso -  para o Brasil.
Não defendo o governo do PT, mas exijo respeito com a democracia. Não gosto do lugar de onde venho... nem gosto do lugar pra onde vou. Este é o tempo que nos reúne aqui e essas são as enormes tarefas!

Dito isso, tenho 2 questões que gostaria de compartilhar:
1-      Nunca fomos modernos!
2-      O fundamentalismo é sintoma!

1-Nunca fomos modernos: no Brasil o que chamamos de modernidade reformou os espaços de poder, entre eles o da religião hegemônica sem contudo romper com os conteúdos patriarcais e patrimonais que persistem de modo contraditório no modelo hegemônico do cristianismo ocidental. Neste sentido o que assistimos hoje não é a volta da religião, nem o reencantamento do religioso porque a religião cristã nunca deixou de fazer parte do cenário político brasileiro.
Um dos pontos centrais nestas relações de poder entre Igreja e Estado sempre foi o protagonismo quase exclusivo que a igreja católica manteve e mantém no campo da assistência social, entendida quase como uma extensão das obras de caridade.
Reconhecer este trânsito de poderes e símbolos nas históricas relações Igreja-Estado significa identificar a matriz religiosa cristã e católica na formação das políticas de assistência e seus âmbitos e interfaces na saúde, na educação, no planejamento e na economia. Mesmo já não mantendo hegemonia de influência nas coisas públicas, os ícones e mecanismos do catolicismo operam ainda de modo eficiente.
No processo histórico de construção da sociedade civil brasileira, os limites do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa "devolução" das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do código cristão da "caridade".
Estas funções do Estado moderno – seguridade social, saúde, educação etc. - no Brasil não encontraram uma via de consolidação estrutural e ficaram reféns dos modos de intervenção privada em especial do cristianismo católico. O persistente nesta estratégia é a “modelagem” do feminino e do âmbito da família como mediação das políticas de assistência que, se por um lado empodera de modo significativo - mas parcial - as mulheres pobres (acesso a renda, gás, luz elétrica, leite, etc.) por outro lado aciona um mecanismo cultural de subordinação: o feminino “assistencioso e misericordioso”.
A estruturação de uma proposta assistencial que tinha caráter público foi deslocada para uma abordagem privada, no âmbito da modelagem católica e fundamentada em concepções religiosas que persisitem ainda hoje.
Entretanto mesmo no ocidente, e em especial no Brasil,  é preciso reconhecer que a modernidade instaurou mecanismos e processos desiguais, parciais e incompletos e que muitos processos de “direitos” foram e são fruto de um intenso tempo de conflitos, negociações, enfrentamentos e resistências.
Uma das características do mundo a ser superado pela modernidade era a de uma sociedade hierárquica e patriarcal sendo, a religião hegemônica do mundo ocidental norte-atlântico cristão, uma religião de conteúdos e estruturas masculinas bem definidas em diversas modalidades de protagonismo com um discurso e uma “catequese” para as mulheres bastante claro e formatado.
Sem dúvida alguma o século XX assistiu uma profunda mudança na vivência e nas políticas para as mulheres mas seria ingênuo considerar estas mudanças como avanços lineares da modernidade secularizada. A diversidade de cenários religiosos de diferentes mulheres em diferentes conjunturas exigem uma avaliação criteriosa.
Neste cenário a pergunta pelo feminino no campo religioso se torna significativo o que é confirmado pelos intensos debates e resistência por parte de setores conservadores a respeito de políticas voltadas para mulheres na atualidade. O “re-encantamento” religioso significaria também uma desaceleração na garantia de direitos e participação das mulheres? Significaria também um recrudescimento com as formas clássicas das hierarquias das diversas agências religiosas? Qual o impacto deste cenário para outras matrizes religiosas?
As teorias feministas agregam diversos elementos de crítica fundamentais para esta reflexão: a hermenêutica da suspeita, a superação tradicional dos universais como encobrimento do masculino, a superação da compreensão consolidada de “natureza feminina” que teria a maternidade como destino irrecusável, a rejeição de uma fundamentação biológica para explicar o ordenamento social e religioso dos sexos, a crítica radical dos modelos hierárquicos, a superação de modelos unficados e redutores de compreensão dos modos de crença vicenciados pelas mulheres e apresentados de modo normativo e naturalizado, a superação do entendimento de que as atividades simbólicas –crenças, ritos e discursos religioso - escapam da diferenciação explicitando o caráter sexual dessas atividades, enfrentamento dos esquemas de silenciamento e exclusão do protagonismo feminino na historiografia da religião, suas fontes e métodos;  denúncia dos usos da discussão do “Público e Privado” como funcionalização dos esquemas sociais de poder patriarcal.
Os avanços e conquistas dos movimentos feministas arranharam profundamente o verniz superficial da frágil democracia de conciliação revelando a cara sexista, racista e classista da sociedade brasileira. Revela também que não há disposição para tolerância ou mudanças estruturais e que a todo custo deve ser barrado e silenciado o assenso de políticas de igualdade e diversidade – até mesmo com o uso da violência – de modo especial na educação.



2- O fundamentalismo é sintoma: o fundamentalismo religioso é a outra ponta do mesmo processo do fundamentalismo econômico que tem como objetivo a preservação do capitalismo como modo de organização da vida e de manutenção das desigualdade essenciais para os processos de exploração e endividamento. O capitalismo é religião:
Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo "do qual se deveria esperar a salvação”.[1]

O fundamentalismo é um modo de ordenação do mundo e das relações que situa num lugar acima da sociedade e suas questões um eixo de estabilidade e verdade que disciplina tudo e todos. Fora de nós, acima de nós existe uma esfera de certezas pretensamente infalíveis que regula e legisla, que estabelece as normas e os padrões que só pedem para ser obedecidas.
O fundamentalismo é assim a paralisação da interpretação!
E isto é extremamente perigoso e violento em especial para quem trabalha com educação, com a sala de aula, com processos de pesquisa e investigação: a paralisação do processo interpretativo.
A lógica é simples: se existe um lugar de poder e normatividade acima e fora de nós não é preciso correr o risco da avaliação, suspende-se a vertigem da decisão, anula-se as pretensões de inovação. Pode ser uma bíblia, um padre, um pastor, um marqueteiro religioso, uma cantora gospel e suas verdades. O que se pede de nós é obediência e a manutenção dos labirintos imitativos. Anula-se o drama humano de ter que escolher – tanto nas individualidades mas também nas coletividades.
Por isso a educação virou um campo de batalha, porque é aí que se faz a disputa central: pelo direito de decidir! Tirar gênero dos planos de educação, escola-sem-partido, ensino religioso, boicote a temas relacionados com sexualidade tudo isso responde diretamente ao objetivo principal: imobilizar o direito de decidir, o empoderamento das autonomias éticas e suas responsabilidades decididoras.
Os fundamentalismos são palavras contra os corpos, apesar dos corpos, através dos corpos. É preciso silenciar os corpos em contextos individuais, práticas coletivas e arranjos culturais/institucionais: os corpos não conhecem, não produzem conhecimento.  A negação das interseccionalidades de gênero, classe, raça/etnia, geração, capacidades, opção sexual entre outras é um dos objetivos principais do ataque conservador na educação.
É o que os fundamentalistas temem: que os eixos de opressão ainda não articulados em nossas lutas emancipatórias encontrem espaço e incentivo de acontecer numa educação que não se apequena diante dos desafios da complexidade e maleabilidade sem perder a interação e interpretação de totalidades, mesmo que provisórias.
(Interseccionalidade) estimula o pensamento complexo, a criatividade e evita a produção de novos essencialismos. Isto não significa afirmar, contudo, que trate-se de “meta-teoria” capaz de abarcar todas as questões fundamentais, mas que, exatamente por suas características de maleabilidade e ambigüidade teórica fornece um campo aberto de novas possibilidades de pesquisa e intervenção. [2]



Desafios para continuar conversando
Esta dimensão “interpretadora & decididora” da educação não pode se limitar aos aspectos formais, isto é, não é algo de que se fala sobre, mas que deve fazer parte do modo mesmo de organizar os processos escolares/aprendentes e suas vivências. A redução de conteúdos de inclusão, diversidade e autonomia ao nível discursivo tem como resultante muito mais do que a ineficácia do processo: potencializa o esvaziamento das formas participativas, condiciona processos a lideranças atomizadas, banaliza questões éticas e desacredita possibilidades de ruptura. Muito dos cenários conservadores podem ter sido gestados em práticas educativas sem coerência entre ditos e não ditos.
Citando Paulo Freire:
Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo... É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado... O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica... envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.[3]

O dado dado! Esta é uma expressão surpreendente e a repetição do nome (dado) e da ação (dado) deixam ver bem do que se trata: tratar de temas e conteúdos - por mais libertadores que sejam – não cria a prática docente crítica. Em boa parte nossos esforços de inclusão e diversidade na educação se esgotaram na autoreferência de processos apressados e superficiais que não consideraram de modo consistente as contradições da formação social por exemplo nas relações – incestuosas e obscenas – com a religião cristã.
Tomamos a modernidade como um dado dado, não consideramos a experiência religiosa no repertório cultural das comunidades com que trabalhamos e... precisamos agora construir uma casa morando nela.
A nosso favor temos robustos e criativos movimentos de estudantes por todo o país, que na metodologia da ocupação exercitam a dimensão “interpretadora & decididora” da educação. Do mesmo modo os movimentos do professorado mostra capacidade de luta e de enfrentamento das políticas reacionárias e de ajuste contra as condições de trabalho e das escolas. A capacidade de interlocução entre estes movimentos seria vital para o fortalecimento da ação classista contra o neo-liberalismo.
Do mesmo modo os movimentos LGBTT e feministas já vêm apontando práticas testemunhais de vivência de diversidade e da emancipação. O desafio agora é pensar certo, pensar junto, radicalizando a democracia entre o fazer e o pensar sobre o fazer.

Nancy Cardoso
Maio de 2016


texto disponível em wp.ufpel.edu.br/observatorio/files/2016/09/e-book-PALESTRANTES.pdf

[1] LOWY, Michel, O Capitalismo como Religião, in: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33501-43270-1-PB.pdf (acesso em 20/6/2016)
[2] RODRIGUES, Cristiano, Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil, Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X, in: http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_ARQUIVO_CristianoRodrigues.pdf (acesso em 20/6/2016)
[3] FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa,  Paz e Terra, São Paulo, 2002, in: http://www.apeoesp.org.br/sistema/ck/files/4-%20Freire_P_%20Pedagogia%20da%20autonomia.pdf (acesso em 20/6/2016)