julho 24, 2017

As Mulheres e a Reforma: falemos das bruxas!



Nesses 500 anos da Reforma Protestante temos insistido em fazer uma releitura inclusiva para que as narrativas não sejam todas no masculino plural. Este é um esforço necessário e importante que fazemos... MAS existe um outro lugar de memória sobre as mulheres e a Reforma protestante: o lugar nada confortável das "bruxas"
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” - nos disse Eduardo Galeano... e as aprendizagens necessárias da crítica feminista precisam desvelar as narrativas fáceis e dóceis e fazer das ferramentas da história parte importante de conhecer a realidade para modificá-la. Falemos sobre elas: as bruxas!
Anoto aqui algumas leituras e socializo traduções provisórias acreditando que um dia poderemos conversar com mais qualidade de tempo e coragem sobre isso.

primeira leitura:
"Eu quero ser o primeiro a pôr fogo nas bruxas", disse Lutero sobre as bruxas num contexto de crescente mania de perseguição à bruxaria no século XVI. Lutero não foi o único que demonstrou tal zelo. Um número sem fim de fogueiras queimaram em todo o país. Milhares de pessoas, a maioria mulheres, perderam a vida. Mas Lutero foi realmente pioneiro na perseguição de bruxas?
Martinho Lutero viveu no mundo do final da Idade Média, Lutero estava enraizado no clima intelectual de seu tempo e a partir daí ele criou algo totalmente novo. 
A igreja deveria reabilitar as bruxas?

Somente na Alemanha, 25.000 mulheres e homens morreram depois de processos duvidosos. Durante meses, um grupo de trabalho lidou com este tema da reabilitação das bruxas - é um tópico para o ano de Lutero 2017.

>> tradução de trechos: Martin Luther and the witches
https://www.luther2017.de/en/wiki/martin-luther-and-the-witches/



segunda leitura:
A caça às bruxas estava irrevogavelmente ligada à Reforma Protestante. Ambos os países católicos e protestantes se ocuparam do combate de bruxarias e rituais pagãos mas, sem dúvida, os casos aumentaram em número durante o período crucial da Reforma - a segunda metade do século XVI. James Sharpe afirmou que a feitiçaria operava "dentro do contexto da reforma e contra-reforma". [I] A feitiçaria não se tornou um fator importante na vida das pessoas até a Reforma e desapareceu à medida que a situação religiosa em toda a Europa se estabilizava. Na Inglaterra, por exemplo, a última pessoa executada para bruxaria foi Jane Wenham em 1712. [ii] Esta foi uma época em que a Inglaterra foi estabelecida e unificada com a Escócia. 
Em alguns países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, houve relativamente poucos casos de perseguição de bruxas. No entanto, o Papa Sixto IV sentiu que o perigo era suficiente para garantir que se aprovasse uma Inquisição para lidar com os casos [Iii] . Enquanto a Igreja de Roma tinha um poder incoteste os casos eram tratados localmente e sem alardes. No período posterior, a partir da Reforma Protestante,  com o poder escorregando lentamente, foi importante assumir uma batalha explícita como forma de afirmação da liderança sobre a Europa cristã. A Inquisição num primeiro momento se ocupou mais com judeus e mouros na Espanha, mas ampliou sua ação incluindo a heresia da bruxaria a partir das iniciativas protestantes. Na Espanha em particular, as bruxas foram definidas pela  Inquisição como uma expansão do entendimento de heresia. [Iv] A heresia já não era apenas definida como a não crença católica (ou protestante),  mas também como aqueles/as que pareciam diferentes e uma ameaça ao domínio da crença e do saber, como bruxas. 
De acordo com Merry Wiesner, os espanhóis apenas mataram um punhado de bruxas, os portugueses apenas um e os italianos nenhum. [V] Muitos dos países católicos estavam no sul da Europa, e a bruxaria parecia se expressar mais na parte norte, como Alemanha, França e Escócia.

Ao contrário dos países católicos, em países protestantes como a Suíça, a feitiçaria foi vista como um remanescente das crenças católicas e um produto da ignorância. [Vi] As bruxas eram, portanto, vistas como ignorantes da verdadeira crença e da verdadeira religião. A feitiçaria e a heresia estavam intimamente ligadas, à medida que os processos de bruxaria aumentavam, os processos de heresia de crença em larga escala diminuíam. 
Na Escócia, houve caças de bruxas em larga escala em 1590, 1597, 1620 e 1649. [vii] Foi depois do período de ensaios de heresia abrangentes. Por isso, pode-se argumentar que a feitiçaria era apenas uma maneira alternativa de acusar os hereges, sem chamá-lo de "heresia" mas de bruxaria.
Essas diferenças regionais não podem realmente ser facilmente explicadas. Em lugares como a Rússia e a Estônia, a maioria dos processos de bruxaria foram executados contra homens e não mulheres. [Ix] De acordo com as estatísticas apenas 32% das bruxas eram do sexo feminino na Rússia, em comparação com 82% na Alemanha, por exemplo . [X] 
Isto revela que a Europa Oriental tinha visões muito diferentes da Europa Ocidental, possivelmente porque a Europa Oriental era menos dividida pela religião e tinha diferentes visões das mulheres em geral.



O sociólogo Nachman Ben-Yehuda afirma que: "Somente os países em desenvolvimento mais rápido, onde a igreja católica foi mais fraca, experimentaram uma mania de perseguição às bruxa virulenta (ou seja, Alemanha, França e Suíça). Onde a Igreja Católica foi forte (Espanha, Itália, Portugal), quase não houve uma epidemia de perseguição às bruxa.
A Reforma foi definitivamente a primeira vez em que a igreja teve que lidar com uma ameaça em grande escala de sua própria existência e legitimidade ". [Xi] Isso implica que a fraqueza da Igreja Romana - corrupção, riqueza e poder -  que gerou nas pessoas um desejo de Reforma - foi também a razão para tantas mortes em toda a Europa de pessoas inocentes. 
O desenvolvimento dos Estados-nação e suas definições eclesiásticas, em vez de colocar consolidar a fé na lógica, parece ter tido o efeito  contrário: fez as pessoas acreditarem mais nas superstições de uma certa maneira. A caças às  bruxas aconteceram como mecanismo de autoproteção de um poder religioso em formação: tudo que não era controlável era considerado heresia e merecia ser exterminado.
- tradução livre do texto: Witchcraft and the Reformation
https://tudorblogger.wordpress.com/2013/05/02/witchcraft-and-the-reformation-2/


referências:
[i] James Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’ in R. Po-Chia Hsia, A Companion to the Reformation World (Oxford: Blackwell Publishing, 2006) p. 444
[ii] David Ross, England: History of a Nation (New Lanark: Geddes & Grosset, 2008) p. 319
[iii] Hugh Trevor-Roper, Religion, the Reformation and Social Change (London: Macmillan and Company Ltd, 1967) p. 108
[iv] Ibid, p. 109
[v] Merry E. Wiesner-Hanks, Women and Gender in Early Modern Europe(Cambridge: Cambridge University Press, 2008) p. 258
[vi] Peter G. Wallace, The Long European Reformation: Religion, Political Conflict and the Search for Conformity 1350-1750 (London: Palgrave Macmillan, 2004) p. 214
[vii] Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’, p. 445
[viii] Diarmaid MacCulloch, Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700(London: Penguin Books Ltd, 2004) p. 569
[ix] Cissie Fairchilds, Women in Early Modern Europe 1500-1700 (Harlow: Pearson Education, 2007) p. 239
[x] Ibid, p. 239
futuras leituras: 
3- The Oxford Handbook of Witchcraft in Early Modern Europe and Colonial America 
>> https://books.google.com.br/books?isbn=0191648841 

>> https://books.google.com.br/books?isbn=1619020785 


95 teses na porta de uma Igreja 12 teses na ponta da enxada





Em 1524 o campesinato alemão organizado publicou 12 teses com suas reivindicações que considerava estar no âmbito das reformas necessárias, também a reforma religiosa. O manifesto reivindicava:
1) O direito de eleger seus próprios pastores / líderes
2) Garantir que a comunidade controlava os recursos: apoiar os pastores, os pobres e as situações de necessidade;
3) A libertação dos servos, já que todos os seres humanos foram redimidos através do sangue de Cristo
4) Liberdade para caçar e pescar
5) O direito de cortar lenha na floresta para uso doméstico
6) Restrição de serviços obrigatórios
7) Pagamento por trabalho extra do que estava estipulado no contrato
8) Redução do aluguel
9) Eliminação de punições arbitrárias
10) Restituição à comunidade de pastagens e campos que lhes foram retirados
11) Abolir o imposto de herança, porque as viúvas e órfãos são roubados de sua herança
12) Todos esses itens devem ser examinados com base nas Escrituras e se algo tem que ser corrigido será.[1]
Era isso. Tudo justo e simples. Mas os príncipes alemães não estavam dispostos a negociar. Lutero também não. E assim começou a guerra camponesa. Animados por uma minoria de teólogos e pastores reformados a guerra camponesa não se conformava com a reforma superficial de uma Europa desigual, elitista e feudal.
Mais de 300.000 camponeses tomaram parte na revolução, muito mais do que qualquer rebelião popular naquela época. Ao todo, cerca de 100 mil pessoas morreram a maioria de camponeses.

1-      A Guerra Camponesa ainda não terminou… é verdade que a revolta camponesa alemã de 1524 não foi a primeira a ser reprimida e violentamente dominada; o novo foi a consolidação de um discurso teológico que legitimou não só a autoridade dos príncipes, mas legitimou a propriedade privada como elemento constitutivo da hierarquia divina: igreja, estado e casa. Em nome dessa ordem Lutero chamou os camponeses de cachorro e palha, apoiou a violência e o massacre de mais de 100 mil camponeses.
2-      Mas esta guerra ainda não terminou! Ela fazia parte de um quadro maior de mudanças que tinha na agricultura sua origem e no estatuto da propriedade sua base fundamental; expulsos, os camponeses de toda Europa assumem o caminho da migração para o novo mundo fugindo das horrorosas guerras religiosas entre protestantes e católicos romanos, fugindo da fome, da doença e da expropriação; não havia lugar para estes milhões no capitalismo em formação;
3-      A terra não era uma questão secundária nem a guerra camponesa uma crise colateral. A repressão e a demonização dos camponeses pelos reformadores tiveram e têm custos pesados para as teologias protestantes, em especial na sua capacidade de entender os últimos 500 anos e seu metabolismo do sistema-mundo fora do interesse teológico ou institucional em si. O campesinato que encheu os navios e atravessou o Atlântico têm a seu favor os vínculos religiosos – católicos ou reformados – e entram na América como território extendido de seu mundo particular: o que não havia para os milhões na Europa a América vai oferecer: terra! A guerra camponesa atravessa o Atlântico norte e sul e vai se esparramar pelo novo mundo. Derrotados no velho mundo vão derrotar povos originários nas Américas protegidos pelo sistema-mundo do cristianismo que confere a estas populações deslocadas um lugar de destaque em sua estratégia de dominação: possuir a terra!
4-      Os nativos e os modos de vida do local vão ser destruídos e destituídos; a guerra camponesa encontra sua outra cara na invisibilidade do lugar e sua gente; a expansão econômica e militar da europa cristã – mesmo com suas diferenças – resolveu sua questão agrária na transferência de milhões de sem terras pobres para outro território; em troca do acesso à terra estes milhões ofereciam o volume necessário de presença para se opor e negar as populações locais. A guerra camponesa encontra sua cara indígena!
5-      “Quando os europeus conquistaram os trópicos, eles puseram em prática as terras e suas cercas. Confiscaram a melhor terra. Eles tribalizaram e escravizaram os povos nativos, forçando-os a cultivar culturas comerciais para exportação. Essa violência massiva contra os povos nativos, a vida camponesa e a cultura rural moldou a agricultura industrializada.” [2]
6-      O mito mais querido do capitalismo é dizer dele mesmo que depende da ética de trabalho do mundo protestante, de sua frugalidade e capacidade de economizar. Mentira! Livros e mais livros foram produzidos nestes 500 anos para dizer da matriz ideológica do protestantismo como matriz do mundo industrial, tecnológico e berço dos modos de pensar e conhecer mais abrangentes e universais. Mentira! O protestantismo resolve sua disputa com o mundo católico, divide os territórios e suas influências e marcha soberano sobre o novo mundo com suas comunidades ávidas pela vida espiritual que se expressava no sucesso material. E os camponeses interditados na velha Europa vão ser promovidos a colonizadores no novo mundo as custas de extração excessiva de recursos que vão bancar o processo de industrialização e ao mesmo tempo a inviabilização da resistência dos povos originários.
7-      “A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco.”[3]
8-      O que estava em disputa nos difíceis tempos da Reforma Protestante... não eram somente ideias religiosas, mas eram formas distintas de grupos distintos exercerem poder sobre os modos econômicos e as duas formas básicas de produção da vida: o acesso à terra (água, madeira, animais, minérios, alimentos, etc) e  o sistema de trabalho. Os fortes debates religiosos estruturam e são estruturados por estas mudanças e enfrentamentos na Europa do século XVI. A importância da religião nesse mundo é inegável assim como inegável também é a importância da terra e posse da terra nas formas de organização dos poderes da época.
9-      Ainda hoje o protestantismo entre nós se cala diante da guerra camponesa insistente, se identifica com a propriedade privada da terra e não é capaz de ouvir e dialogar com as lutas por terra e território de povos tradicionais. Depois de 500 anos as 12 teses do campesinato continuam como desafio dramático para a teologia e a pastoral. Como na poesia de Pedro Casaldáliga:

—Com a força dos braços lavramos a terra
cortamos a cana, amarga doçura na mesa dos brancos.
— Com a força dos braços cavamos a terra,
colhemos o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.
—Com a força dos braços, o grito entre os dentes,
a alma em pedaços, erguemos impérios,
fizemos a América dos filhos dos brancos!



[1] e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/download/1125/925
[3] Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 285.