julho 28, 2017

o último primeiro dia de salvação: bíblia & desejo

Por uma estética do desejo sem culpa (Gênesis 3):
Eva, a primeira. A mulher de grandes olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. A árvore? Boa de se comer! Agradável... agradável aos olhos; gostosa na boca se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo. A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.

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Por uma estética do trabalho e seus desejos (Cântico dos Cânticos):
A Amante. A mulher de grandes boca e pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios, suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar, juntar, separar... trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.



Por uma estética da terra e sua erótica (Rute)
 Rute, a outra. A mulher de grandes ombros curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra. Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados, Rute se despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele dia de recriação.



Por uma estética distributiva e seu prazeres (2 Reis 4, 1 a 7):
 Viúva, a última. A mulher de grande boca aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver escorrer. Maravilhoso... de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava. Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.



Por relações reprodutivas libertadoras e o prazer de decidir:
 Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço pra mais alguém e se lança de mãe e boca:

            O Espírito de Deus está sobre mim... porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres, para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de decisão (entre Isaías e Lucas).

Puro erotismo modelando o útero e projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável... volumoso nas entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o último primeiro dia de salvação.




a mística da luta do povo e a religião sem nome

Desafios: prática simbólica e política de um cristianismo libertador


Pneus, pedras e paus. Pode.
Baldes, cuias, tachos e panelas: também pode!
Cachos de bananas. Sandálias. Chinelos, também.
Livros, Bíblia, poesia rabiscada num papel. Pode!
E a terra! nacos, torrão, punhado, empedrada, poeirenta, montes, rastros.  
Sentida toda de chão.
E a água: molhada de canecas, potes, bacias, garrafas, copos e mãos. 
Suada de sede sempre.
Na mística da luta do povo as coisas, os tempos e os corpos se oferecem como a fome e a vontade de comer, o prato e o que é comido. 


A mística: o que é e o que queria ser
            Na luta do povo nem sempre os tempos podem ser ordenados, nem tudo pode ser planejado. As intervenções e ações obedecem a um plano, um traçado de intenções. Estas intenções estão articuladas por processos de formação e informação que respondem aos desafios do enfrentamento cotidiano e histórico dos movimentos classistas. Questões imediatas de resistência e sobrevivência dos movimentos interagem com os horizontes mais amplos da luta de emancipação das maiorias. Entre uma coisa e outra os processos de formação e informação precisam criar identidade, criar organicidade, mas é a ação direta mesmo que formata na prática as concepções e as mediações de luta, de organização, de vida e de povo.

"a experiência dos atores é a primeira, no sentido de  mais imediata, determinação da ação política, por  isso, para explicar as mobilizações populares é  necessário recorrer às formas, bandeiras e  reivindicações desses movimentos e como  expressam a experiência da sua base social no momento da mobilização, cuja demonstração exige que voltemos a atenção para as tradições, o vasto repertório da cultura urbana e as mobilizações políticas anteriores, porque é a partir deste conjunto amplo, fluído e complexo que os movimentos engendram formas organizativas, criam lemas e bandeiras de luta com os quais se apresentam no debate público e formulam suas reivindicações" (Pinheiro, 2009).

            Nesta passagem entre o imediato e as mediações do que ainda vai ser residem duas dinâmicas vitais das lutas emancipatórias: a revisão crítica e autocrítica da práxis e a apropriação simbólica e afetiva do processo de luta vivido[3]. Estas duas dinâmicas são simultâneas e se visitam podendo estabelecer relações de atrito e/ou de atração dependendo da conjuntura que pode ser de crise, de conquista, de derrota parcial entre outras.
Os movimentos sociais classistas possuem um caráter educativo, que se dá na participação política, nos processos de interação, nas negociações com representantes políticos, nas relações com os mediadores, enfim, a vivência mesmo como espaço de trabalho e educação. Tanto na dimensão da organização política, como na dimensão de uma cultura de classe, os movimentos estabelecem novas aprendizagens e novas tarefas que são vitais na consolidação do sentido de "pertencimento de classe".


"A mística enquanto ritual é aqui compreendida como  um complexo de ações simbólicas que busca a construção da identidade de  um sujeito político através da formação da subjetividade dos indivíduos. No congresso como em todos os eventos de ação coletiva do MST a mística aparece intensamente, busca obter unidade entre os  participantes e faz com que as pessoas se sintam bem em participar da luta e serve de  veículo de aplicação dos princípios organizativos" (Stédile, 2000).

Se fosse só teoria, mas não é.  Ela é chamada Baiana, mas é de Alagoas. Ela é a cozinheira do encontro do movimento de trabalhadores e trabalhadoras desempregados/as. E é mais. Porque não é só teoria: é a vida.
            No final da manhã ela entra na roda descalça e com um garrafão de vidro azul. Uns 5 litros de água. Um rolinho de jornal na cabeça ajuda a equilibrar o garrafão.  Com o pandeiro na mão ela desafia toda lei e a gravidade: dança, toca, canta e equilibra! A voz é forte, cortante. A música fala dos canaviais do nordeste. Ela bate com força no pandeiro e repete o refrão.  Resistência pura.  Ela continua sendo a cozinheira, baiana de Alagoas mas nesse momento ela coloca todo o grupo pra girar e girar em círculo como se a cantoria dos cortadores de cana e sua luta fosse a luta nossa aqui também aqui no Sul do Brasil. E funciona. Por um minuto todos/as nós estamos no canavial, enfrentamos o coronel e a voz dela organiza a nossa luta. Ela bate o pé e a mão. Balança o corpo. O grupo se diverte,  se esbarra. A gente pode ser o que quiser! Ela vai diminuindo as batidas. Até que uma pancada definitiva e última avisa que é pra terminar. Ela tira o garrafão da cabeça e grita: obrigada meu povo! E o povo aplaude: a esperança e a equilibrista! A mulher anuncia: “Tá na hora do almoço!” – agora ela é cozinheira sem nunca deixar de ser a educadora, a mulher que oferece o fio da mística pra fazer caber o dia, os estudos, o enfrentamento do capitalismo, a fome e a vontade de comer.

            Os processos de apropriação simbólica e afetiva da luta popular também oscilam entre momentos organizados e momentos “acontecidos”.  Este momento da “mulher com a garrafa” não foi planejado... mas necessário. Longe de ser a afirmação de espontaneismo, o povo organizado articula suas tradições, suas memórias e suas linguagens e opera na trama com os desafios da intervenção social gerando momentos de pura “mística”.

Mística, "percepção do caráter escondido, não comunicado da realidade", que, como explica Leonardo Boff, "não é o limite da razão, mas o ilimitado da razão”.  A mística do MST tem raízes no milenarismo camponês. Em todo o mundo e desde sempre, o camponês é a pessoa que aspira e acredita na possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a natureza. Em nome dessa utopia, as massas rurais têm se levantado, através dos tempos, contra o mundo real, sempre injusto, cruel e desequilibrado.


            Assim, nas ocupações de terra, nas ocupações urbanas, nas greves, nas manifestações os movimentos sociais classistas organizam “místicas”, momentos celebrativos que têm a capacidade de modificar a experiência expressando-a e apressando-a, potencializando suas alternativas, criando sequencias e sentidos. Na mística tudo e todos podem ser convocados para ajudar a dizer o exato momento da vida individual e coletiva e suas possibilidades. Deus conosco.