Felicidade:
“Fazer a
revolução, como disse o
comandante Tacho,
é como ir à aula numa escola
que ainda não
está construída”[1]
Não me peça para
definir “felicidade”!
Eu sou
aquela que foi feliz e infeliz tantas vezes e de modos tão distraídos e
imperceptívies, que qualquer definição que eu tentasse seria traição. Se eu
dissesse que é o que tenho com minhas crianças; se eu dissesse dos homens que
amei; se eu dissesse da escada da casa da minha mãe; se eu dissesse das
conquistas das lutas do povo ou dos textos terminados... qualquer caminho desse
me levaria sempre de novo para definições imprecisas, tão desnecessárias como a
pergunta: você é feliz?
Não quero escrever um tratado, nem me
aventurar num verbete de dicionário. As idéias não têm história. – apesar de
ser possível uma história das idéias!! - a força impulsionadora da história não
são de novo as idéias, e sim a história material que forma o subtexto da
história ideal[2].
Faço então o
elogio do exercício! Sem roteiros turísticos de felicidades pré-moldadas, me
interessam as trajetórias exercitadas da felicidade como acontecimento de um
percurso e seus atalhos. Exercício de possibilidades. Atalhos de escolhas e
suas vertigens das possibilidades abandonadas, abandonáveis, abandonantes.
Então,
felicidade nem é ponto de partida nem é ponto de chegada, porque mesmo naquela
hora da santa completude “não-me-falta-nada”, me falta a despreocupação de não
desejar segurar o momento, de desistir de querer fazer com que ele dure...
porque se eu me levanto assim da cama, da mesa, do chão da praça tentando viver
“feliz para sempre”, despedaço a experiência e sua concreticidade que não pede
pra ser ícone de nada. Essa completude me faz voltar pra casa, lavar o rosto,
deitar de lado e – me sentindo quase inteira e vulneravelmente humana, eu durmo
e acordo uma mulher melhor, capaz de cultivar caminhos de caminhos assim:
feliz!
da resistência. A memória social é
construída com base neste movimento dialético da lembrança e esquecimento
O corpo do
continente latino americano guarda a história de sucessivos massacres, estupros
e humilhações individuais e coletivos. Cada poro do continente guarda uma
memória dolorida, uma invasão, um golpe. Assim, perguntar pela felicidade no
lado debaixo sul do Equador não deixa de ser um pedido fora de propósito.
Mostrar nossa capacidade de felicidade apesar de tudo não pode obscurecer
relações desiguais econômicas e políticas.
Neste sentido é preciso refletir
sobre “felicidade” como quem sabe que na América Latina fazemos o exercício
cotidiano de esquecer para continuar vivendo. Esquecer não como resignação e
aceitação absurda do destino de opressão, mas como instrumento e mística dos
dominados/as de negação das estruturas de dor, desconstruindo a dor cotidiana
na negação de seu poder identitário e roteiro possível de criação de condições
matérias e simbólicas de reinventar a vida. Mas por que eu me ocuparia com o
tema da “felicidade” dentre tantos outros mais urgentes e mais dramáticos?
A herança mais triste que
o século XX nos deixa é a desilusão, a perda da esperança
Para muitos, a esperança
evaporou da vida, dando lugar a uma reconciliação amargar com a realidade. Não
vai ser possível criar a sociedade livre e justa com que sonhamos...
Estreitamos nossos horizontes, diminuímos nossas expectativas. A esperança
desaparece de nossa vida, a esperança desaparece de nosso trabalho, a esperança
desaparece de nosso modo de pensar. Foucault o disse muito claramente no
primeiro tomo da História da Sexualidade quando diz que “o medo do ridículo ou
a amargura da história impede a maioria de nós de associarmos revolução e
felicidade, ou revolução e prazer”. [3]
Existe
assim uma tarefa política e um exercício de espiritualidade de esperar contra a
esperança que faz com que a teologia latino americana tenha que fazer sua
escolha de “com risco” ou “sem risco” todos os dias, em cada página, em cada
benção, em cada palestra ou curso de formação, em cada oração antes de cada
marcha: um outro mundo é possível?
Não? Um outro mundo NÃO é possível:
irmãos e irmãs, acomodai-vos! Comei e bebei, sejam caridosos. Louvai! Louvai!
Até domingo que vem.
Sim?
Um OUTRO mundo é possível! irmãos e irmãs, desacomodai-vos! O medo do ridículo
e a amargura da história não combina com os amantes do evangelho. Juntai
revolução e felicidade: ide em paz, eu vou também!
O alargamento dos horizontes, a
ampliação dos horizontes exige estudo teórico e comprometimento ético político
no entendimento da “felicidade” como tarefa civilizatória de superação das
formas de exploração de minorias e a criação de correlações de forças sociais
favoráveis e humanizadoras numa sociedade participada pelas maiorias no
exercício das formas de poder e prazer. Submergidas de conflito, estas tarefas
exigem mais ainda a capacidade de criar formas de luta, de militância e de
coletividade que já garantam as correlações humanizadoras e as possibilidades
de “felicidade” em meio ao conflito. Exige também as possibilidades da crítica
e da auto-crítica, do fracasso e do estabelecimento de diálogos restauradores...
e dormir em paz.
Uma teologia de um outro mundo
possível é esta teologia que se ocupa de materialidades,
Dos dicionários latino-americanos: léxicos
inexatos
Não vou oferecer
nenhuma felicidade fácil.
Nem
vou me esforçar por dizer de uma triste felicidade terceiro mundista.
Não vou incensar
a vida cotidiana nem louvar possibilidades na vida comunitária.
Nada de
histórias da vida do povo evocadoras de utopias gentis escoradas na vida do
povo da Bíblia e suas utopias gentis.
Nenhum sorriso vale a dor que as sitemáticas teologias e as exegéticas
exegeses exigem do texto, da história e do povo. Melhor que não. A sobriedade
aqui é o mínimo que se pede: deixar as pessoas em suas baldias narrativas sem a
invasão curiosa e gulosa de intelectualidades gentis.
Não vou
contar das festas brasileiras, nossa alegria, nossa música, dança e simpatia.
Tudo isso é nosso também mas não como absoluto feliz de um povo contente apesar
de tudo. A festa e os rituais são em nosso corpo latino-americano exercícios
desesperados de esquecimento... exercícios de apropriação da história e
elaboração da memória. O que dói no corpo é negado na vulnerabilidade da festa
e do ritual de oração como empoderamento da pele que precisa esquecer para
continuar vivendo.
Quero cultivar um atalho hermenêutico que aprendo e respiro nas lidas e
convivências com pastorais e movimentos populares de uma metodologia de baldias
narrativas e leituras – da realidade, dos mitos, da bíblia, de literaturas
regionais ... Estas leituras e seus espaços de performance, ritual e liturgia
criam significados e espaços de sociabilidade. São palavras e espaços de
esquecer e de lembrar, de identificar o que tem valor na vida, de conferir
compromissos e celebrar. Felizes assim, os pobres. Deles e delas é o Reino de
Deus.
Repito que não há absolutos nesse
caminho. Esquecer não é o elogio da morte do passado em nome da manutenção da
ordem (familiar, política, eclesial...). Esquecer é a capacidade material e
simbólica de não enlouquecer, de continuar vivo e acreditando. Neste sentido a
religião e as festas populares na América Latina são mecanismos vitais e
contraditórios da luta de classe e da prática revolucionária (viva o ópio do
povo!! suspiro dos oprimidos!).
Parte
deste exercício de esquecimento e de celebração é a negação do deus da
colonização, o deus invasor e sua reinvenção nas formas sincréticas e
inexegéticas da ressurreição do corpo. O deus violento é vencido no
esquecimento repetido das festas de memórias frouxas, de conteúdos inventados
que devolvem ao corpo o prazer do sagrado feito ritmo e tempero. No caldo das
tradições a Bíblia é ingrediente freqüente e freqüentado, convivendo com a
ambigüidade do autoritarismo permanente da catequese mal-feita e o imaginário
fantástico dos calendários sagrados.
Neste
sentido a busca de uma metodologia popular de leitura da Bíblia cultivou estas
duas vertentes tratando de reverter a catequese autoritária pelo viés de uma
educação popular que interferisse nos processos de evangelização e leitura
comunitária da Bíblia e na reconfiguração do espaço litúrgico como expressão
dos imaginários e simbólicas populares. Esta busca de metodologias sempre se
deu por dentro de um embate ideológico
Na literatura brasileira uma das
matrizes possíveis de compreensão e cultivo deste exercício simultâneo de
leitura da realidade, seleção de motivos, esquecimento proativo e celebração
programática de elementos culturais reinventados poderia ser identificada num
possível movimento antropofágico
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo.
Fizemos cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento
da lógica entre nós.(...)
Nunca fomos catequizados. Fizemos
foi carnaval. O índio vestido de senador do Império. Ou figurando nas óperas de
Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tinhamos o comunismo. Já tinhamos a língua surrealista. A idade de Ouro.[4]
Já tinhamos o comunismo. Já tinhamos a língua surrealista. A idade de Ouro.[4]
[2] HAUG,
Wolfgang Fritz, O projeto do dicionário histórico-crítico do
marxismo, Crítica Marxista no. 10, 2000, Editorial Boitempo, São Paulo, p.
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[3] John
HALLOWAY, O Zapatismo e as Ciências
Sociais na América Latina http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/hemeroteca/nor/nor0236/nor0236_02.pdf
[4]Oswald de
ANDRADE, Revista de Antropofagia (São
Paulo), n.1, ano 1, maio de 1928, in: www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html