das
“aparições” marianas nas políticas de assistência e as possíveis tarefas de uma
teologia queer-feminista
para
Rute Noemi Souza
pastora,
teóloga e assistente social, advogada,
compositora,
contadora de histórias para crianças,
mãe,
cantora e amiga.[1]
Resumo
A
“imagem” da Virgem Maria associada à família, à assistência e à saúde no
registro das políticas voltadas para a as mulheres tem uma história que
articula teologia e política. É a história do forte acento intervencionista da
Igreja/das Igrejas nos assuntos do Estado pressionando todo o conjunto social.
A partir de estudos de documentos históricos e debates contemporâneos esta
reflexão pergunta por uma teologia queer-feminista neste âmbito.
Abstract
The "image" of the Virgin Mary associated
with family, assistance and health in the register of policies focused on women
has a history that articulates theology and politics. It is the history of the
strong interventionist accent of the Church / of the Churches in State affairs
by pressing whole social set. Based on studies of historical documents and
contemporary debates this reflection asks for possible approaches for a
queer-feminist theology in this area.
palavras-chave: Virgem Maria,
políticas de assistência, Estado, mulheres
Um
vídeo do grupo Porta dos Fundos criou polêmica – de novo! – no natal de 2013! O
site Gospelmais conta assim o acontecido:
No diálogo (com o anjo Gabriel),
Maria conta a seu noivo que está grávida e o filho não é dele. Revoltado, o
carpinteiro diz que quando a história se espalhar, vai ser chamado de corno. O
arcanjo interfere e diz que José precisa compreender o propósito e que a ideia
é que todos saibam que o Filho de Deus nasceu de uma mulher virgem.
Gabriel continua sua explicação
dizendo que “está uma dificuldade achar mulher virgem”. Nesse momento do
diálogo, José interrompe e diz “Mas Maria não é mais virgem”, quando a própria
Maria repreende o noivo: “Gabriel está falando, olha a falta de educação”, diz
a progenitora.
Queixando-se de que “ninguém
acreditará” que sua mulher engravidou virgem de um filho de Deus, José é
tranquilizado: “Querido, isso aí, relaxa. O pessoal acredita em qualquer
coisa”.[2]
É
sobre esta “qualqueer” coisa sobre Maria que esta reflexão quer se ocupar,
entrando e saindo pela Porta dos Fundos.
“Virgem
Maria” é aquela do aparelho do Estado (colonial, imperial, republicano, militar
e democrático) e a mesma das Romarias da igreja popular; é a mesma do
Império: Nossa Senhora da Conceição e a mesma-outra da República: Nossa Senhora
Aparecida... e
também a mesma-e-outra de Canudos, Contestado, da irmandade dos pretos de Chico
Rei e de centenas de festas populares; a mesma que sobrevoa a imagem de
Anastácia e da Princesa Isabel na parte superior da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito; Rainha e Padroeira do Brasil na revolução
getulista de 1930; nomeia a praia e o bairro: Copacabana. Híbrida, é Yemanjá e
Oxun e é, no Santo
Daime, a Cannabis sativa - planta sagrada. É a mesma também das
marchas com Deus pela família e a que desperta intenso repúdio imagético de
pentecostais.
... pode-se escrever uma História do Brasil descrevendo
os diversos significados que a imagem de Nossa Senhora teve ao longo desta história[3].
Esta simultaneidade e ambiguidade do ícone da Virgem Maria e suas
múltiplas aparições e representações apontam para conteúdos internos do
imaginário cristão católico e sua capacidade histórica de impor e reproduzir
valores e significados sobre o conjunto da sociedade brasileira, mas também
deixa ver - na diversidade das recepções e vivência do ícone - conteúdos
diversos e contraditórios não controlados plenamente pelas agências religiosas
hegemônicas. Parte significativa do catolicismo popular vive de expressões mais
ou menos sincréticas em que as variações “marianas” confirmam e modificam a
teologia e a dogmática católica romana em sua oficialidade.
Muitos dos modelos explicativos para a centralidade do ícone da Virgem
Maria na América Latina utilizam uma compreensão essencialista do “feminino”
atribuindo aos conteúdos míticos da deusa-mãe ou da mãe originária -
supostamente presente em todas as culturas - a via de comunicação privilegiada
que explicaria a presença e persistência ambígua da Virgem Maria no campo
religioso e na cultura. O cristianismo como religião patriarcal, hierárquica e
de exclusão conseguiria operar com formas flexionadas de inserção cultural na
utilização de um suposto “princípio feminino” que explicaria também a aparente
feminização do religioso entre nós.
Entretanto os estudos feministas da religião recusam esta perspectiva
fazendo a crítica do senso comum sobre uma suposta essência do feminino e um
maior investimento natural das mulheres na religião. Este senso comum é reforçado
pela ausência de consideração das relações sociais de poder e gênero nos
estudos da religião em geral e nas ciências da religião em especial.
Nas palavras de Maria José Rosado Nunes:
Tal visão
esconde um enorme equívoco que as atuais formas fundamentalistas das religiões,
no Ocidente como no Oriente, vêm desvendar. Na verdade, as religiões são um
campo de investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens
dominam a produção do que é 'sagrado' nas diversas sociedades. Discursos e
práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são
definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As mulheres
continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas
pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento da
população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos
rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso[4].
O uso do “feminino” não pode ser reduzido a uma compreensão cultural
essencialista nem tão pouco esgotado numa racionalidade histórica que faz
desaparecer a materialidade sexuada do ícone. No meu entender os estudos
feministas da religião articulam hermeneuticamente os instrumentais
historiográficos e culturais garantindo que a mulher no ícone e as mulheres na
realidade não desapareçam, mas participem ativamente do trânsito de
significados de religião que são produzidos.
No atual cenário de fortalecimento da religião no espaço político e
relativa «desmitologização da modernidade»[5] –
fruto de suas contradições internas, e também dos deslocamentos epistêmicos das
teorias feministas e pós-coloniais - a pergunta pelo “feminino no campo
religioso” se torna significativo - o que é confirmado pelos intensos debates e
resistência por parte de setores conservadores e fundamentalistas a respeito de
políticas voltadas para mulheres na atualidade.
O “re-encantamento” religioso significaria também uma desaceleração na
garantia de direitos e participação das mulheres[6]?
Significaria também um recrudescimento com as formas clássicas das hierarquias
das diversas agências religiosas? Qual o papel e o lugar da religião no debate
e práticas de políticas de assistência? Qual o impacto deste cenário para
outras matrizes religiosas?
Mesmo considerando o protagonismo da assim chamada “bancada evangélica”
no debate e na intervenção contrária às políticas públicas voltadas para a
autonomia das mulheres é preciso identificar e analisar a persistência do
imaginário católico romano atualizado e condensado no ícone da Virgem Maria
mesmo no discurso “evangélico”.
Voltemos para a Porta dos Fundos. Uma mostra disso está nos
pronunciamentos do deputado pastor Marcos Feliciano – que já foi presidente da
comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados – num programa de
auditório[7].
o deputado move contra o grupo de humor na
internet Porta dos Fundos, Feliciano se saiu em defesa dos cristãos, de um modo
especial dos católicos, veneradores da Virgindade de Maria. Na representação
que o deputado ajuizou contra o grupo de humor é pedida a indenização de 1
milhão de reais. ”Esse dinheiro será destinado para as entidades que se
sentiram ofendidas como as Santas Casas de Misericórdia que trazem a imagem de
Maria que foi vilipendiada nesse vídeo”, explicou.
Independente do debate sobre “liberdade de expressão” contido neste
episódio, o alinhamento de um deputado representante da assim chamada “bancada
evangélica” com os conteúdos em torno da “imagem
de Maria vilipendiada” expressa bem este núcleo de persistência do
imaginário “mariano” no conjunto da sociedade brasileira, para além das áreas
de influência da igreja católica romana. A persistência também opera na
vinculação deste imaginário com as políticas de assistência representadas pelas
Santas Casas de Misericórdia.
A “imagem” da virgem associada à família, à assistência e à saúde tanto
no registro das políticas de assistência como nas políticas voltadas para as
famílias e mulheres tem uma história que articula teologia e política. É a
história do forte acento intervencionista da Igreja/das Igrejas nos assuntos do
Estado pressionando todo o conjunto social em especial na matrix cristã
católica, mas também para as variações do mesmo tema evangélico o que explica
um ecumenismo conservador compartilhado.
Aparecida na História
É de vital importância desnaturalizar estas compreensões que igualam de
modo acrítico o feminino na maternidade e por extensão à caridade e
assistência/ e buscar um olhar histórico para a questão em especial para
entender porque ainda hoje estas conexões persistem. Para entender os usos do
ícone da Virgem Maria nos discursos e imaginários religiosos que buscam se
legitimar na intervenção e manutenção de vínculos Igreja-Estado a trajetória
pode ajudar.
no que se refere à tradição do Ocidente e de
Roma, apenas no século V encontramos o primeiro exemplo de uma invocação latina
direta, em estilo de hino, a Maria [...]; somente no século VI o nome de Maria
foi introduzido no cânon romano da missa [...] somente no final do século VI
[...] se desenvolveu uma poética marial latina sempre mais rica [...] apenas no
século VII foram assumidas as festas marianas orientais da anunciação, morte,
nascimento e purificação [...] Apenas no fim do século X surgem certas lendas
sobre a força prodigiosa da oração a Maria [8].
O culto à Virgem se consolidou na
Europa a partir do século XII, onde Maria representava o ideal de mulher com
conteúdos disciplinares de pureza, castidade e concepção sem pecado: um ideal
que deveria ser seguido pelas demais mulheres. De modo especial na consolidação
da ordem imperial de Portugal e seus projetos coloniais, a devoção religiosa
dedicada a Nossa Senhora é evidente e bem documentada sendo possível
identificar os trânsitos de significados e as idealizações identitárias que
interessavam ao projeto expansionista e “civilizador[9]”.
“(...), Verdade, mansidão & justiça vos hão de
levar adiante, Vossas armas serão victoriosas, & vosso Reyno eterno. Que
tudo vos está prometendo a soberana Raynha do Ceo, ó mãy de Deos com a
assistência que faz a vossa mão direita, que se cõ essa mão aveis de mover a
espada, que esta divina Senhora ajudarvo la a mover. Seja assi, Senhora, seja
assi, & eu vos prometo em nome de todo este Reyno, que elle agradecido levante
hum tropheo a Vossa Imaculada Conceição, que vencendo os séculos, seja eterno
monumento da Restauração de Portugal”·
O catolicismo que desembarca no
Brasil transferiu para a colônia um formato de poder religioso que se expressa
na devoção mariana que ao mesmo tempo fazia parte da alta política do Estado e elemento simbólico vital de coesão social
que vai marcar o período colonial e monárquico:
o catolicismo
português era profundamente mariano. A figura de Maria contribui historicamente
para a construção daquela nação na sua coesão interna e inspirou as suas
maiores empresas políticas, como as guerras contra os mouros e as grandes
descobertas marítimas. O marianismo português fazia parte da alta política de
Estado. [10]
No período colonial as escolhas e
resoluções do ícone mariano no Império Português eram trasladadas para as
colônias e em especial no Brasil consolidou uma sobreposição entre o imaginário
do Estado e da Igreja que pode ser identificado ainda em hoje em documentos,
arquitetura de templos e prédios públicos históricos e nas formas de festejos
locais e nacionais.
Em 1640 D. João IV ratifica o ato de D. Afonso Henriques
e proclama a Virgem da Conceição padroeira de Portugal e todas as suas
possessões, inclusive o Brasil. A devoção a Maria era então uma prerrogativa de
dinastia no reino português. Pedro Álvares Cabral trouxe em sua nau a
imagem de Nossa Senhora da Esperança. A primeira capelinha construída no Brasil
em 1503 tinha o título de nossa Senhora da Glória. O primeiro governador, Tomé
de Souza, cuja nau capitânea era consagrada à Nossa Senhora da Ajuda,trouxe a
sua imagem.[11]
Este
imaginário vai ser revisitado e modificado pelos movimentos republicanos e a
reconfiguração das relações Estado-Igreja. Na Europa a República tratou de
evitar o imaginário mariano sem, contudo abdicar do imaginário feminino:
acionou parte da iconografia da antiguidade na veiculação da mulher como
alegoria para a liberdade,o que expressava o projeto de laicização dos
positivistas. A figura clássica do
rei-sol foi substituída pela figura de mulher conhecida como Marianne[12]
que não é mãe, mas sugere o imaginário das “musas”:
Par exemple la Liberté, selon une convention bien
établie par les manuels d’iconologie du XVIe au XVIIIe, est représentée par une
femme au bonnet (de la liberté), et qui brandit un sceptre ou une lance, avec
des chaînes brisées aux pieds ; le bonnet peut coiffer l’allégorie ou être
brandi par celle-ci au bout de la lance ; c’est cette dernière forme qui
est adoptée pour le sceau de la
République française le 22 septembre 1792, dès
le lendemain de l’abolition de la royauté comme si adopter un nouvel
emblème représentatif de l’État était la première chose à faire ; mais
regardons la statue de la Liberté éclairant le monde (conçue dans les années
1865-75 et érigée en 1886 à New York)...[13]
No
Brasil a República – mesmo que com fortes inspirações francesas[14] –
não podia dispor deste imaginário feminino porque este espaço de representação
estava comprometido com a igreja católica ocupada pela figura da Virgem Maria.
A República no Brasil se instaurou de modo parcial e insatisfatório o programa
da modernidade em seus aspectos laico e civil:
No Brasil, em uma República cujo suporte
mais importante era o Exército — quase todos os cargos da Administração
anteriormente civil seriam ocupados por oficiais no Brasil — a Liberdade (como
valor e como alegoria feminina) não podia ser propulsada ao primeiro plano,
ocupado por valores mais militares de disciplina e ordem[15].
Neste
sentido seria importante perguntar pelo alcance do projeto de “modernização” no
Brasil perguntando também pelos avanços emancipatórios das mulheres
considerando as aproximações/controvérsias Igreja –Estado representada na proclamação da Virgem de
Aparecida como padroeira do Brasil. O “feminino”da Virgem na relação com o
Estado não se refere a nenhuma qualidade ou quantidade de participação de
mulheres no processo republicano – embora houvesse – mas era um instrumento a
mais de manutenção da tradição autoritária e clientelista das relações de
classes e gênero no país.
Desse modo, enquanto de um lado o Estado
republicano apresentava seus símbolos cívicos e, mesmo sendo positivista, não
deixava de fazer concessões religiosas, por outro a Igreja, que já vinha há um
longo período incentivando a devoção da imagem de Aparecida, aumentou o
estímulo na década de 1890, quando a Igreja esforçou-se para transformar seu
símbolo religioso em representação cívica.[16]
Esta
resolução simbólica se fazia seguir também por um sistêmico processo de
disciplinamento da sociedade sacudida por movimento contestatórios no campo e
na cidade. Autoridades, filósofos, médicos e juristas - nos séculos XIX e parte
do XX - confirmaram o ideal de mulher que subordina sua existência à
maternidade, como uma extensão dos conteúdos religiosos dos ideários cristãos
agora investidos de respaldo científico [17] e
projetados na vida pública.
...e na América Latina também:
Estes processos tem significativos pontos em comum com as experiências
latino-americanas de constituição dos Estados nacionais. No México, Argentina,
Brasil e outros as elites políticas utilizaram do símbolo da Virgem como
imaginário de coesão e identidade nacional na contramão dos conteúdos
republicanos e as exigências da modernidade secularizada.
Aparentemente o ícone da Virgem Maria se oferecia de modo exemplar e
eficiente como “patrona” nacional, deixando claro que o epíteto “matrona”
comprometeria a continuidade desejada de manutenção do feminino sobre controle
das hierarquias em negociação com as elites políticas do período. A Virgem foi
um álibi, um conteúdo disponível e de forte penetração em todas as camadas
sociais e de fácil interação com setores sociais de outras matrizes religiosas.
Así, en 1930 en Argentina, y en 1931 en
Brasil, imágenes de la Virgen María - Luján y Aparecida, respectivamente-
fueron declaradas patronas nacionales. Se colocaba, así, a la Nación enciernes
bajo la protección de un sagrado católico que, al mismo tiempo, la legitimaba
[18].
Nossa Senhora da Misericórdia: políticas de
assistência ou caridade?
No campo das políticas de assistência os antigos arranjos entre Igreja e
Estado vão ser reconfigurados na primeira metade do século XX em especial no
âmbito das políticas populistas do Estado Novo (1930 – 1945). A Igreja católica
havia perdido alguns dos itens de influência do Padroado com a Constituição de
1881 (a regularização do casamento civil, o fim do pagamento do clero pelo
Estado, a secularização dos cemitérios passando para controle das prefeituras e
o fim o ensino religioso nas escolas de responsabilidade da igreja, entre
outros).
Um dos pontos centrais nestas relações de poder entre Igreja e Estado
sempre foi o protagonismo quase exclusivo que a igreja católica manteve e
mantém no campo da assistência social, entendida quase como uma extensão das
obras de caridade. Na história do Brasil, a tradição luso-brasileira esteve
sempre presente nas ações das Irmandades e Ordens Terceiras, ambas de origem
medieval, leigas e ligadas, direta ou indiretamente, à Igreja Católica. As
Ordens Terceiras estavam diretamente vinculadas a uma ordem religiosa, a quem
cabia permitir-lhes o funcionamento e, no caso específico do Rio de Janeiro,
vale lembrar os hospitais mantidos pelas Ordens Terceiras de São Francisco da
Penitência e de Nossa Senhora do Monte do Carmo.
As Irmandades, por sua vez, eram
uma reunião de leigos em torno do culto de um santo determinado, à beneficência
e à ajuda mútua. A mais famosa é, sem dúvida, a Irmandade de Nossa Senhora, Mãe
de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, que contava com hospital, asilo,
orfanato etc. para a realização de suas obras de caridade, um conjunto que forma
a Santa Casa da Misericórdia. Ao lado da Santa Casa, outras irmandades
mantinham suas obras de caridade, incluindo a manutenção de hospitais[19].
O nome Misericórdia era uma das
antigas invocações da Virgem Maria, que foi utilizado entre 1240 e 1350 para
nomear uma irmandade em Florença - Nossa Senhora da Misericórdia[20].
O uso do nome e dos atributos da Virgem para a ação da caridade vai ser uma
marca importante no modelo de cristandade do projeto colonial.
O que é importante destacar é que no mesmo cenário de distanciamento da
Igreja e Estado no período de consolidação da República e muito mais no período
do Estado Novo se intensificou o processo de implementação das Santas Casas de
Misericórdia no Brasil, mais concretamente entre 1922 a 1945. A política estatal
vai utilizar a estrutura das “Misericórdias” para efetivar a política de
assistência e saúde. Esta influência é tão importante e duradoura que vem
inspirando estudos e pesquisas de grande significtiva:
... (as Misericórdias) se fortaleceram no segmento
de assistência médica, durante o período em análise, tornando o Estado
brasileiro dependente das suas actividades. Este trabalho discute ainda o
imaginário social da caridade e filantropia e a forma como tais preceitos
configuraram a assistência médico-social no país[21].
Uma análise superficial da legislação sobre as políticas de assistência
no período getulista deixa ver um estreito relacionamento do Estado com as
Misericórdias. O Governo iria tornar-se,
como na actualidade, um usuário do sistema, pagando pelos serviços[22].
A Constituição de 1934 vai consolidar os resultados das negociações
Igreja-Estado tal como a retomada do ensino religioso nas escolas públicas, a
presença de capelães militares nas Forças Armadas e a subvenção estatal para as
atividades assistenciais ligadas à Igreja[23].
Este modelo, mesmo sendo alterado posteriormente nos arranjos jurídico-constitucionais,
deixou uma marca persistente tanto na caracterização caritativa da assistência
social – expressas nas virtudes da Virgem Maria – como numa suposta
legitimidade da Igreja Católica de intervir nos assuntos relacionados com os
serviços públicos de assistência, de modo especial nas políticas de
maternidades e apoio à infância.
Fica evidente na história do período Vargas o surgimento de diversos
órgãos e políticas que “entregavam” a assistência e os cuidados médicos aos
cuidados da igreja católica como no caso da Escola de Enfermeiras do Hospital
São Paulo fruto de um convênio com a Arquidiocese de São Paulo em 1938.
A Virgem e a Primeira-Dama
Esta
projeção, a partir do ideário católico romano no ícone da Virgem Maria,
consolida um lugar para o feminino no âmbito privado e deriva daí sua
participação na vida política, de modo especifico, no campo da assistência como extensão da
família e do feminino. De modo especial na organização da Legião da Brasileira
de Assistência (LBA) em 1942, sob o comando da então “priemira-dama” Darcy
Vargas[24],
o Estado brasileiro tornou estes vínculos institucionais. Por um lado a Virgem
Maria Padroeira do Brasil e do outro lado a “primeira–dama” responsável pela
política de assistência: assim foi cimentado o difícil caminho para as mulheres
na construção da autonomia e emancipação com garantia de direitos.
Esta
presença – no meu modo de ver, incômoda - da “primeira-dama” quase como natural
na administração pública expressa a co-naturalidade da assistência social com
os assuntos familiares e, por extensão – também incômoda – com os papéis na
política desempenhados pelas mulheres. Num artigo da Revista Filantropia –
voltada para o terceiro setor, ONGs e associações comunitárias – encontramos o
seguinte comentário:
O primeiro-damismo, enfim,
transformou-se em um dos cargos de maior expressão e influência do poder, e as
questões sociais passaram a predominar a pauta de atributos do cargo, tanto é
verdade, que muitas das ações solidárias no mundo são lideradas pelas
primeiras-damas, inclusive no Brasil. O
Terceiro Setor muito ganhou com tamanha influência, pois sempre foi cotejado
pelo primeiro-damismo, que descobriu através dele, a nobre arte de associar
interesse político com ações sociais...
Nós, da Revista Filantropia, acreditamos
que o caminho para o bem é apenas um detalhe, pois o que vale mesmo nesta
empreitada, é ajudar alguém, e se o estigma de que o primeiro-damismo é que
traduz a solidariedade, não podemos deixar de homenagear as milhares de
voluntárias e freiras (que nem casadas são), porém também são primeiras-damas,
cujo par é Deus.[25]
Longe do âmbito das igrejas e suas
políticas de disciplina do feminino mas ainda sob influência do imaginário que
associa as mulheres à nobre arte de
associar política e ação social, este editorial atualiza para o senso-comum do
terceiro setor os imaginários que vinculam e naturalizam o “fazer o bem” com o
feminino, passando pelo lugar - inventado – da primeira-dama chegando até às
voluntárias e... freiras (que) também são
primeiras-damas, cujo par é Deus. Voltamos à Maria. Ela não está nomeada...
mas persiste com suas “aparições” estratégicas e virginais.
As
freiras são “homenageadas” e identificadas como grande força no trabalho de “ajudar alguém”, da expressão da “solidariedade”, são voluntárias, não são
casadas, isto é, falta a elas uma referência masculina que é compensadas
fazendo par com... Deus! Neste lugar as mulheres religiosas consagradas são
aproximadas do lugar privilegiado da também virgem, também solidária e...
primeira-dama de Deus: Maria. Esta leitura secularizada das resoluções
teológicas e institucionais dá conta dos fragmentos ainda persistentes, das
“aparições” da Virgem na cultura e na sociedade.
Longe
de ser um fenômeno que tende a desaparecer com os processos de emancipação das
mulheres, o “primeiro-damismo” segue firme e forte, à esquerda e direita, como
no trabalho de pesquisa que traz o seguinte quadro sobre cidades no Rio de
Janeiro[26]:
Mantidos
os factóides históricos e imagéticos – da Virgem e da primeira-dama – nós ainda
sofremos e enfrentamos esta estratégia patriarcal que nos bons e maus tempos,
no passado e ainda hoje posicionam o caráter sexista da Igreja e Estado.
Na Porta dos Fundos da Santa Casa de Misericódia
Reconhecer
este trânsito de poderes e símbolos nas históricas relações Igreja-Estado
significa identificar a matriz religiosa cristã e católica na formação das
políticas de assistência e seus âmbitos e interfaces na saúde, na educação, no
planejamento e na economia. Mesmo já não mantendo hegemonia de influência nas
coisas públicas, os ícones e mecanismos do catolicismo operam ainda de modo
eficiente.
No processo histórico de construção da
sociedade civil brasileira, os limites do Estado para implementar uma política
social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em
acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa "devolução" das
funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo
um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do
código cristão da "caridade".[27]
Estas funções do Estado moderno – seguridade social, saúde, etc. - no
Brasil não encontraram uma via de consolidação estrutural e ficaram reféns dos
modos de intervenção privada em especial do cristianismo católico. O
persistente nesta estratégia é a “modelagem” do feminino e do âmbito da família
como mediação das políticas de assistência que, se por um lado empodera de modo
significativo - mas parcial - as mulheres pobres (acesso a renda, gás, luz
elétrica, leite, etc.) por outro lado aciona um mecanismo cultural de
subordinação: o feminino “assistencioso e misericordioso”.
A estruturação de uma proposta
assistencial que tinha caráter público foi deslocada para uma abordagem
privada, no âmbito da modelagem católica e fundamentada em concepções
religiosas que persisitem ainda hoje.[28]
Esta influência do cristianismo católico tem dois aspectos importantes
para a compreensão mesmo das políticas de assistência e em particular para as
profissionais deste setor, e para as mulheres em geral.
Essa herança, advinda da
disseminação do pensamento cristão, transformou o cuidado aos doentes, dantes
realizado por mulheres, como peculiar a uma condição feminina, a uma das formas
de caridade adotadas pela igreja e que conjuga com a história da enfermagem. Os
ensinamentos de amor e fraternidade transformam não somente a sociedade, mas
também o desenvolvimento da enfermagem, marcando, ideologicamente, a prática de
cuidar do outro e modelando comportamentos que atendessem a esses ensinamentos.
[...] a enfermagem passou a ser uma atividade de penitência que se realizava
como meio de purgação e purificação[29].
De igual modo esta indistinção entre a assistência social e o feminino se
visibiliza nos arranjos políticos de alocação das políticas para as mulheres.
Ainda persiste – como já foi visto neste texto - ações voltadas para mulheres e
famílias sob a liderança de primeira-dama... como extensão do espaço da casa
grande do homem em cargo político e sua senhora para a senzala da assistência
social.
Outro indício da persistência destes vínculos está na localização de
políticas para as mulheres que, muitas vezes em nome da transversalidade, fica
encurralada nas secretarias de cunho assistencial sem conseguir o debate
sistêmico com as secretarias de economia, desenvolvimento e segurança – entre
outras – tão necessário tanto para as mulheres e suas políticas como para as políticas de assistência em
geral.
A alocação das
Coordenadorias/Assessorias da Mulher dentro de Secretarias com programas
delimitados (como assistência social), ou dentro de um pretenso guarda-chuva
(como direitos humanos; cidadania etc.) que torna ainda mais enviesada sua
articulação com as demais Secretarias e compromete, em geral, sua perspectiva
de atuação política. Não é por acaso que se tem debatido a importância da
existência de uma Secretaria específica[30].
Mais ou Menos
Virgem & Totalmente Ambígua: questões para uma teologia queer-feminista
A partir das considerações
e leituras até aqui feita fica evidente que estamos diante de “fatos” culturais
e discursivos contraditórios, realidades políticas de disputa de poder e de uma
materialidade icônica feminina num âmbito patriarcal. Nesse sentido algumas
tarefas se colocam para uma teologia queer-feminista na América Latina que
passam não só pela pergunta sócio-histórica, mas também pela crítica do aparato
religioso em movimento:
·
o que no imaginário da Virgem Maria confere a
apropriação simultânea, ambígua conflituosa dos conteúdos religiosos?
·
Como é que o mesmo ícone religioso transita
entre o mundo da autonomia teológica, ritual e organizativa da religião popular
e o mundo dos acordos entre Estado e Igreja no limiar dos ajustes republicanos
no Brasil?
·
Como é que este trânsito não implica em
desaparecimento dos termos como síntese redutora, mas constitui o fenômeno
religioso como ambiguidade?
·
De que modo a oficialização da Virgem Maria como
padroeira do Brasil representa um investimento masculino por excelência – no
Estado e na Igreja – garantindo as condições objetivas e subjetivas da
dominação patriarcal da produção do que é “sagrado”?
A “Virgem Maria” como
realidade social de crença deve ser estudada considerando o caráter de
constructo histórico sem, contudo deixar desaparecer, os ”matizes” e
“complexos” de simultaneidade e ambiguidade. A simultaneiedade e ambiguidade do
ícone “Virgem Maria” não são elementos acidentais nem modernos: mas expressam o
caráter performático da experiância religiosa.
A ambiguidade do ícone da Virgem
Maria multiplica o objeto de estudo nele mesmo obrigando à revisão de conceitos
petrificados: a cultura nem é instância de totalidade social (acima do
econômico e do social) nem é reflexo ideológico da estrutura social e
econômica. No caso da abordagem da “Virgem Maria” como problema
histórico-cultural estes dois modelos podem participar dos rascunhos descritivos
e analíticos, mas não esgotam a recriação da experiência na simultaneidade de
tradição e tradução[31].
Neste particular os
estudos feministas são importantes para apontar a necessidade da rejeição do
caráter fixo e permanente da oposição binária "masculino versus
feminino", “sagrado versus profano”, “virgem versus puta”, “popular versus
civilizado” e “público verus privado”. A
historicização e "desconstrução" destes termos busca reverter e
deslocar a construção hierárquica e seus usos ideológicos, em lugar de
aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza das coisas mesmo (do Estado,
da família, da pátria, da nação, etc).
Para romper com este padrão e tornar Maria
“indecente” são necessários “imaginários de ruptura” (Ricoeur), pois “a
Mariologia é sexualmente estagnada. Somente uma ruptura no nível da imaginação
teológica pode libertar a ela e as comunidades devotas a ela... Assim, “o
processo de tornar a Virgem indecente [indecenting] deve ser então um processo
coletivo de desnudamento [undressing] dela, e sobreposição nela das vidas de
mulheres mostrando sua irrelevância libertadora, a menos que um novo
imaginárioreligioso da Virgem possa ser reconstruído sobre a base da antiga[32].
Para Da Matta a ambíguidade é uma metáfora
adequada para falar da identidade
brasileira que o segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na
possibilidade de estudar aquilo que está ‘entre’ as coisas[33].
Este parece ser o melhor lugar para situar a Virgem Maria: “entre” as coisas.
A
análise/interpretação do ícone em situação de ambiguidade e conflito se dará
através da interação dos estudos feministas e suas possibilidades indecentes[34].
O caráter inter-disciplinar da Ciências da Religião é fundamental para propor
uma abordagem sistêmica, complexa e processual do tema criando as
possibilidades de intervenção nos debates atuais sobre as relações
Igreja-Estado e sobre a religião na contemporaneidade... mas também deve deixar
que a indecência de uma epistemologia da
ambiguidade pergunte pelos acordos sexuais que ainda mantém esta área de
conhecimento sob influência dos modos patriarcais de produção do conhecimento.
Aqui a teologia feminista precisa
da proximidade e da cumplicidade com a teologia queer. O desafio de articular a
ambiguidade como princípio epistemológico está presente de modo insistente/indecente
na reflexão de André Musskopf[35]
que desenvolve sua teologia queer considerando a ambiguidade como um
lugar/móvel a partir do qual se produz conhecimento como fenômeno de resistência
da língua, expressão narrativa de performance e plástica produzindo, um
conhecimento onde as fronteiras são sempre móveis e instáveis.
Resistência na língua, narrativa,
performance e plástica me parecem vivências e conteúdos adequados para reencontrar
a Maria – virgem ou não... mas sempre aparecida! – nos seus lugares de trânsito
entre isso e aquilo. O enfrentamento dos usos disciplinares do ícone da Virgem
na manutenção das disciplinas de corpo, política e lei sobre as mulheres
precisa ser enfrentado a partir destas ambigüidades. Longe de apostar numa
contraposição com uma figura virtuosa atada à luta do povo, e mãe dos pobres e
da revolução – estratégias que reformam os conteúdos conservadores – uma das
saídas hermenêuticas está na ambiguidadade mesmo do ícone, sua dispersão e
polifonia.
Nossa Senhora da Porta dos Fundos,
rogai por nós os e por toda essa gente que... relaxa... o pessoal acredita em qualquer coisa.
[1] Nancy
Cardoso Pereira, pastora metodista, agente de pastoral da CPT Sul da Bahia
[2] CHAGAS, Thiago, Especial
de Natal do Porta dos Fundos faz piada sobre Deus, Bíblia e o nascimento de
Jesus e causa polêmica. Assista,
Gospelmais, in: http://noticias.gospelmais.com.br/natal-porta-fundos-piada-nascimento-jesus-assista-63686.html (acesso em 4/5/2015); para assistir o vídeo acesse
>> https://www.youtube.com/watch?v=2VEI_tn090c
[3]HOONAERT, Eduardo, et alii. História
da Igreja no Brasil. Primeira Época, Petrópolis: Vozes, 1992. p. 346
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[7] Notícia,
Blogo O POVO, http://blog.opovo.com.br/ancoradouro/pastor-feliciano-defende-virgindade-de-maria-em-programa-de-tv/
(acesso em 30/4/2015)
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[12]RICHARD,
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Richard, A Corbin - 2012 - aaelda.e-monsite.com (acesso em 9/2/2104)
[13] RICHARD,
Bernard, Les Emblèmes de la République, in: http://aaelda.e-monsite.com/medias/files/2les-emblemes-de-la-republique.doc.;
Tradução: Por exemplo a Liberdade, de
acordo com uma convenção estabelecida
pelos manuais iconologia dos séculos XVI ao XVIII, é representada por uma
mulher de gorro (da liberdade), e
brandindo um cetro ou lança, com correntes quebradas aos pés; o gorro pode estar na cabeça a alegoria ou ser
brandido por ele na ponta da lança; é este último formato que é adotado para o
selo da República Francesa, em 22 de setembro de 1792, imediatamente após a
abolição da monarquia como se adotar um novo emblema de representação do estado fosse a primeira
coisa a fazer; projetando-se também na
Estátua da Liberdade que ilumina o mundo (concebida nos anos 1865-1875 e
construído em 1886 em Nova York); (acesso em 3/5/2015)
[14] José
Francisco Alves, INVENTÁRIO DA ESCULTURA PÚBLICA DE PORTO ALEGRE, In: Memória
em caleidoscópio – Artes Visuais no Rio Grande do Sul .Bulhões, Maria Amélia
(Org.). Porto Alegre: Editora UFRGS, 2005, p. 135-160, https://www.academia.edu/546419/Inventario_da_escultura_publica_de_Porto_Alegre
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[16] PETERS,
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[22] Ibid.,
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[35] Ibid.,