julho 30, 2017

teologia e qualquer podridão do universo







                                                                                                      TÁXI
O poeta passa de taxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica a sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão do universo
Como será o amor das pessoas rudes?
O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas da delicadeza.

(Cacaso)


Perguntar pelas palavras sussurradas entre grunhidos, palavras ouvidas por um pescoço chupado, palavras podres/grotescas... palavras do corpo de amante: pode ser uma empregada doméstica, podia ser Dona Flor de Jorge Amado.

Que palavras são essas do universo que se aproximam tanto do mais ordinário da vida? Rudes e podres não como defeitos ou ausências, mas como excesso? Demasiada vida nada sublime.
A ideia clássica de sagrado como algo totalmente outro, faz da experiência religiosa uma experiência de ruptura com o ordinário e cotidiano. A experiência religiosa se caracterizaria pela instauração de uma ordem inteiramente diferente das realidades naturais e por isso mesmo “sublime”. Assim a experiência religiosa seria o extraordinário, a salvação a superação da vida ordinária de pecado, e a igreja o disciplinamento do grotesco pessoal e o coletivo - tudo muito próximo do moralismo e da repressão.





O contrário de grotesco é sublime? quanto mais sublime mais próximo de deus? quanto mais grotesco mais humano? e se grotesco é o bizarro, o ridículo, o excessivo? que causa riso ou aversão? então... tudo que é muito humano afasta e inviabiliza a experiência de deus? ou a experiência religiosa seria essa pretensão estética, ética e erótica de superar o grotesco na experiência controlada do sublime?


Negar o cotidiano! A imagem do pescoço da empregada doméstica tocado pelo grotesco do desejo do operário... alguma forma de delicadeza? Estamos rodeadas de cenas de amor e paixão editadas, limpas, controladas pelo editor de imagem: sem cheiro, sem suor e sem fricção. Eis o sublime? A ideia de sublime exige uma compreensão de normalidade e beleza que se oponha ao estranho, o esquisito e o feio. Esta oposição mantém o sagrado no mundo das idealidades, dos desejos reprimidos e das opressões toleradas. 



O importante de superar a dicotomia entre o grotesco e o sublime é a garantia de que tudo que é humano pode ser motivo, assunto e horizonte para entender a religião e sustentar uma teologia da libertação: comer, trabalhar, doer, cuidar, colher, deitar, amar, tremer, trepar, suar, parir, erguer...
         Aqui a importância de buscar na literatura e em especial em Jorge Amado uma possibilidade de escapar do sublime fruto da redução teórica, do higienismo teológico. Ao escolher “qualquer podridão do universo” como lugar de sua pergunta humana e teológica é possível fazer a ruptura com as idealidades fenomenológicas dos estudos da religião e suas sublimes quinquilharias e entrar pela porta estreita das teologias do corpo, mas bem teologia da libertação porque é de corpos e gemidos que se trata.
Interessa o amor das pessoas rudes. Interessa a vida real de pessoas reais: seus corpos em relação. Interessa todas as outras formas de delicadeza.


2 promessas e uma inquietação.
A conversa entre teologia e literatura já é comum entre nós: atualiza a alternativa e reforça a metodologia do deslocamento das fontes clássicas da teologia (bíblia, história da igreja, autores,etc).
Neste deslocamento metodológico a autoridade bíblica, a autoridade da tradição, a autoridade dos pais da igreja e dos pais fundadores ou dos sistemáticos de plantão precisam conviver com outras bases de interlocução para além do controle da teologia mesmo. Esta a promessa: fazer conviver as fontes disponíveis na cultura e na história fazendo oxigenar assim o alcance das teologias.
A manutenção das chamadas tradições autoritativas só interessam ainda àqueles que não sabem, não querem e/ou têm medo de deixar  sagrado se dizer numa dobra fantástica de uma página divertida da literatura latino-americana.
A outra promessa é de levar até as últimas consequências a radicalidade da encarnação do evangelho de Jesus: para isso é preciso tomar as motivações dos corpos de cruz e paixão, de ressurreição e glória sem se deixar submergir pela metafísica rasa de filosofias e antropologias cansadas, assexuadas e chatas.
O texto encarnado chama os corpos a dizerem sua Palavra. É de Palavra sobre corpos que se trata a revelação. Aproximar o sublime do grotesco sem criar hierarquias é uma possibilidade vital para as teologias da libertação entre nós.




A inquietação é aquela de querer conhecer todas as formas de delicadeza. No texto de Jorge Amado é ele “homem” que diz dela “Dona Flor”. O texto é a fala de um homem sobre o que poderia ser que fosse uma mulher e seus desejos, e suas resoluções míticas. Mas é Jorge quem diz a palavra de Flor. Queria eu escutar o corpo de Jorge se dizendo em Vadinho e/ou Teodoro, não através dos olhos dela, mas uma fala sexuada  - sublime e grotesca – de homem. Mas se o leitor/a prestar atenção e se inquietar como eu escutará o corpo de HOMEM teólogo dizendo uma Palavra dele? O teólogo faceiro sabe dizer de si Vadinho e/ou Teodoro? uma teologia do masculino não patriarcal?  uma promessa comprida ainda por se cumprir.
E deus? sublime ou grotesco?

>> comentário ao livro de Wanderson Campos: O sublime e o grotesco à flor da pele: literatura, corpo e teologia em Jorge Amado, Editora Fi, junho de 2016