julho 30, 2017

teologia e qualquer podridão do universo







                                                                                                      TÁXI
O poeta passa de taxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica a sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão do universo
Como será o amor das pessoas rudes?
O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas da delicadeza.

(Cacaso)


Perguntar pelas palavras sussurradas entre grunhidos, palavras ouvidas por um pescoço chupado, palavras podres/grotescas... palavras do corpo de amante: pode ser uma empregada doméstica, podia ser Dona Flor de Jorge Amado.

Que palavras são essas do universo que se aproximam tanto do mais ordinário da vida? Rudes e podres não como defeitos ou ausências, mas como excesso? Demasiada vida nada sublime.
A ideia clássica de sagrado como algo totalmente outro, faz da experiência religiosa uma experiência de ruptura com o ordinário e cotidiano. A experiência religiosa se caracterizaria pela instauração de uma ordem inteiramente diferente das realidades naturais e por isso mesmo “sublime”. Assim a experiência religiosa seria o extraordinário, a salvação a superação da vida ordinária de pecado, e a igreja o disciplinamento do grotesco pessoal e o coletivo - tudo muito próximo do moralismo e da repressão.





O contrário de grotesco é sublime? quanto mais sublime mais próximo de deus? quanto mais grotesco mais humano? e se grotesco é o bizarro, o ridículo, o excessivo? que causa riso ou aversão? então... tudo que é muito humano afasta e inviabiliza a experiência de deus? ou a experiência religiosa seria essa pretensão estética, ética e erótica de superar o grotesco na experiência controlada do sublime?


Negar o cotidiano! A imagem do pescoço da empregada doméstica tocado pelo grotesco do desejo do operário... alguma forma de delicadeza? Estamos rodeadas de cenas de amor e paixão editadas, limpas, controladas pelo editor de imagem: sem cheiro, sem suor e sem fricção. Eis o sublime? A ideia de sublime exige uma compreensão de normalidade e beleza que se oponha ao estranho, o esquisito e o feio. Esta oposição mantém o sagrado no mundo das idealidades, dos desejos reprimidos e das opressões toleradas. 



O importante de superar a dicotomia entre o grotesco e o sublime é a garantia de que tudo que é humano pode ser motivo, assunto e horizonte para entender a religião e sustentar uma teologia da libertação: comer, trabalhar, doer, cuidar, colher, deitar, amar, tremer, trepar, suar, parir, erguer...
         Aqui a importância de buscar na literatura e em especial em Jorge Amado uma possibilidade de escapar do sublime fruto da redução teórica, do higienismo teológico. Ao escolher “qualquer podridão do universo” como lugar de sua pergunta humana e teológica é possível fazer a ruptura com as idealidades fenomenológicas dos estudos da religião e suas sublimes quinquilharias e entrar pela porta estreita das teologias do corpo, mas bem teologia da libertação porque é de corpos e gemidos que se trata.
Interessa o amor das pessoas rudes. Interessa a vida real de pessoas reais: seus corpos em relação. Interessa todas as outras formas de delicadeza.


2 promessas e uma inquietação.
A conversa entre teologia e literatura já é comum entre nós: atualiza a alternativa e reforça a metodologia do deslocamento das fontes clássicas da teologia (bíblia, história da igreja, autores,etc).
Neste deslocamento metodológico a autoridade bíblica, a autoridade da tradição, a autoridade dos pais da igreja e dos pais fundadores ou dos sistemáticos de plantão precisam conviver com outras bases de interlocução para além do controle da teologia mesmo. Esta a promessa: fazer conviver as fontes disponíveis na cultura e na história fazendo oxigenar assim o alcance das teologias.
A manutenção das chamadas tradições autoritativas só interessam ainda àqueles que não sabem, não querem e/ou têm medo de deixar  sagrado se dizer numa dobra fantástica de uma página divertida da literatura latino-americana.
A outra promessa é de levar até as últimas consequências a radicalidade da encarnação do evangelho de Jesus: para isso é preciso tomar as motivações dos corpos de cruz e paixão, de ressurreição e glória sem se deixar submergir pela metafísica rasa de filosofias e antropologias cansadas, assexuadas e chatas.
O texto encarnado chama os corpos a dizerem sua Palavra. É de Palavra sobre corpos que se trata a revelação. Aproximar o sublime do grotesco sem criar hierarquias é uma possibilidade vital para as teologias da libertação entre nós.




A inquietação é aquela de querer conhecer todas as formas de delicadeza. No texto de Jorge Amado é ele “homem” que diz dela “Dona Flor”. O texto é a fala de um homem sobre o que poderia ser que fosse uma mulher e seus desejos, e suas resoluções míticas. Mas é Jorge quem diz a palavra de Flor. Queria eu escutar o corpo de Jorge se dizendo em Vadinho e/ou Teodoro, não através dos olhos dela, mas uma fala sexuada  - sublime e grotesca – de homem. Mas se o leitor/a prestar atenção e se inquietar como eu escutará o corpo de HOMEM teólogo dizendo uma Palavra dele? O teólogo faceiro sabe dizer de si Vadinho e/ou Teodoro? uma teologia do masculino não patriarcal?  uma promessa comprida ainda por se cumprir.
E deus? sublime ou grotesco?

>> comentário ao livro de Wanderson Campos: O sublime e o grotesco à flor da pele: literatura, corpo e teologia em Jorge Amado, Editora Fi, junho de 2016



julho 28, 2017

o último primeiro dia de salvação: bíblia & desejo

Por uma estética do desejo sem culpa (Gênesis 3):
Eva, a primeira. A mulher de grandes olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. A árvore? Boa de se comer! Agradável... agradável aos olhos; gostosa na boca se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo. A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.

>> todas as pinturas: CHAGALL

 
Por uma estética do trabalho e seus desejos (Cântico dos Cânticos):
A Amante. A mulher de grandes boca e pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios, suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar, juntar, separar... trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.



Por uma estética da terra e sua erótica (Rute)
 Rute, a outra. A mulher de grandes ombros curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra. Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados, Rute se despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele dia de recriação.



Por uma estética distributiva e seu prazeres (2 Reis 4, 1 a 7):
 Viúva, a última. A mulher de grande boca aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver escorrer. Maravilhoso... de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava. Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.



Por relações reprodutivas libertadoras e o prazer de decidir:
 Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço pra mais alguém e se lança de mãe e boca:

            O Espírito de Deus está sobre mim... porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres, para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de decisão (entre Isaías e Lucas).

Puro erotismo modelando o útero e projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável... volumoso nas entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o último primeiro dia de salvação.




a mística da luta do povo e a religião sem nome

Desafios: prática simbólica e política de um cristianismo libertador


Pneus, pedras e paus. Pode.
Baldes, cuias, tachos e panelas: também pode!
Cachos de bananas. Sandálias. Chinelos, também.
Livros, Bíblia, poesia rabiscada num papel. Pode!
E a terra! nacos, torrão, punhado, empedrada, poeirenta, montes, rastros.  
Sentida toda de chão.
E a água: molhada de canecas, potes, bacias, garrafas, copos e mãos. 
Suada de sede sempre.
Na mística da luta do povo as coisas, os tempos e os corpos se oferecem como a fome e a vontade de comer, o prato e o que é comido. 


A mística: o que é e o que queria ser
            Na luta do povo nem sempre os tempos podem ser ordenados, nem tudo pode ser planejado. As intervenções e ações obedecem a um plano, um traçado de intenções. Estas intenções estão articuladas por processos de formação e informação que respondem aos desafios do enfrentamento cotidiano e histórico dos movimentos classistas. Questões imediatas de resistência e sobrevivência dos movimentos interagem com os horizontes mais amplos da luta de emancipação das maiorias. Entre uma coisa e outra os processos de formação e informação precisam criar identidade, criar organicidade, mas é a ação direta mesmo que formata na prática as concepções e as mediações de luta, de organização, de vida e de povo.

"a experiência dos atores é a primeira, no sentido de  mais imediata, determinação da ação política, por  isso, para explicar as mobilizações populares é  necessário recorrer às formas, bandeiras e  reivindicações desses movimentos e como  expressam a experiência da sua base social no momento da mobilização, cuja demonstração exige que voltemos a atenção para as tradições, o vasto repertório da cultura urbana e as mobilizações políticas anteriores, porque é a partir deste conjunto amplo, fluído e complexo que os movimentos engendram formas organizativas, criam lemas e bandeiras de luta com os quais se apresentam no debate público e formulam suas reivindicações" (Pinheiro, 2009).

            Nesta passagem entre o imediato e as mediações do que ainda vai ser residem duas dinâmicas vitais das lutas emancipatórias: a revisão crítica e autocrítica da práxis e a apropriação simbólica e afetiva do processo de luta vivido[3]. Estas duas dinâmicas são simultâneas e se visitam podendo estabelecer relações de atrito e/ou de atração dependendo da conjuntura que pode ser de crise, de conquista, de derrota parcial entre outras.
Os movimentos sociais classistas possuem um caráter educativo, que se dá na participação política, nos processos de interação, nas negociações com representantes políticos, nas relações com os mediadores, enfim, a vivência mesmo como espaço de trabalho e educação. Tanto na dimensão da organização política, como na dimensão de uma cultura de classe, os movimentos estabelecem novas aprendizagens e novas tarefas que são vitais na consolidação do sentido de "pertencimento de classe".


"A mística enquanto ritual é aqui compreendida como  um complexo de ações simbólicas que busca a construção da identidade de  um sujeito político através da formação da subjetividade dos indivíduos. No congresso como em todos os eventos de ação coletiva do MST a mística aparece intensamente, busca obter unidade entre os  participantes e faz com que as pessoas se sintam bem em participar da luta e serve de  veículo de aplicação dos princípios organizativos" (Stédile, 2000).

Se fosse só teoria, mas não é.  Ela é chamada Baiana, mas é de Alagoas. Ela é a cozinheira do encontro do movimento de trabalhadores e trabalhadoras desempregados/as. E é mais. Porque não é só teoria: é a vida.
            No final da manhã ela entra na roda descalça e com um garrafão de vidro azul. Uns 5 litros de água. Um rolinho de jornal na cabeça ajuda a equilibrar o garrafão.  Com o pandeiro na mão ela desafia toda lei e a gravidade: dança, toca, canta e equilibra! A voz é forte, cortante. A música fala dos canaviais do nordeste. Ela bate com força no pandeiro e repete o refrão.  Resistência pura.  Ela continua sendo a cozinheira, baiana de Alagoas mas nesse momento ela coloca todo o grupo pra girar e girar em círculo como se a cantoria dos cortadores de cana e sua luta fosse a luta nossa aqui também aqui no Sul do Brasil. E funciona. Por um minuto todos/as nós estamos no canavial, enfrentamos o coronel e a voz dela organiza a nossa luta. Ela bate o pé e a mão. Balança o corpo. O grupo se diverte,  se esbarra. A gente pode ser o que quiser! Ela vai diminuindo as batidas. Até que uma pancada definitiva e última avisa que é pra terminar. Ela tira o garrafão da cabeça e grita: obrigada meu povo! E o povo aplaude: a esperança e a equilibrista! A mulher anuncia: “Tá na hora do almoço!” – agora ela é cozinheira sem nunca deixar de ser a educadora, a mulher que oferece o fio da mística pra fazer caber o dia, os estudos, o enfrentamento do capitalismo, a fome e a vontade de comer.

            Os processos de apropriação simbólica e afetiva da luta popular também oscilam entre momentos organizados e momentos “acontecidos”.  Este momento da “mulher com a garrafa” não foi planejado... mas necessário. Longe de ser a afirmação de espontaneismo, o povo organizado articula suas tradições, suas memórias e suas linguagens e opera na trama com os desafios da intervenção social gerando momentos de pura “mística”.

Mística, "percepção do caráter escondido, não comunicado da realidade", que, como explica Leonardo Boff, "não é o limite da razão, mas o ilimitado da razão”.  A mística do MST tem raízes no milenarismo camponês. Em todo o mundo e desde sempre, o camponês é a pessoa que aspira e acredita na possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a natureza. Em nome dessa utopia, as massas rurais têm se levantado, através dos tempos, contra o mundo real, sempre injusto, cruel e desequilibrado.


            Assim, nas ocupações de terra, nas ocupações urbanas, nas greves, nas manifestações os movimentos sociais classistas organizam “místicas”, momentos celebrativos que têm a capacidade de modificar a experiência expressando-a e apressando-a, potencializando suas alternativas, criando sequencias e sentidos. Na mística tudo e todos podem ser convocados para ajudar a dizer o exato momento da vida individual e coletiva e suas possibilidades. Deus conosco.



julho 24, 2017

As Mulheres e a Reforma: falemos das bruxas!



Nesses 500 anos da Reforma Protestante temos insistido em fazer uma releitura inclusiva para que as narrativas não sejam todas no masculino plural. Este é um esforço necessário e importante que fazemos... MAS existe um outro lugar de memória sobre as mulheres e a Reforma protestante: o lugar nada confortável das "bruxas"
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” - nos disse Eduardo Galeano... e as aprendizagens necessárias da crítica feminista precisam desvelar as narrativas fáceis e dóceis e fazer das ferramentas da história parte importante de conhecer a realidade para modificá-la. Falemos sobre elas: as bruxas!
Anoto aqui algumas leituras e socializo traduções provisórias acreditando que um dia poderemos conversar com mais qualidade de tempo e coragem sobre isso.

primeira leitura:
"Eu quero ser o primeiro a pôr fogo nas bruxas", disse Lutero sobre as bruxas num contexto de crescente mania de perseguição à bruxaria no século XVI. Lutero não foi o único que demonstrou tal zelo. Um número sem fim de fogueiras queimaram em todo o país. Milhares de pessoas, a maioria mulheres, perderam a vida. Mas Lutero foi realmente pioneiro na perseguição de bruxas?
Martinho Lutero viveu no mundo do final da Idade Média, Lutero estava enraizado no clima intelectual de seu tempo e a partir daí ele criou algo totalmente novo. 
A igreja deveria reabilitar as bruxas?

Somente na Alemanha, 25.000 mulheres e homens morreram depois de processos duvidosos. Durante meses, um grupo de trabalho lidou com este tema da reabilitação das bruxas - é um tópico para o ano de Lutero 2017.

>> tradução de trechos: Martin Luther and the witches
https://www.luther2017.de/en/wiki/martin-luther-and-the-witches/



segunda leitura:
A caça às bruxas estava irrevogavelmente ligada à Reforma Protestante. Ambos os países católicos e protestantes se ocuparam do combate de bruxarias e rituais pagãos mas, sem dúvida, os casos aumentaram em número durante o período crucial da Reforma - a segunda metade do século XVI. James Sharpe afirmou que a feitiçaria operava "dentro do contexto da reforma e contra-reforma". [I] A feitiçaria não se tornou um fator importante na vida das pessoas até a Reforma e desapareceu à medida que a situação religiosa em toda a Europa se estabilizava. Na Inglaterra, por exemplo, a última pessoa executada para bruxaria foi Jane Wenham em 1712. [ii] Esta foi uma época em que a Inglaterra foi estabelecida e unificada com a Escócia. 
Em alguns países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, houve relativamente poucos casos de perseguição de bruxas. No entanto, o Papa Sixto IV sentiu que o perigo era suficiente para garantir que se aprovasse uma Inquisição para lidar com os casos [Iii] . Enquanto a Igreja de Roma tinha um poder incoteste os casos eram tratados localmente e sem alardes. No período posterior, a partir da Reforma Protestante,  com o poder escorregando lentamente, foi importante assumir uma batalha explícita como forma de afirmação da liderança sobre a Europa cristã. A Inquisição num primeiro momento se ocupou mais com judeus e mouros na Espanha, mas ampliou sua ação incluindo a heresia da bruxaria a partir das iniciativas protestantes. Na Espanha em particular, as bruxas foram definidas pela  Inquisição como uma expansão do entendimento de heresia. [Iv] A heresia já não era apenas definida como a não crença católica (ou protestante),  mas também como aqueles/as que pareciam diferentes e uma ameaça ao domínio da crença e do saber, como bruxas. 
De acordo com Merry Wiesner, os espanhóis apenas mataram um punhado de bruxas, os portugueses apenas um e os italianos nenhum. [V] Muitos dos países católicos estavam no sul da Europa, e a bruxaria parecia se expressar mais na parte norte, como Alemanha, França e Escócia.

Ao contrário dos países católicos, em países protestantes como a Suíça, a feitiçaria foi vista como um remanescente das crenças católicas e um produto da ignorância. [Vi] As bruxas eram, portanto, vistas como ignorantes da verdadeira crença e da verdadeira religião. A feitiçaria e a heresia estavam intimamente ligadas, à medida que os processos de bruxaria aumentavam, os processos de heresia de crença em larga escala diminuíam. 
Na Escócia, houve caças de bruxas em larga escala em 1590, 1597, 1620 e 1649. [vii] Foi depois do período de ensaios de heresia abrangentes. Por isso, pode-se argumentar que a feitiçaria era apenas uma maneira alternativa de acusar os hereges, sem chamá-lo de "heresia" mas de bruxaria.
Essas diferenças regionais não podem realmente ser facilmente explicadas. Em lugares como a Rússia e a Estônia, a maioria dos processos de bruxaria foram executados contra homens e não mulheres. [Ix] De acordo com as estatísticas apenas 32% das bruxas eram do sexo feminino na Rússia, em comparação com 82% na Alemanha, por exemplo . [X] 
Isto revela que a Europa Oriental tinha visões muito diferentes da Europa Ocidental, possivelmente porque a Europa Oriental era menos dividida pela religião e tinha diferentes visões das mulheres em geral.



O sociólogo Nachman Ben-Yehuda afirma que: "Somente os países em desenvolvimento mais rápido, onde a igreja católica foi mais fraca, experimentaram uma mania de perseguição às bruxa virulenta (ou seja, Alemanha, França e Suíça). Onde a Igreja Católica foi forte (Espanha, Itália, Portugal), quase não houve uma epidemia de perseguição às bruxa.
A Reforma foi definitivamente a primeira vez em que a igreja teve que lidar com uma ameaça em grande escala de sua própria existência e legitimidade ". [Xi] Isso implica que a fraqueza da Igreja Romana - corrupção, riqueza e poder -  que gerou nas pessoas um desejo de Reforma - foi também a razão para tantas mortes em toda a Europa de pessoas inocentes. 
O desenvolvimento dos Estados-nação e suas definições eclesiásticas, em vez de colocar consolidar a fé na lógica, parece ter tido o efeito  contrário: fez as pessoas acreditarem mais nas superstições de uma certa maneira. A caças às  bruxas aconteceram como mecanismo de autoproteção de um poder religioso em formação: tudo que não era controlável era considerado heresia e merecia ser exterminado.
- tradução livre do texto: Witchcraft and the Reformation
https://tudorblogger.wordpress.com/2013/05/02/witchcraft-and-the-reformation-2/


referências:
[i] James Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’ in R. Po-Chia Hsia, A Companion to the Reformation World (Oxford: Blackwell Publishing, 2006) p. 444
[ii] David Ross, England: History of a Nation (New Lanark: Geddes & Grosset, 2008) p. 319
[iii] Hugh Trevor-Roper, Religion, the Reformation and Social Change (London: Macmillan and Company Ltd, 1967) p. 108
[iv] Ibid, p. 109
[v] Merry E. Wiesner-Hanks, Women and Gender in Early Modern Europe(Cambridge: Cambridge University Press, 2008) p. 258
[vi] Peter G. Wallace, The Long European Reformation: Religion, Political Conflict and the Search for Conformity 1350-1750 (London: Palgrave Macmillan, 2004) p. 214
[vii] Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’, p. 445
[viii] Diarmaid MacCulloch, Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700(London: Penguin Books Ltd, 2004) p. 569
[ix] Cissie Fairchilds, Women in Early Modern Europe 1500-1700 (Harlow: Pearson Education, 2007) p. 239
[x] Ibid, p. 239
futuras leituras: 
3- The Oxford Handbook of Witchcraft in Early Modern Europe and Colonial America 
>> https://books.google.com.br/books?isbn=0191648841 

>> https://books.google.com.br/books?isbn=1619020785 


95 teses na porta de uma Igreja 12 teses na ponta da enxada





Em 1524 o campesinato alemão organizado publicou 12 teses com suas reivindicações que considerava estar no âmbito das reformas necessárias, também a reforma religiosa. O manifesto reivindicava:
1) O direito de eleger seus próprios pastores / líderes
2) Garantir que a comunidade controlava os recursos: apoiar os pastores, os pobres e as situações de necessidade;
3) A libertação dos servos, já que todos os seres humanos foram redimidos através do sangue de Cristo
4) Liberdade para caçar e pescar
5) O direito de cortar lenha na floresta para uso doméstico
6) Restrição de serviços obrigatórios
7) Pagamento por trabalho extra do que estava estipulado no contrato
8) Redução do aluguel
9) Eliminação de punições arbitrárias
10) Restituição à comunidade de pastagens e campos que lhes foram retirados
11) Abolir o imposto de herança, porque as viúvas e órfãos são roubados de sua herança
12) Todos esses itens devem ser examinados com base nas Escrituras e se algo tem que ser corrigido será.[1]
Era isso. Tudo justo e simples. Mas os príncipes alemães não estavam dispostos a negociar. Lutero também não. E assim começou a guerra camponesa. Animados por uma minoria de teólogos e pastores reformados a guerra camponesa não se conformava com a reforma superficial de uma Europa desigual, elitista e feudal.
Mais de 300.000 camponeses tomaram parte na revolução, muito mais do que qualquer rebelião popular naquela época. Ao todo, cerca de 100 mil pessoas morreram a maioria de camponeses.

1-      A Guerra Camponesa ainda não terminou… é verdade que a revolta camponesa alemã de 1524 não foi a primeira a ser reprimida e violentamente dominada; o novo foi a consolidação de um discurso teológico que legitimou não só a autoridade dos príncipes, mas legitimou a propriedade privada como elemento constitutivo da hierarquia divina: igreja, estado e casa. Em nome dessa ordem Lutero chamou os camponeses de cachorro e palha, apoiou a violência e o massacre de mais de 100 mil camponeses.
2-      Mas esta guerra ainda não terminou! Ela fazia parte de um quadro maior de mudanças que tinha na agricultura sua origem e no estatuto da propriedade sua base fundamental; expulsos, os camponeses de toda Europa assumem o caminho da migração para o novo mundo fugindo das horrorosas guerras religiosas entre protestantes e católicos romanos, fugindo da fome, da doença e da expropriação; não havia lugar para estes milhões no capitalismo em formação;
3-      A terra não era uma questão secundária nem a guerra camponesa uma crise colateral. A repressão e a demonização dos camponeses pelos reformadores tiveram e têm custos pesados para as teologias protestantes, em especial na sua capacidade de entender os últimos 500 anos e seu metabolismo do sistema-mundo fora do interesse teológico ou institucional em si. O campesinato que encheu os navios e atravessou o Atlântico têm a seu favor os vínculos religiosos – católicos ou reformados – e entram na América como território extendido de seu mundo particular: o que não havia para os milhões na Europa a América vai oferecer: terra! A guerra camponesa atravessa o Atlântico norte e sul e vai se esparramar pelo novo mundo. Derrotados no velho mundo vão derrotar povos originários nas Américas protegidos pelo sistema-mundo do cristianismo que confere a estas populações deslocadas um lugar de destaque em sua estratégia de dominação: possuir a terra!
4-      Os nativos e os modos de vida do local vão ser destruídos e destituídos; a guerra camponesa encontra sua outra cara na invisibilidade do lugar e sua gente; a expansão econômica e militar da europa cristã – mesmo com suas diferenças – resolveu sua questão agrária na transferência de milhões de sem terras pobres para outro território; em troca do acesso à terra estes milhões ofereciam o volume necessário de presença para se opor e negar as populações locais. A guerra camponesa encontra sua cara indígena!
5-      “Quando os europeus conquistaram os trópicos, eles puseram em prática as terras e suas cercas. Confiscaram a melhor terra. Eles tribalizaram e escravizaram os povos nativos, forçando-os a cultivar culturas comerciais para exportação. Essa violência massiva contra os povos nativos, a vida camponesa e a cultura rural moldou a agricultura industrializada.” [2]
6-      O mito mais querido do capitalismo é dizer dele mesmo que depende da ética de trabalho do mundo protestante, de sua frugalidade e capacidade de economizar. Mentira! Livros e mais livros foram produzidos nestes 500 anos para dizer da matriz ideológica do protestantismo como matriz do mundo industrial, tecnológico e berço dos modos de pensar e conhecer mais abrangentes e universais. Mentira! O protestantismo resolve sua disputa com o mundo católico, divide os territórios e suas influências e marcha soberano sobre o novo mundo com suas comunidades ávidas pela vida espiritual que se expressava no sucesso material. E os camponeses interditados na velha Europa vão ser promovidos a colonizadores no novo mundo as custas de extração excessiva de recursos que vão bancar o processo de industrialização e ao mesmo tempo a inviabilização da resistência dos povos originários.
7-      “A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco.”[3]
8-      O que estava em disputa nos difíceis tempos da Reforma Protestante... não eram somente ideias religiosas, mas eram formas distintas de grupos distintos exercerem poder sobre os modos econômicos e as duas formas básicas de produção da vida: o acesso à terra (água, madeira, animais, minérios, alimentos, etc) e  o sistema de trabalho. Os fortes debates religiosos estruturam e são estruturados por estas mudanças e enfrentamentos na Europa do século XVI. A importância da religião nesse mundo é inegável assim como inegável também é a importância da terra e posse da terra nas formas de organização dos poderes da época.
9-      Ainda hoje o protestantismo entre nós se cala diante da guerra camponesa insistente, se identifica com a propriedade privada da terra e não é capaz de ouvir e dialogar com as lutas por terra e território de povos tradicionais. Depois de 500 anos as 12 teses do campesinato continuam como desafio dramático para a teologia e a pastoral. Como na poesia de Pedro Casaldáliga:

—Com a força dos braços lavramos a terra
cortamos a cana, amarga doçura na mesa dos brancos.
— Com a força dos braços cavamos a terra,
colhemos o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.
—Com a força dos braços, o grito entre os dentes,
a alma em pedaços, erguemos impérios,
fizemos a América dos filhos dos brancos!



[1] e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/download/1125/925
[3] Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 285.