julho 19, 2018



Felicidade:

“Fazer a revolução, como disse o
comandante Tacho, é como ir à aula numa escola
que ainda não está construída”[1]


Não me peça para definir “felicidade”!
            Eu sou aquela que foi feliz e infeliz tantas vezes e de modos tão distraídos e imperceptívies, que qualquer definição que eu tentasse seria traição. Se eu dissesse que é o que tenho com minhas crianças; se eu dissesse dos homens que amei; se eu dissesse da escada da casa da minha mãe; se eu dissesse das conquistas das lutas do povo ou dos textos terminados... qualquer caminho desse me levaria sempre de novo para definições imprecisas, tão desnecessárias como a pergunta: você é feliz?
Não quero escrever um tratado, nem me aventurar num verbete de dicionário. As idéias não têm história. – apesar de ser possível uma história das idéias!! - a força impulsionadora da história não são de novo as idéias, e sim a história material que forma o subtexto da história ideal[2].
            Faço então o elogio do exercício! Sem roteiros turísticos de felicidades pré-moldadas, me interessam as trajetórias exercitadas da felicidade como acontecimento de um percurso e seus atalhos. Exercício de possibilidades. Atalhos de escolhas e suas vertigens das possibilidades abandonadas, abandonáveis, abandonantes.
            Então, felicidade nem é ponto de partida nem é ponto de chegada, porque mesmo naquela hora da santa completude “não-me-falta-nada”, me falta a despreocupação de não desejar segurar o momento, de desistir de querer fazer com que ele dure... porque se eu me levanto assim da cama, da mesa, do chão da praça tentando viver “feliz para sempre”, despedaço a experiência e sua concreticidade que não pede pra ser ícone de nada. Essa completude me faz voltar pra casa, lavar o rosto, deitar de lado e – me sentindo quase inteira e vulneravelmente humana, eu durmo e acordo uma mulher melhor, capaz de cultivar caminhos de caminhos assim: feliz!
da resistência. A memória social é construída com base neste movimento dialético da lembrança e esquecimento
            O corpo do continente latino americano guarda a história de sucessivos massacres, estupros e humilhações individuais e coletivos. Cada poro do continente guarda uma memória dolorida, uma invasão, um golpe. Assim, perguntar pela felicidade no lado debaixo sul do Equador não deixa de ser um pedido fora de propósito. Mostrar nossa capacidade de felicidade apesar de tudo não pode obscurecer relações desiguais econômicas e políticas.
         Neste sentido é preciso refletir sobre “felicidade” como quem sabe que na América Latina fazemos o exercício cotidiano de esquecer para continuar vivendo. Esquecer não como resignação e aceitação absurda do destino de opressão, mas como instrumento e mística dos dominados/as de negação das estruturas de dor, desconstruindo a dor cotidiana na negação de seu poder identitário e roteiro possível de criação de condições matérias e simbólicas de reinventar a vida. Mas por que eu me ocuparia com o tema da “felicidade” dentre tantos outros mais urgentes e mais dramáticos?

A herança mais triste que o século XX nos deixa é a desilusão, a perda da esperança
Para muitos, a esperança evaporou da vida, dando lugar a uma reconciliação amargar com a realidade. Não vai ser possível criar a sociedade livre e justa com que sonhamos... Estreitamos nossos horizontes, diminuímos nossas expectativas. A esperança desaparece de nossa vida, a esperança desaparece de nosso trabalho, a esperança desaparece de nosso modo de pensar. Foucault o disse muito claramente no primeiro tomo da História da Sexualidade quando diz que “o medo do ridículo ou a amargura da história impede a maioria de nós de associarmos revolução e felicidade, ou revolução e prazer”. [3]

            Existe assim uma tarefa política e um exercício de espiritualidade de esperar contra a esperança que faz com que a teologia latino americana tenha que fazer sua escolha de “com risco” ou “sem risco” todos os dias, em cada página, em cada benção, em cada palestra ou curso de formação, em cada oração antes de cada marcha: um outro mundo é possível?
            Não? Um outro mundo NÃO é possível: irmãos e irmãs, acomodai-vos! Comei e bebei, sejam caridosos. Louvai! Louvai! Até domingo que vem.
            Sim? Um OUTRO mundo é possível! irmãos e irmãs, desacomodai-vos! O medo do ridículo e a amargura da história não combina com os amantes do evangelho. Juntai revolução e felicidade: ide em paz, eu vou também!
            O alargamento dos horizontes, a ampliação dos horizontes exige estudo teórico e comprometimento ético político no entendimento da “felicidade” como tarefa civilizatória de superação das formas de exploração de minorias e a criação de correlações de forças sociais favoráveis e humanizadoras numa sociedade participada pelas maiorias no exercício das formas de poder e prazer. Submergidas de conflito, estas tarefas exigem mais ainda a capacidade de criar formas de luta, de militância e de coletividade que já garantam as correlações humanizadoras e as possibilidades de “felicidade” em meio ao conflito. Exige também as possibilidades da crítica e da auto-crítica, do fracasso e do estabelecimento de diálogos restauradores... e dormir em paz.
            Uma teologia de um outro mundo possível é esta teologia que se ocupa de materialidades,
           

 Dos dicionários latino-americanos: léxicos inexatos
Não vou oferecer nenhuma felicidade fácil.
            Nem vou me esforçar por dizer de uma triste felicidade terceiro mundista.
Não vou incensar a vida cotidiana nem louvar possibilidades na vida comunitária.
Nada de histórias da vida do povo evocadoras de utopias gentis escoradas na vida do povo da Bíblia e suas utopias gentis.
Nenhum sorriso vale a dor que as sitemáticas teologias e as exegéticas exegeses exigem do texto, da história e do povo. Melhor que não. A sobriedade aqui é o mínimo que se pede: deixar as pessoas em suas baldias narrativas sem a invasão curiosa e gulosa de intelectualidades gentis.
            Não vou contar das festas brasileiras, nossa alegria, nossa música, dança e simpatia. Tudo isso é nosso também mas não como absoluto feliz de um povo contente apesar de tudo. A festa e os rituais são em nosso corpo latino-americano exercícios desesperados de esquecimento... exercícios de apropriação da história e elaboração da memória. O que dói no corpo é negado na vulnerabilidade da festa e do ritual de oração como empoderamento da pele que precisa esquecer para continuar vivendo.
Quero cultivar um atalho hermenêutico que aprendo e respiro nas lidas e convivências com pastorais e movimentos populares de uma metodologia de baldias narrativas e leituras – da realidade, dos mitos, da bíblia, de literaturas regionais ... Estas leituras e seus espaços de performance, ritual e liturgia criam significados e espaços de sociabilidade. São palavras e espaços de esquecer e de lembrar, de identificar o que tem valor na vida, de conferir compromissos e celebrar. Felizes assim, os pobres. Deles e delas é o Reino de Deus.


Repito que não há absolutos nesse caminho. Esquecer não é o elogio da morte do passado em nome da manutenção da ordem (familiar, política, eclesial...). Esquecer é a capacidade material e simbólica de não enlouquecer, de continuar vivo e acreditando. Neste sentido a religião e as festas populares na América Latina são mecanismos vitais e contraditórios da luta de classe e da prática revolucionária (viva o ópio do povo!! suspiro dos oprimidos!).
            Parte deste exercício de esquecimento e de celebração é a negação do deus da colonização, o deus invasor e sua reinvenção nas formas sincréticas e inexegéticas da ressurreição do corpo. O deus violento é vencido no esquecimento repetido das festas de memórias frouxas, de conteúdos inventados que devolvem ao corpo o prazer do sagrado feito ritmo e tempero. No caldo das tradições a Bíblia é ingrediente freqüente e freqüentado, convivendo com a ambigüidade do autoritarismo permanente da catequese mal-feita e o imaginário fantástico dos calendários sagrados.
            Neste sentido a busca de uma metodologia popular de leitura da Bíblia cultivou estas duas vertentes tratando de reverter a catequese autoritária pelo viés de uma educação popular que interferisse nos processos de evangelização e leitura comunitária da Bíblia e na reconfiguração do espaço litúrgico como expressão dos imaginários e simbólicas populares. Esta busca de metodologias sempre se deu por dentro de um embate ideológico
            Na literatura brasileira uma das matrizes possíveis de compreensão e cultivo deste exercício simultâneo de leitura da realidade, seleção de motivos, esquecimento proativo e celebração programática de elementos culturais reinventados poderia ser identificada num possível movimento antropofágico
       Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
       Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.(...)
       Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do Império. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
       Já tinhamos o comunismo. Já tinhamos a língua surrealista. A idade de Ouro.[4]




[1] Yvon Le BOT, El sueño zapatista , Plaza & Janés, México,  1997 , p. 191.

[2] HAUG, Wolfgang Fritz,   O projeto do dicionário histórico-crítico do marxismo, Crítica Marxista no. 10, 2000, Editorial Boitempo, São Paulo, p. 154
[3] John HALLOWAY,  O Zapatismo e as Ciências Sociais na América Latina  http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/hemeroteca/nor/nor0236/nor0236_02.pdf
[4]Oswald de ANDRADE, Revista de Antropofagia (São Paulo), n.1, ano 1, maio de 1928, in: www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html


janeiro 01, 2018

tarefas para 2018


"A direção fracassou. Mas é possível e necessário que se crie uma nova direção, por e a partir das massas. As massas constituem o elemento decisivo, a rocha sobre a qual se forjará a vitória da revolução." 
(Rosa de Luxembrugo, "A revolução Russa").

... para além das lógicas discursivas e das linguagens da crise, existe um conjunto de motivações e paixões, compromissos e fidelidades que foram empenhadas na construção de uma alternativa de esquerda política, não simplesmente porque fosse de esquerda, mas porque articulava: terra, pão e liberdade!

Assim neste curto período de luta organizada começamos processos e nos esgueiramos pela política da via parlamentar como forma de luta que não excluía/não devia excluir a construção da participação popular pela via de organizações autônomas e articuladas numa ética política classista. 

Mas foi então que os mitos dos atalhos estratégicos foram devorando as motivações, paixões, compromissos e fidelidades. Foi então que chegamos a acreditar que tudo era pra sempre: eleição de 4 em 4 anos; mandatos de parlamentares como voz de movimentos organizados; alianças improváveis como mau menor e preço justo. 

Mas o que nós dizíamos/queríamos era: Pão - Terra - Liberdade.
E chegou a hora de prestar contas: a estratégia de alianças nos levou ao abismo e o espaço, processo e metodologia da luta popular precisam se refazer. Mais do que perguntar pelo PT, chegou a hora de se fazer de novo a pergunta e o debate sobre o lugar da representação política, questões de concepção e organização partidária classista, a relação com o Estado numa perspectiva anticapitalista, os espaços e formas de construção de hegemonia alternativa e as formas de consciência e participação de poder que articulem classe+gênero+etnia como reinvenção necessária de um projeto revolucionário. 

Terra - Pão - Liberdade. 
São perguntas antigas e as novas. As que aprendemos a fazer nesses mais de 30 anos.
Sabíamos das contradições e dos limites: chegou a hora do acerto de contas! Nossas organizações políticas sempre foram também espaços de reedição de vanguardismos não éticos, misóginos, sustentadas pelos privilégios de homens etnocentrados, de burocracias com medo de tudo que é popular, letrados desconhecedores da cigana que lê a mão de Paulo Freire, senhores de verticais estruturas aprendidas na igreja, na família, no sindicato, na academia. Mulheres, negros, indígenas... existimos como anexos dos processos de formação. 
O partido se fez macho e habitou entre nós: vanguarda burocratizada, papai-noel, liderança, dirigente... numa mistura reveladora do caráter patriarcal das organizações de esquerda e seus poderes absolutos.
"Toda a sua preocupação destina-se a controlar a atividade do partido, e não fecundá-la; restringir o movimento e não desenvolvê-lo; a destroçá-lo e não unificá-lo." (Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin, "Partido de Massas ou Partido de Vanguarda").





das coisas mundanas & humanas demais

SOY PAN, SOY PAZ, SOY MÁS TRABALHO DOMÉSTICO E TRABALHO SEXUAL DE MULHERES MIGRANTES
Nancy Cardoso Pereira

O trabalho sexual e o trabalho doméstico precarizado feito por mulheres pobres e/ou migrantes apontam para uma crise profunda nos âmbitos da reprodução social da vida em todos os aspectos. Muitas formulações de políticas que buscam proteger as mulheres de diversos modos de violência encontram apoio ou restrição por parte das igrejas cristãs expressando suas concepções religiosas e influência política nos espaços decisórios. Este texto quer analisar estes posicionamentos considerando as interferências das teses “defensivas” e “abolicionistas” apontando para possibilidades de intervenção da teologia feminista latino-americana. 
Qual a diferença entre as coisas humanas e as coisas mundanas? Em especial para teologia feminista latino americana as coisas santas/humanas/mundanas se confundem como totalidade de vida e de opressão: niño, cuña, teta, techo, miedo, cuco, grito, llanto, raza. Empregadas domésticas, babás e trabalhadoras sexuais: yo soy!


http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/download/35985/pdf

das coisas mundanas & humanas

SOY PAN, SOY PAZ, SOY MÁS TRABALHO DOMÉSTICO E TRABALHO SEXUAL DE MULHERES MIGRANTES
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Qual a diferença entre as coisas humanas e as coisas mundanas? Em especial para teologia feminista latino americana as coisas santas/humanas/mundanas se confundem como totalidade de vida e de opressão: niño, cuña, teta, techo, miedo, cuco, grito, llanto, raza. Empregadas domésticas, babás e trabalhadoras sexuais: yo soy!


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