Por uma estética do desejo sem
culpa (Gênesis 3):
Eva, a primeira. A mulher de grandes
olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado
entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto.
Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se
lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas.
A árvore? Boa de se comer! Agradável... agradável aos olhos; gostosa na boca se
adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos,
barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os
braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela
criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se
dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo.
A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o
corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.
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Por uma estética do trabalho e seus desejos
(Cântico dos Cânticos):
A Amante. A mulher de grandes boca e
pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam
acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios,
suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O
fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma
fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da
cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e
projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem
de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se
adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e
orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz
conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar,
juntar, separar... trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com
alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão
nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam
na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo
desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve
gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.
Por uma estética da terra e sua
erótica (Rute)
Rute, a outra. A mulher de grandes ombros
curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado
entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os
restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra
fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra.
Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O
homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se
faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói
entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa
eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo
dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados, Rute se
despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os
arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho
braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele
dia de recriação.
Por uma estética distributiva e seu
prazeres (2 Reis 4, 1 a 7):
Viúva, a última. A mulher de grande boca
aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam
acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um
filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo,
inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro
erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver
escorrer. Maravilhoso... de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava.
Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e
suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos
filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida
de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os
olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir
milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora
encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e
glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.
Por relações reprodutivas libertadoras e
o prazer de decidir:
Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos
abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado
entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O
fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço
pra mais alguém e se lança de mãe e boca:
O Espírito de Deus está sobre
mim... porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres,
para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de
decisão (entre Isaías e Lucas).
Puro erotismo modelando o útero e
projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável... volumoso nas
entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se
projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz
conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama
o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e
saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A
palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O
trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o
último primeiro dia de salvação.