novembro 12, 2008

o mundo só se dá para os simples




Uma Ira - Clarice Lispector


(trecho final)




Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver - e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto, no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo, era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu, e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insônia, sem eu entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme, que até se dorme, meu Deus. E a água, na minha luxúria de viver, a água se derramava pelos dedos antes de chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal, eu tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata, mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais. O que não consegui com eles, é isso que hoje me violenta e a que respondo com violência. Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem terra nem céu, e a fúria me toma. Ah, mas se por um instante eu entender que a fúria é contra os meus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se transformará nas minhas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor. Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo - menos a vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar, então não perdôo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida, quero matá-la. A minha cólera - que é ela senão reivindicação? - a minha cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tanto temi jurar-me para sempre com essa primeira palavra que mal ouso pronunciar (amor), que fugi para a violência e para os olhos ensangüentados da paixão. Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do "outro" que sempre Te representou. Que rei sou eu, que não se curva? Tenho que escolher entre a quebra do orgulho e o amor correnteza da ignorância e da doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os sete pecados não por exigência de perfeição, mas apenas por piedade de nós, de mim que, como os outros, também tento não ser Dele e tento não ser dos outros, e eu sei que os outros são Ele. Neste instante tenho que escolher entre amar ou ter ódio. Sei que amar é mais lento, e a urgência me consome. Cobre minha fúria com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar, minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de mim a falsa onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento de não amar."



in "Para não esquecer" - 5ª ed. - Siciliano - São Paulo, 1992



PAUTAS PARA UMA HERMENÊUTICA FEMINISTA DE LIBERTAÇÃO

Ribla 25 - 1995





Como terra que precisa ser arada, assim é a Bíblia para as mulheres. Bíblia, terra difícil, com partes endurecidas, às vezes, pantanosa...mas com inumeráveis lugares férteis que podem ser trabalhados. Descobrir a fecundidade libertadora do texto bíblico é a tarefa de mulheres e homens que acreditam ser possível recriar as relações sociais de gênero. Há que se trabalhar a Bíblia como se trabalha a terra: com afinco, determinação, sabedoria e prazer.
A leitura feminista da Bíblia é complexa. Nós, as mulheres, nos enfrentamos com um texto muito antigo, que reflete culturas, costumes, épocas, relações, línguas e gramáticas diferentes. Nos enfrentamos, além de tudo, com textos patriarcais e leituras patriarcais - androcêntricas - que vêm se acumulando por séculos. Por isto, a hermenêutica que assume as relações sociais de gênero como lugar privilegiado da leitura, deve ser atrevida, ir além dos cânones tradicionais da ciência exegética. A hermenêutica da suspeita precisa funcionarem todas as áreas: textos, interpretações, tradições, traduções e métodos exegéticos.
As teorias de gênero são uma ferramenta de análise que permite deconstruir o texto, trazendo à luz as relações que aparecem estruturadas no discurso, o qual permitiria a construção de um novo texto que busca ser libertador, também nas relações de gênero. Cremos que este é um dos desejos da divindade criadora de homem e mulher, à sua imagem e semelhança.


1- O corpo como categoria hermenêutica

Por muitos séculos a importância do corpo, do material, foi relegado. Importava a “alma” das pessoas ou, num outro processo de generalização, a pessoa na estrutura sócio-política, nos processos econômicos. Mas, constatamos na história, que o corpo tem sido o espaço maior de opressão e apropriação da mulher - assim como também de outros grupos dominados (indígenas, negros): violação, agressão, negação, abuso, manipulação, idealização. Por isso mesmo, o corpo não pode ser um detalhe numa leitura que se pergunta pelas relações de gênero. A vida ou a morte se manifestam através dos corpos. Recuperar os corpos concretos é parte fundamental da afirmação da vida concretas e sensual.
O texto também é um corpo que se mostra e se esconde de seus leitores/as. Aqueles e aquelas que lêem também são corpos viventes que entram em diálogo e luta com outro corpo: o texto. Ambos mostram seus próprios tecidos: corpos individuais e sociais, femininos e masculinos. No processo hermenêutico desde uma perspectiva corporal, às vezes os corpos se encontram e celebram como quando se recolhe com alegria a boa colheita da terra. As vezes se detestam mutuamente, por decepção pela ausência de frutos ou a imposição de um fruto amargo, que não serve para nada. E, as vezes, um corpo fica de braços estendidos, esperando ser correspondido pelo outro corpo...e nada.
Entender o texto como corpo, fruto de relações sociais de gênero; entender o processo de interpretação também a partir das relações concretas dos corpos traz novas luzes para a compreensão do discurso. O corpo como critério hermenêutico oferece alternativas de leituras que querem ser convites para um diálogo e vivência de novas relações entre mulheres e homens - na teologia, nas igrejas, em casa, na cama, na vida.
Ler a paixão e ressurreição de Jesus desde os corpos esquartejados da América Latina, exige que se volte os olhos para os corpos violentados de mulheres e homens, meninos e meninas e a urgência da ressurreição de seus corpos agora. A recriação do corpo como lugar de revelação do sagrado significa assumir e afirmar a dinâmica libertadora do gozo, do prazer sem vergonha, sem os limites da vergonha, dos estereótipos e censuras opressivas.


2- Os sujeitos e suas histórias cotidianas no processo hermenêutico

Também como nos aproximamos da Bíblia como terra a ser trabalhada, é preciso buscar uma reaproximação de nossas vidas cotidianas: há partes férteis, outras cheias de pedras; desertos e pântanos...mas também, muita fecundidade.
Uma hermenêutica feminista de libertação, que articula as relações sociais de gênero, em sua aproximação do texto, descobre as pessoas em suas realidades, com sua subjetividade, história, cultura, particularidades. Toda a vivência cotidiana lê, interroga e interpreta os textos.
Não somos leitoras/es imparciais; somo pessoas com corpos, cor, sexo, idade; corpo que trabalha, que sofre e que goza, um corpo do qual gostamos ou não, um corpo em que os outros encontram prazer ou não.
Nos aproximamos do texto com nossas vidas que, na maioria das vezes, são tão comuns, tão banais, sem grandiosidades que merecessem ser contadas: os trabalhos domésticos, o cuidado dos filhos e filhas, as preocupações com comida, saúde e sobrevivência; o cansaço, a rotina; a sexualidade passivamente aceita; os sonhos de uma vida mais plena: de amor e paixão; a alegria com o nascimento dos filhos e filhas; sexo vivido com prazer. Uma vitória sobre a luta, um trabalho digno, uma amizade solidária.
São vidas e histórias que nunca serão História, mas são as que constróem e sustentam o tecido social, suas mudanças e resistências. Mesmo quando são objeto dos sistemas e estruturas de poder e governo, podem ser lugar de obstinada e criativa resistência e esperança, sobrevivendo a todos os massacres.
Queremos nos aproximar dos textos trazendo toda a diversidade e riqueza de nossas histórias cotidianas, com esta aparente ausência de cientificidade e assumida parcialidade. O cotidiano é também dinâmica estruturadora dos textos, seu tecido mais profundo e escondido que ainda não foi tocado pelas leituras super-estruturais, super-objetivas e super-sociológicas.
Assim como a vida, os textos também apresentam e são produtos de relações cotidianas cortadas por mecanismos de dominação: de um sexo sobre o outro, de uma classe sobre a outra, de uma etnia sobre a outra, de uma geração sobre a outra. É impossível tentar reduzir estas relações numa categoria ou tentar hierarquizá-las. É preciso trabalhar com esta pluralidade de dimensões e sistemas que aparecem nos textos e em nossas vidas. Se descobre assim o visível e o invisível, se evidenciam as múltiplas crises e diferenças que assumem rosto, voz, corpo...isto é o que constrói e condiciona a história/as histórias, assim como nossa leitura e hermenêutica.


3- Hermenêutica da deconstrução e reconstrução

Como descobrir a fecundidade da terra? Quando ela permite que a vida germine e cresça. Para isso será preciso arrancar da terra o que atrapalha sua fecundidade, aquilo que rompe seu equilíbrio ou seja um obstáculo à sua fertilidade. Então será possível voltar a semear e trabalhar pata receber o fruto da vida.
Nos aproximamos da Bíblia como terra para trabalhar com instrumentos que nos ajudem a receber frutos de vida. Além dos métodos exegéticos com seus limites e possibilidades, as teorias de gênero vêm se mostrando fundamentais para que possamos conhecer a terra em que trabalhamos, suas fertilidades e esterilidades.
As teorias de gênero desnaturalizam os papéis, as identidades, funções e relações que determinada sociedade atribui a homens e mulheres, entendendo que estas atribuições são constructo social que podem ser deconstruídas e recosntruídas sobre outras bases e critérios. Uma hermenêutica feminista trabalhando com gênero faz perguntas como: como se dão no texto as relações entre os gêneros? quais as relações “invisíveis”? como são construídas as identidades de mulheres e homens? que atributos recebem? que estereótipos estão presentes? quais as condições concretas de vida?
Há que se trabalhar em diversos níveis tratando de perceber as motivações e tentativas de normatização que perpassam os textos: o que é narrado expressa uma leitura e compreensão do que é vivido por quem narra; não há que se assumir o que aparece no texto como a realidade de vida das mulheres. Muitas vezes os textos projetam mulheres ideais ou mulheres malditas como realidades opostas e fixas. Texto que são aparentemente favoráveis às mulheres, podem ser sustentados por estereótipos de identidade (mulher sedutora, mãe sacrificial, etc).
Este é o processo de deconstrução. Partimos do pressuposto de que o texto está genericamente construído, isto é, é refém de interesses e relações assimétricas que subordinam as mulheres e, por isso mesmo, precisa ser deconstruído.
É preciso que esta abordagem considere as relações de poder e as estruturas sociais e literária de modo dinâmico para que não se caia numa perspectiva vitimizadora das mulheres. O desafio é o de entender e analisar as circulações de poder numa determinada estrutura social ou literária: o poder não é uma instância absoluta e estática, mas é um conjunto de forças que se move entre/contra/sobre/com os diversos sujeitos sociais. As mulheres também exercem poder, muitas vezes de resistência e sobrevivência, mas nunca são somente vítimas de seus homens e estruturas. podem também ser co-participantes de sua própria subordinação.
A análise da relações sociais de gênero pergunta por esta circulação do poder, entendo aqui a confluência não só das relações de sexo, mas também étnicas, de classe, culturais, geracionais que atravessam as diferentes parcelas da humanidade em toda suas complexidade.
Alguns textos vão se mostrar estéreis para as mulheres, textos em que não haverá possibilidade de germinação. Deconstrói-se o texto, abrindo e limpando a terra, e se descobre os materiais presentes ali por anos mas que, analisados revelam ser causadores de esterilidade para a terra. Precisam ser arrancados. A partir daí a terra precisa receber outros insumos, precisa ser mexida e revolvida, restaurando seu equilíbrio e, quem sabe, sua capacidade de germinação de frutos de vida. Escavando e aprofundando vão surgindo histórias de mulheres, corpos mutilados que estavam escondidos e enterrados por séculos.
Neste processo de deconstrução se recorre a outros elementos hermenêuticos como a intertextualidade (mais dados entre outros textos), intratextualidade (textos dentro do texto) e extratextualidade (documentos extra-canônicos, como por exemplo, os evangelhos gnósticos),
Neste trabalho de agricultoras/es não basta somente limpar e conhecer o texto...é preciso continuar o trabalho perguntando pela possibilidade de germinação. Se inicia assim o processo de reconstrução que seria, antes de tudo, a reformulação dos paradigmas de interpretação, mais ainda, a novidade de paradigmas que permitam outras resoluções da mensagem ou mensagens do texto.
O fato de reconstruir outros texto que por anos vem sendo tomado como lei ou usado para distorcer ou limitar a liberdade das mulheres em sua participação na história coloca a hermenêutica feminista de libertação em uma situação desafiadora diante dos esquemas tradicionais da teologia e da estrutura das igrejas. Neste sentido, uma hermenêutica feminista é a reconstrução da história e participação das mulheres que já não aceitam conviver como minorias mas que se assumem como donas de seu pedaço de terra: seu corpo, sua mente, suas decisão, sua dignidade.
As mulheres e homens que lêem os textos desde suas experiências cotidianas, suas histórias particulares e comunitárias, desde o cruzamento de relações e caminhos, assumem o compromisso da deconstrução e da reconstrução de sentido do texto de tal modo que possa ser lugar de humanização, de integração entre as pessoas. Isto não significa eliminar as ambigüidades ou homogeneizar estilos e recursos dos textos...reconstruir o texto é torná-lo libertador, procurando manter alternativas de interpretação que inviabilizem qualquer tentativa de controle do texto e sua mensagem.

4- Uma hermenêutica que questiona o conceito de autoridade bíblica

Na Bíblia como na terra há revelação de Deus...mas nem a Bíblia nem a terra são Deus. A divindade é um mistério inescrutável. Nossas aproximações do sagrado são aproximações humanas, mediatizadas pela cultura e por nossa história cotidiana. Ninguém pode definir o mistério e declarar sua verdade absoluta. O texto tem a palavra de Deus mas não é a palavra de Deus porque a palavra de Deus é mais do que o texto escrito.
Para as mulheres é fundamental reconhecer que na Bíblia há textos que não são normativos mas meramente circunstanciais. Um texto patriarcal que justifica a discriminação da mulher não pode ser normativo porque é contrário ao espírito libertador do evangelho. Também os aspectos da tradição cultural e social opressores daqueles que interpretam o texto não podem ser projetados como ponto normativo do texto.

A revelação é boa nova e por ser concreta é dinâmica e mutante. Não se limita ao texto mas ao encontro possível da palavra de Deus no texto com a palavra de Deus presente na vida cotidiana de comunidades, mulheres e homens, meninos e meninas...presente na vida de povos distintos com suas culturas e tradições religiosas. Daí a importância de discernir na revelação quais são os elementos particulares do contexto do texto e quais elementos a comunidade que lê considera válidos para seu contexto.
A revelação então se expressa na recriação do texto, produto do encontro libertador entre os corpos dos textos e os corpos de suas leitoras e leitores.
A hermenêutica feminista da libertação não é descobrimento ou exclusividade nossa mas é fruto do diálogo com movimentos feministas e de libertação no continente latino-americano e em outros continentes. O que se deseja é que a terra da Bíblia se converta num Abya Yala para todos e todas, terra enriquecida e fecunda: o humus, terra fértil da palavra libertadora. Terra que já não é lugar de esterilidade e morte mas onde se colhem os novos frutos de fé e espiritualidade.


Ouvimos o que foi dito...MAS NÓS MULHERES DIZEMOS!

Este texto é fruto coletivo do Primeiro Encontro Latino Americano de Mulheres Biblistas, que aconteceu em Bogotá, Colômbia, em fevereiro de 1995. Muitas mulheres contribuiram para a organização dessas Pautas Hermenêuticas: Elsa Tamez, Mercedes Brancher, Ana Maria Rizzante Gallazzi, Nancy Cardoso Pereira,Rebeca Montemayor, Irene Foulkes, alícia Winters, Luz Jimenez, Débora garcia, Violeta Rocha, Josefina Caviedes, Maribel Pertuz, Verônica Rozzotto. Este número de RIBLA reúne a contribuição de algumas de nós e de outras biblistas latino-americanas.
Estamos a caminho. Estamos aprendendo a ler a Bíblia assim...sendo fiéis a nós mesmas, às nossas lutas e movimentos de libertação, em especial de mulheres de nossas igrejas e países. Ainda temos que lutar com as teorias e procedimentos, autoridades e limites. Os textos aqui reunidos expressam nossos esforços pessoais e coletivos e querem ser parte do diálogo da caminhada bíblica latino-americana.

cavalgam-se três qualidades de azul





ELEGÂNCIA
COM DECADÊNCIA




demônios necessários e exorcismos funcionais


Fui pastora metodista na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Recém saída da Faculdade de Teologia, assumia duas comunidades na periferia de Duque de Caxias. Entusiasmada e apaixonada...ainda respirava os ares da Teologia da Libertação que marcou minha formação teológica e espiritualidade. Ecumênica. Militante...e pastora. Lá fui eu descobrir que a religião do povo era muito mais. Comunidades pobres de mulheres pobres e muitas crianças e alguns homens. A convivência foi mostrando os limites da minha formação; limites de compreensão e intervenção. Não me haviam dito que por debaixo do verniz histórico de um metodismo pouco inculturado habitavam fortíssimos elementos de uma religião mágica, voraz, dramática, aparentemente sem contornos, dificilmente catalogável. Cheia de demônios: vizinhos e próximos. Plena de exorcismos dominicais. Influência do pentecostalismo, influência pelo avesso dos terreiros, influência do catolicismo popular disfarçado.
Foi um aprendizado difícil. O culto mais importante era o de domingo à noite: eu me revezava nas duas comunidades (uma urbana e a outra rural). De imediato me dei conta que, na comunidade urbana, quando eu não estava presente, o demônio se manifestava e aconteciam exorcismos e que tais. O povo dizia: “Pastora, foi uma benção! A fulana estava amarrada, mas o pregador percebeu e desafiou o inimigo e ele se manifestou e foi expulso em o Nome de Jesus. Pena que a senhora não estava...”
Acontecia domingo após domingo. Nunca na minha presença. Conversando fui descobrindo que as endemoniadas eram sempre mulheres que tinham pouco tempo na comunidade. Quase sempre as mesmas, dominicalmente possuídas e fui tomada de indignação pelo fato estar se tornando uma parte necessária do culto. Tinha gente que só vinha ao culto de domingo à noite quando eu não estava...eram cultos de poder, diziam, enquanto eu só fazia estudo bíblico e orações e cantos. Era pouco.
Um domingo, sem avisar, apareci na comunidade urbana quando o culto já estava para acontecer e...me convidaram para a oração de preparação do culto que acontecia numa salinha nos fundos do templo. Chegando lá, o leigo responsável pelo culto gritava e clamava o nome de Jesus. Os olhos fechados, os punhos cerrados, enquanto umas 5 mulheres gemiam e gritavam segurando uma mulher caída no chão. O nome dela era Sara, de família pobre, há alguns meses participava da comunidade com seus dois filhos pequenos. Havia passado por muitas igrejas e religiões. Era uma mulher frágil e pequena. Naquele momento ela parecia forte e enorme. O leigo pressionava uma Bíblia na testa de Sara e ela grunhia. A cena me era familiar. Tinha todos os elementos de uma possessão descrita nos livros e manuais. Não fiz nada. Tentei entender o que acontecia enquanto pensava em como deveria ser minha intervenção. Os minutos passavam e ele inquiria a mulher que respondia numa voz rouca e debochada. As mulheres gemiam. Pareciam felizes e excitadas. Foi quando me dei conta que as duas crianças de Sara estavam na sala, sentadas num canto...assistindo. Me irritei e, mesmo sem saber como, resolvi intervir.
Disse para as pessoas que já estava na hora de começar o culto e que a comunidade estava esperando e que era preciso encerrar com aquilo. Pedia que uma das mulheres soltasse Sara e tirasse as crianças dali. Assumi seu lugar. Me abaixei e coloquei a cabeça de Sara nos meus joelhos e comecei a conversar com ela...”Sara, sou eu...a Nancy. Você está bem?” Ela respondeu: “Eu não sou a Sara. Ha!Ha!Ha!” Instintivamente eu respondi tentando fazer parte do drama que se desenrolava mas tentando trazer o grupo para fora: “Não! eu quero falar com a Sara. Sara fala comigo...me escuta. Quero conversar com você. Suas crianças estão lá fora. Vou levar vocês para casa. Eu e você Sara, você me escuta?” De verdade eu me sentia pouco à vontade, como se pedisse permissão ao demônio para falar com Sara. As mulheres e o leigo me advertiram: Não! pastora...não fale com carinho. Não é a Sara. Tem que ser no sangue de Jesus que tem poder.” Respondi: “Esta aqui é a Sara nossa irmã...e nós queremos cuidar dela.”.
A mulher deu um pulo e abriu os olhos, assustada. No pulo, me deu um safanão jogando longe meu óculos. Foi um tapa e tanto. Sara começou a chorar convulsivamente. O leigo gritava que o demônio foi embora mas não foi vencido! As mulheres gemiam e oravam.
Mandei (isso mesmo...sei lá como me enchi de autoridade mas, na verdade eu estava assustada e trêmula) que o leigo entrasse e começasse o culto. Eu ficaria com Sara e oraria com ela e sues filhos e depois a levaria até sua casa. Quando eles sairam o choro de Sara era de seu tamanho: pequeno. Trouxeram as crianças e nós conversamsos. Ela me disse que acontecia sempre com ela quando vinha à igreja e que o senhor leigo sempre sabia fazer manifestar o demônio que a habitava. Ela estava cansada. Achava que era porque tinha andado na macumba e com os espíritas.
Repeti minha conversa: que ela era filha de Deus e que tudo estava bem e que nós íamos cuidar dela. Oramos e fui levá-las em casa. Orei lá também. Pedi proteção para casa e para todos. Marcamos de nos encontrar mais cedo na quarta-feira antes do estudo bíblico. Ela disse que precisa de uma Bíblia. Precisava aprender mais para que o demônio não tivesse poder sobre ela. Me despedi e fui pela rua de barro e buracos me sentindo vazia. Havia apanhado do demônio em sua fuga e me sentia péssima.
Voltei para a igreja e assisti o culto até o final. Tudo transcorreu normalmente. O leigo pregou sobre o poder de Deus e sua luta contra os poderes do mal...em alguns momentos parecia que ele me recriminava e publicamente me admoestava por minha incredulidade.
Não passou muito tempo Sara acabou virando membro de uma igreja pentecostal no bairro. Os metodistas indiretamente me acusaram de não ter deixado Deus agir na vida dela...por isso nossa igreja era fraca e fria, enquanto as outras igrejas estavam cheias e poderosas.
Me encontrei com Sara e ela me tratou com carinho. Disse que estava feliz na outra igreja, que o pastor lá tinha realmente tirado o demônio dela e que nunca mais tinha acontecido. Terminou me consolando, dizendo que não importa em qual igreja a gente fica né, irmã? o importante é estar com Jesus.
Não fiquei muito tempo com esta comunidade. Um ano e dois meses e foi tudo.

As igrejas tradicionais têm uma visão elegante do sagrado. Violência e desordem pertubam o sagrado. O campo religioso entendido como lugar sublime de certo modo moraliza a experiência religiosa. Esta compreensão precisa de um Deus também elegante, centrado, sem arroubos e paixões...uma divindade distante da realidade deselegante, desordenada e violenta. Um Deus que pode ser aproximado da probeza vitimizadora e sofrida...uma divindade que acolhe militantes esclarecidos e organizados...mas distante das ambíguidades e contradições que cortam a vida, em especial dos pobres.
Sendo o cristianismo em suas vertentes históricas, detentor da hegemonia aparente do campo religioso, esta visão elegante e limitada do sagrado e da divindade acaba atribuindo às religiões e segmentos do cristianismo não hegemônico a produção simbólica e ritual da violência, da desordem, da ambiguidade. O demônio sempre são os outros.
José Jorge de Carvalho em seu texto Violência e caos na experiência religiosa[1] esquematiza um mecanismo de exclusão: os cristianismo tradicional suporta certo grau de violência mas qualquer excesso deve ser evitado e negado, transferindo para outras religiões o trato com a violência e a desordem; o kardecismo tenta colocar-se ao lado do cristianismo, atribuindo aos culto afro-brasileiros o que não quer assumir internamente; a umbanda branca faz o mesmo, tenta aliar-se ao espiritismo e por aí chegar até o cristianismo, atribuindo ao candomblé e seus similares o que estes atribuem à jurema e a macumba que - longe das fronteiras oficias do sagrado - assumem a violência e desordem como parte de sua identidade.
De certo modo a Igreja Universal do Reino - e outros grupos - preenchem esta lacuna dentro do cristianismo, assumindo a performance do que se chama de três pilares clásicos das religiões em sua origem[2] o interdito, o rito e o mito. “O rito sacrificial, ao mesmo tempo que faz descarregar a violência sobre a vítima, propiciando uma catarse purificadora, também alimenta a coesão grupal...violência, unanimidade e desfecho catártico, mediante o sacrifício”. O exorcismo, segundo Girard pode ser um equivalente do sacrifício.
A meu ver a questão está em que a violência e a desordem no âmbito da IURD se limitam ao campo de uma batalha espiritual, uma violência que precisa ser alimentada e engordada em termos de representação, mas continua sendo uma rejeição de elementos grotescos ou deselegantes, para a consideração do sagrado. O ritual de exorcismo não rompe com a própria noção de representatividade, que pressupõe uma passagem estável e segura do símbolo ao significado. O sagrado fica intacto e a violência se ritualiza e se instituicionaliza. A violência e o caos funcionalizados distanciam-se do sagrado ficando como mera representação do nível pouco emancipado ou da miséria dos participantes de tais rituais. O exorcismo como reflexo da violência real distancia-se do religioso.
“Em vez de pensarmos a religião em termos de um conjunto de símbolos, como reza a já célebre definição culturalista...a experiência religiosa é também (e principalmente) um lugar onde os símbolos são dessignificados, desnudados de seus compromissos semânticos estáveis...um lugar de exercício de crítica radical, de um ceticismo fundamental com relação à ordem, onde tanto as utopias dominantes como as utopias alternativas ou contra-utopias (mitos de interesse e mitos de liberdade) são igualmente deixados de lado” [3]
Se por um lado a IURD se apresenta como um espaço de expressão simbólica menos moralizante em relação ao sentimento de desencantamento do mundo das tradições religiosas históricas, em especial as igrejas cristãs históricas, por outro lado, para livrar a divindade de contradições e impotência diante da realidade de violência e desordem, recauchuta e remenda dualismos e batalhas espirituais mantenedoras do simulacro de exclusão e vitimização.
Prefiro pensar com João Guimarães Rosa em seu conto São Marcos. Não acredita em fetiçaria. Desdenha do João Mangolô apresentado como liturgista ilegal e orixá-pai de todo os metapsíquicos por-perto, da serra e da grota, e mestre em artes de despacho, atraso, telequinese, vidro moído, vuduísmo, amarramento e desamarração. (Sagarana, p. 225). Sai o narrador para um passeio e passa como de costume para enjerizar o Mangolô. O passeio é marcado pelas belezas dos olhos que convencem as palavras que as tenta imitar. No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, gláceo, emborcado; só na barra do sul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de coco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido - um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer”. p. 227
Os olhos se excitam com as cores e formas, os detalhes de formigas e penas, tufos, irerês, andorinhas, muito mel, bojuí, jati, urussú...borboletas de páginas ilustradas...paz. Até que de repente: uma pancada preta, vertiginosa...um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubu, um golpe de noite ...E escureceu tudo. (p.247). O narrador está cego. Estarrecido, se desespera: Era a treva pesnado e comprimindo, absoluta.
No meio da experiência da beleza que é extasiante e inesgotável...o homem conhece o limite e o reverso, descobre o caos e...os sons! Com os olhos negados de luz, o homem começa a ouvir: debulha de trilos dos pássaros, o patativo cantando clássico na borda da mata...pombas guaiando soluços e aqui ao lado um araçari que não musica...E aí vem a voz. A sensação primeiro: Chamado de ameaça, vaga na forma, mas séria: perigo premente. Capto-o. Sinto- direto, pessoal...o coração ribomba. Quero correr. Não adianta. Quem será? é meu amigo, o poeta. Os bambús. os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de baralhos, que gostavam da vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São meros mansos fantasmas, agora, são meus. Mas, então qual será a realidade perigosa, no sul? Não, não é perigosa. É amiga. Outro chamado. Uma ordem, Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência...
Começa a andar e a se mover. Tenta voltar para casa. Tenta reconhecer o caminho...perdida a visão que garantia a posse do lugar, o homem tenta escutar o caminho e vai se esbarrando nos barulhos que não sabia familiares: Tão claro e inteiro me falava o mundo, que por um momento, pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta...Não devo! Não posso ficar parado! Tenho já, já de correr, de me atirar pelo mato,, seja como for.
No caminho, quando lhe falta o ouvido, o nariz se apresenta como referência do caminho. Reconhece os cheiros de árvores e ervas, o que antes não lhe vinha pelo olhar, e que a experiência da cor ofuscava, agora vai fazendo o caminho por seus perfumes, odores agradáveis e insuportáveis que vão tornando o caminho palpável. “Outra árvore que não me vê, ai!É a colher-de-vaqueiro: este aroma, estes ramos densos, esta casca enverrugada de resinas -sei, como se estivesse vendovista a sua profusão de flores rosada. Vamos cheiro de musgo. Cheiro de húmus. Tateia e cheira. Não sabe se saiu do lugar.
Um cheiro ruim. A voz. Então o homem descobre que a cegueira e a perdição é coisa do João Mangolô que fez das suas rezas para acertar com tanto achincalhe de sua parte. Nessa hora, o homem num movimento brusco despenca a bramir a reza-brava de São Marcos. Repetia as palavras e as blasfêmias...sobe uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir..E então foi só doideira e zoeira, unidas a pavor crescente. E corri. Se aproxima da casa do Mangolô e grita apanha diabo! se arremesando contra o negro com violência. O Mangolô pede pelo amor de Deus! não me mata!. E os dois rolam no chão...e tudo clareia. Luz, luz tão forte... O Mangolô explica que amarrou uma venda nos olhos num boneco pra que o outro ficasse um tempo sem enxergar e sem ofender.
O narrador conclui: “Havia muita ruindade mansa no pajé espancado e a minha raiva passara tão glorioso eu estava...” acaba se conciliando com a Mangolô e ainda lhe dá uma nota de dez mil-réis.
Fizera a experiência de não ver...e agora a luz. Se sentia glorioso...como se visse pela primeira vez: recobrara a vista. E como era bom ver! Na baixada mato e campo concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe nas prateleiras dos morros cavalgam-se três qualidades de azul “. (p. 255)

Do mesmo modo Jó, termina nua luta com o sagrado dizendo...eu te conhecia só de ouvir falar...agora meus olhos te vêm”.


"The Fall of Icarus"
Marc Chagall


[1] in: CARLOS EUGÊNIO MARCONDES DE MOURA (org.), As senhoras do pássaro da noite, EDUSP, São Paulo, 1994. pp. 87-120
[2] OLIVA, Margarida, O diabo no Reino de Deus: por que proliferam as seitas, Musa, SP, 1997, p. 130
[3] ibid., p. 116

entre o erótico e a barbárie



espiritualidade feminista
para os tempos de mercado[1]







As coisas: enfileiradas em ordem de prateleiras. Categorias e gêneros. Substâncias e suas mesuras. Invólucros. Qualidades em quantidades: valor. Cabides dependurados entre valor de troca e valor de uso. Você tem fome de quê? – pergunta o mercado como se conhecesse minha língua materna... indecifrável até pra mim. Empurro o carrinho que me identifica na feira do consumo e me aflijo entre as formas oferecidas de necessidade e desejo.
É que na lógica do mercado as relações de troca assumem o dinheiro como linguagem de valor sem precisar mais repousar sobre a linguagem da necessidade. Uma abstração se concretiza! Ninguém vê, mas todo mundo experimenta: o milagre da transubstanciação:

“O valor de troca atado ao corpo da mercadoria anseia ser redimido sob a forma do dinheiro [2].”

O milagre acontece quando a pessoa se realiza como consumidor. No ato do consumo mercadoria e dinheiro se beijam e o lucro promete congregar toda sociedade, um dia, no mercado pleno. Ou não: interessa que o lucro e o valor se reproduzam e se realizem.
É ao mesmo tempo uma operação complexa e simples, sensual demais e totalmente metafísica. Trata-se de realidades, coisas, substâncias, objetos, istos e aquilos que, tocados pela linguagem do valor, se transformam na subjetivação das necessidades. As realidades materiais e concretas são despossuídas de sua cotidianeidade de valor de uso, para assumirem a metafísica do valor de troca.

“Ansiosa pelo dinheiro, a mercadoria é criada na produção capitalista à imagem da ansiedade do público consumidor. Essa imagem será divulgada mais tarde pela propaganda, separada da mercadoria.[3]

Ansiedade. Amor. Imagem. Desejo. Sedução. Parecem não ser palavras devidas para a discussão econômica... entretanto são aquelas que talvez expressem melhor o processo de fabulação estética da mercadoria.
Marx vai dizer que a mercadoria ama o dinheiro e acena com o seu preço lançando olhares amorosos[4] e identifica uma certa malícia angelical na especulação com o dinheiro[5]; vai afirmar que o dinheiro não é apenas um objeto da paixão de ficar rico, e sim, o dinheiro é a própria paixão[6].
Se as metáforas do discurso amoroso poderiam ser entendidas meramente como recurso estilístico para o capitalismo industrial, limitando-se ao campo da retórica, as análises do capitalismo de mercado globalizado identificam nesse campo semântico uma chave hermenêutica vital.
A mercadoria deseja ser consumida, precisa ser escolhida, comprada; para isso precisa fazer-se amável, desejável, precisa adivinhar o desejo ou inventá-lo oferecendo um estímulo estético.

É preciso induzir uma nova forma de prazer sempre submetida à manutenção da capacidade de reprodução do capital mesmo.
Marx vai apresentar duas senhoras: Senhora Moral e Senhora Religião[7]. Estas duas Senhoras são completamente obsoletas e desnecessárias no que diz respeito às leis econômicas: a moral da economia política é o ganho e subordina as duas senhoras à sua lógica num metabolismo eficiente de alienação.


Alienação erótica - o corpo se faz fetiche:

No âmbito da economia de mercado alienação deve ser entendida não como falta mas como abundância de promessas. Alienação não é ausência, mas é promessa de presença. Alienação não é a negação do corpo, mas a expropriação da sensualidade e da erótica a serviço da apropriação do produto. Alienação das materialidades do trabalho para consolidação existencial do consumo. As coisas e os corpos perdem sua materialidade imediata para serem mediatizados no consumo da mercadoria. O corpo se faz mercadoria. Assim, fetichismo funciona bem tanto no discurso econômico como na linguagem porno-erótica.
A invisibilização do trabalho se dá na glamourização da corporalidade e da erótica. O corpo das classes trabalhadoras, transformado em mercadoria dele mesmo, se aliena no consumo erotizado que oscila entre desejo e realização. Na invisibilidade e inviabilidade da experiência do trabalho como acontecimento humanizador e criador de cultura, o mercado esvazia o lugar da produção para fazer o elogio do mercado no âmbito do consumo sem permitir perguntas sobre relações reprodutivas e distributivas.
Localizado o movimento fundamental na base do consumo e negando o conflito entre capital e trabalho, o mercado particulariza a distribuição das riquezas, tornando inviável a democratização do consumo. A dinâmica entre promessa e realização, desejo e posse, alimenta-se da sensualidade para manter os modos de reprodução e controle do capital.
O que para alguns se explica com a existência e a funcionalidade de sistemas dinâmicos parcialmente auto-reguladores, no que se refere aos comportamentos humanos[8] as feministas insistem em apontar como reinvenção de mecanismos históricos de dominação. Não seria possível chamar o mercado de mecanismo auto-regulador porque o termo reflexivo continua expressando uma particularidade (de classe, de gênero e etnia) que se pressupõe universal ou global.

Erotizar a teologia para enfrentar o deus-mercado:

Alienação e fetichismo não são invenções do capitalismo e do patriarcalismo: precisam ser entendidos no âmbito da fabricação dos mitos, dos cultos, dos encantamentos, dos rituais mágicos de manutenção de ambos, seus deuses (capital/pai) e seus truques. A religião sempre foi também expressão e reprodução de situações econômicas e de relações sociais de poder. Nesta dobradiça entre o discurso amoroso e sensual e o discurso religioso é que a teologia feminista percebe, não um conjunto de comparações ou recursos estilísticos, e sim um espaço de análise e crítica fundamental das relações entre capital-mercado-patriarcalismo.
De igual modo se mostra necessário identificar e criticar o dualismo imagético do pensamento marxista dividido entre as duas senhoras desnecessárias (moral e religião) e as representações do imaginário feminino da grande sedutora nas relações de consumo. Rever os imaginários – antigos e novos – se faz necessário na busca de um metabolismo econômico sustentável e igualitário. Suspeitar e desconstruir estas redes de imaginário que alimentam alienação e fetiche do capital e do patriarcado, se articulam de modo necessário com o desvelamento das redes institucionais de regulação das economias mundiais (nunca! de auto-regulamentação) e sua
aparência metafísica.

A estetização da mercadoria confere ares de divindade ao dinheiro e ao mercado, garantindo fundamento metafísico para a cultura burguesa e seus rituais e cultos que demandam a produção de legitimação de si mesma e de constante reificação das necessidades dos dominados. Esta produção estética, que se apodera do corpo, sua capacidade criativa, inventiva, sensual e erótica, vem cooptando as teologias cristãs, suas exegeses e hermenêuticas, seus sacrifícios e mecanismos de postergação como linguagem missionária da suposta inexistência do conflito de classe e da invevitabilidade do mercado como realização plena da vida humana.
A contribuição ética do feminismo se dá na insistência de que o pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a produção é distributiva, o consumo é criativo. Esta reversabilidade dos sentidos e suas relações confronta qualquer modelo político metafísico de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e necessidades. Não há nenhum mecanismo fora da história, no passado ou no futuro, capaz de concretizar relações igualitárias.
Ao insistir em trabalhar com o corpo, a vida cotidiana e suas relações como lugar vital de construção e circulação de poder e significados sociais e teológicos[9], a teologia feminista quer inviabilizar a mercantilização dos corpos e a estetização da mercadoria. Neste sentido, e de modo especial, a Bíblia e a teologia deixam de ser uma identidade auto-referenciada nos métodos sociológicos e histórico-críticos e passam a conviver com a vertigem da pluralidade dos paradigmas: classe, gênero, etnia, ecologia. São estas simultaneidades vivenciais e suas diferenças irredutíveis que tornam impossível qualquer tentativa idolátrica de mercantilização do corpo e estetização da mercadoria.
Visibilizar o caráter hermenêutico das relações políticas e econômicas e desvendar os mecanismos de construção de ídolos e rituais auto-reguladores, exigem uma teologia capaz de desistir de qualquer mão invisível auto-reguladora (seja ela dogmática ou exegética) para se inscrever definitivamente no campo da criação cultural, estética de memórias, hermenêutica de libertação. Deus conosco


* todas as gravuras a seguir são de Marc Chagall





Esporas do desejo:

ler a Bíblia ou consumir religião?

Escolho meus materiais de imaginação e desejo sem precisar me explicar demais: trabalho com os estalidos da literatura bíblica não mais como destino ou necessidade, mas desconhecendo qualquer fronteira entre espasmo e terremoto no corpo da minha história pessoal e no corpo sub-evangelizado dessa América Latina. São narrativas estranhas e próximas: dócil prisioneiras dos altares e das academias de teologia; selvagens e míticas no uso oscilante e mágico da leitura popular. Refaço a leitura e invento contrários: mastigo as narrativas fundantes com dentes de muitos dias sem comer e recuso toda forma educada de participação no metabolismo ocidental, burguês e cristão das imagens. Quando o verbo se faz mercadoria e se perpetua entre nós... é preciso tomá-lo de novo como carne crua, negar seu valor de troca, enfrentar seu valor de imagem e grudá-lo de novo na pele suada dos homens e mulheres pobres: dolorosos e gozosos, benditos e malditos. Iluminada pela delicadíssima brutalidade da disputa pelos corpos e seus desejos, eu leio no feminino plural.
Os pequenos textos que se seguem são ao mesmo tempo rascunho de um programa inacabado de um tratado teológico que não quer ser nem tratado nem só teológico. São trajetórias cultivadas em textos e assessorias e, reunidas assim, só mostram o seu avesso: o que eu queria mesmo era fazer uma canção.




Por uma estética do desejo sem culpa (Gênesis 3):


Eva, a primeira. A mulher de grandes olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. A árvore? Boa de se comer! Agradável... agradável aos olhos; gostosa na boca se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo. A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.

Por uma estética do trabalho seus desejos
(Cântico dos Cânticos)


A Amante. A mulher de grandes boca e pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios, suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar, juntar, separar... trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.




Por uma estética da propriedade
e sua erótica (Rute):



Rute, a outra. A mulher de grandes ombros curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra. Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados, Rute se despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele dia de recriação.


Por uma estética distributiva e seu prazeres

(2 Reis 4, 1 a 7):

Viúva, a última. A mulher de grande boca aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver escorrer. Maravilhoso... de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava. Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.






















Por relações reprodutivas libertadoras
e o prazer de decidir:


Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço pra mais alguém e se lança de mãe e boca:

O Espírito de Deus está sobre mim... porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres, para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de decisão (entre Isaías e Lucas).

Puro erotismo modelando o útero e projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável... volumoso nas entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o último primeiro dia de salvação.


[1] extraído de me texto “Commodity aesthetics and the erotics of relationship” publicado in: Marcella ALTHAUS-REID, Liberation Theology and Sexuality, Ashgate, UK, 2006
[2] HAUG, W.F., Crítica da Estética da Mercadoria, UNESP, São Paulo, 1996. p.30
[3] ibid., p.35
[4] MARX, O Capital, vol.1, in: HAUG, op.cit., p.30
[5] MARX, Para a Crítica da Economia Política, Os Pensadores, Victor Civita, São Paulo, 1985, p.163
[6] MARX, ibid., p.214
[7] MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Os Pensadores, p.19
[8] MO SUNG, Jung, Novas Formas de Legitimação da Economia, Koinonia, ReLat 273, www.koinonia.org/relat
[9] vv.aa., Pautas para uma hermenêutica feminista da libertação, Ribla 25, Vozes, Petrópolis, pp.5-10