agosto 30, 2017

Corpora Fluida - contaminação e perigo no imaginário religioso

leitura crítico-antropológica do Levítico Bíblico


Corpora non agunt nisi fluida.
"As substâncias  não interagem a não ser fluidas"
- ditado dos antigos alquimistas



A saúde e a doença, a fome e a comida, o prazer e a dor  são, na biblia hebraica, feixes complexos que se entrelaçam pôr dentro do tecido social de forma tão abrangente que é difícil  dissociar a saúde do corpo das pessoas da saúde do corpo social. Nas narrativas bíblicas as fomes e dores,  as pestes e pragas dizem respeito à ordem social, tendo alcance sempre comunitário e político.

“É crucial reconhecer a existência de um período de freqüentes epidemias e altas taxas de mortalidade...este fator, talvez até mais que a fome e a guerra (ou ao menos combinado com esses dois outros males), criou uma situação de vida - ou melhor, de morte - de monumentais proporções...”  [1]

Este comentário de Carol Meyers ajuda a perceber a importância que havia em tentar entender e intervir nas situações de doença, de fome e dor que colocavam em risco a sobrevivência de todo o povo. Era fundamental criar modelos interpretativos e rituais que pudessem interferir nas situações de risco do sistema vital. Estas situações eram sinais de desordem e ausência de Deus. Tanto a técnica como a cultura elabora instrumentos e metáforas que controlem e/ou expliquem/ordenem estas situações de risco.
A comida, a sexualidade, a saúde e a terra são dinâmicas de reprodução da vida social. Em torno destas dinâmicas  se criam procedimentos e rituais que garantem ou restauram a ordem/saúde de todo o grupo.

“Tudo que pode acontecer a um homem na forma de desastre deveria ser catalogado de acordo com os princípios ativos envolvidos no universo de sua cultura particular. Algumas vezes, palavras engatilham cataclismos, algumas vezes atos, algumas vezes condições físicas...as idéias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões, têm como função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada. É somente exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e abaixo, fêmea e macho, com e contra, que um semblante de ordem é criado.”  [2]

No Levítico em particular e nas religiões antigas em geral é impossível pensar no sistema saúde-doença sem levar em conta o "princípio vital" que se faz presente de modo concreto nos fluídos corporais e os possíveis mecanismos de controle nele implicado.




Problema:

Para mim, nada é finito. O que não passa através da pele,
entre nossa pele, mistura-se nos fluidos dos nossos corpos.
Nosso. Ou pelo menos o meu.
E como o meu é contínuo com o seu, não há limite fixo para impor
uma nítida separação. Exceto por você.
Quando você diz: eu sou, ou existo. Ou: você é isso.
cercando nossa natureza, transformando nossos corpos em
 propriedades privadas ou casas prefabricadas. [3].


Nossa ideia de corpo é escrava da ideia de conceito, como uma unidade e identidade, mas os corpos são passagens, são buracos, orifícios entre isso e aquilo, como funções e relações de continuar vivo. O corpo não é. O corpo flui. Narinas, boca, poros, vaginas, anus, olhos, orelhas e todas as trocas possíveis entre os corpos de gente e o corpo do mundo. 
A troca de fluido através dos limites que não são fixos, especialmente as fronteiras permeáveis de corpos, e as possibilidades infinitas de intercâmbio, sugere uma vital in-corporação de vários corpos/subjetividades, em oposição à incorporação opressiva/ apropriação na a economia heterossexista pelo qual a mulher e o homem são limitadas dentro das fronteiras finitas de definição.
As culturas desenvolvem modos de controle e ordenação do sistema "fluidos corporais", seus conteúdos e símbolos associados, através de técnicas corporais e rituais aplicadas a cada fluído, as regras de comportamento e cuidados relativos à manipulação e os lugares de descarte. Mais do que o estudo individualizado, é necessário formular significados para o lugar deste sistema para os processos de produção e reprodução da vida social e ritual.


As religiões antigas médio-orientais oferecem um cenário privilegiado para perceber como os sistemas de crença se apropriam, organizam e significam as dinâmicas dos fluidos corporais. Os sistemas de crença produzem relações de poder e saber que fundam processos de exclusão, naturalização da desigualdade e normatização da hierarquia. Outros cenários mantem a proximidade com a religião mas ampliam as técnicas de manipulação para o campo da ciência, da medicina e da cosmética como pode ser conhecido, por exemplo, no Livro dos Mortos ou na teoria dos temperamentos do Corpus Hippocraticum[4].
No caso da literatura bíblica o Levitico pode ser considerado um cenário privilegiado para o estudo de proposta ritual de controle e ordenação das trocas pessoais e sociais e seus processos de contaminação/comunicação. Esta proposta ritual se oferece para alem dos códigos de pureza da Biblia Hebraica, exercendo pressão também sobre as comunidades judaico cristas do 1º século como pode ser estudado no Novo Testamento, textos de Qumran e também em expressões iconográficas, como amuletos de proteção.
Uma aproximação critica ao livro do Levítico tem com objetivo identificar os materiais da retórica fundamentalista e suas contradições desvinculando o texto bíblico dos abusos discursivos e recolocando-o no seu lugar significativo e importante para o estudo da religião judaico-cristã e suas interferências complexas na cultura contemporânea. 
Os usos e malfeitos da leitura do Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para as pretensões de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica do Cristianismo Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as interdições. Os temores de contágio – que insistem, por exemplo,  na vinculação aids/desordem/castigo – encerram em si uma ideologia heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na homogeneidade e repetição do mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas clássicas de teologia sistemática  e no lobby das hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo, das relações, das peles e do pelo.



Justificativa: das totalidades e seus contágios

"Por que está doente?", perguntaram à Herr Keuner as pessoas. "Porque o Estado se acha em desordem", respondeu ele. "Por isso também meu modo de vida não está em ordem, meus rins, meus músculos e meu coração ficam em desordem... Quando chego à cidade, tudo anda mais rápido ou mais lento do que eu. Falo apenas com quem está falando, e escuto quando todos escutam. Todo o proveito que ganho de meu tempo vem da confusão; a clareza não traz proveito, a não ser que apenas um a possua." Geschichten vom Herrn Keuner. Bertolt Brecht[5]


Uma das formas importantes no Levítico de conexão das partes e do todo é a dinâmica de “contaminação”: pode ser uma ideia, uma doença ou uma culpa. Tudo se comunica com tudo. Mas é uma conexão não necessariamente projetada ou sistêmica porque a concepção de contágio guarda está ideia de “fora do controle”, pode até mesmo acontecer sem que se saiba, de maneira insidiosa.
Esta percepção de que as trocas e comunicações sociais e pessoais são suscetíveis de levar-e-trazer conteúdos não desejáveis coloca todo o sistema e sub-sistemas num lugar de vulnerabilidde  que pode gerar confusão colocando as parte-e-todo em situação de distúrbio das identidades e integridades pretendidas. Este processo fora do controle – contaminação – distúrbio é justamente o que pode ameaçar a “totalidade social” pretendida e seus eixos de disciplina. Aqui reencontramos as heranças e interdições que fundam e mantém o cristianismo patriarcal.
O Levítico é particularmente atento a situações de passagem, aos espaços entre isto-e-aquilo porque são os ínfimos lugares de conexão do todo-e-partes que definem a santidade do sistema pretendido. Desde o pescoço do animal sacrificado e a asa destroncada da ave, passando pela fusão do azeite sob a farinha até o contato do sacerdote com um cadáver, passando pelas trocas vitais de todos os poros e orifícios corporais nas dinâmicas de sexo-comida-saúde, chegando até os tipos de semente, os fios da roupa, os processos de divida e a posse da terra: entre uma coisa e outra, um corpo e outro um grupo social e outro existem espaços de poder que precisam ser controlados, fronteiras estabelecidas e limites impostos para garantir o pleno funcionamento da vida.
Para além de uma compreensão funcional e mecânica dos espaços de comunicação, o Levítico identifica normatividades e padrões e alerta para os elementos estranhos e indesejados que podem diluir e comprometer a integridade desejada. Pode ser o mofo, pode ser um animal com barbatanas, pode ser uma mancha num animal, pode ser sexo incestuoso, o sangue menstrual, ou a situação de endividamento não superável: tudo isso é confusão, abominação e impureza. Se algumas destas situações são inesperadas e não controláveis outras são frutos da decisão e da contravenção, da transgressão que geram poluição. Tudo que coloca o tecido social em distúrbio na forma de caos ou indiferenciação precisa ser identificado e excluído pelos sistemas de controle da cultura[6].
Tanto os pecados conhecidos como os desconhecidos precisam sem examinados, identificados e reconhecidos como impureza que coloca toda a vida pessoal e social em perigo. Se consequência do imponderável nas relações com a natureza ou consequência da subversão dos atos humanos o altar reivindica para si sob os olhos do sacerdote a legitimidade de conferir e certificar, considerar aceitável ou inaceitável, puro ou impuro.
Este poder de comunicação/transmissão são identificados nos fluídos corporais (sêmen, sangue, pus, cuspe,etc.) que extrapolam suas potencialidades para além do corpo mesmo assumindo caráter condutor das relações interpessoais, grupais, sociais e até mesmo ambientais. Fora do corpo os fluídos merecem ser identificados, catalogados e controlados por colocarem todos os níveis de relação em processo de comunicação/transmissão/contaminação.
O Levítico tem a proposta de organizar toda a vida e suas redes a partir do altar, do sacrifício e do sacerdócio que expressam e representam a vontade e o mandamento de Deus. Esta noção de “rede” pode parecer moderna mas surpreendentemente corresponde ao modo como o Levítico articula as relações de relações do complexo vital.



O projeto do Levítico se ocupa com a ordenação e a integridade dos corpos: o corpo pessoal, o corpo social e o corpo da terra. Também aqui o uso de “corpo” pode parecer fora do lugar, mas o Levítico compreende as materialidades “encorpadas” que se relacionam no processo de vida e tudo está em relação com tudo. Os textos se ocupam com a coceira num corpo e com os mecanismos sociais de distribuição da terra, passando pelos arranjos familiares, relações de trabalho e conflitos.
Esta característica de “totalidade” do projeto do Levítico é sistematicamente descartada em usos mais rápidos e inescrupulosos que destacam itens e os isolam sem as necessárias articulações internas. A modernidade interpretativa aqui – de tratar da totalidade literária e da totalidade sócio-simbólica – é uma opção teórica que procura manter a organicidade e materialidade histórica do texto.

A categoria de totalidade significa (...), de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas[7].

Neste sentido os abusos fundamentalistas das leituras bíblicas encontram coerência e aderência na descostura dos pós-modernismos que pairam pela teologia reduzindo as tradições religiosas e seus textos “a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva produção do conhecimento[8]. O Levítico, sem critica e sem mediações, passa a fazer parte do circo de horrores da teologia retributiva e patriarcal sem corpo, contra o corpo e apesar do corpo.


O Levítico é um livro sobre os corpos, de corpos sobre corpos, de corpos evitados, de corpos mediados e mediadores. Todo o livro está organizado na forma de códigos como se todos os procedimentos da vida ritual e cotidiana estivessem previstos e codificados. Para entender o Levítico é preciso então o exercício de perceber as linguagens corporais sobrepostas: o corpo jurídico e o corpo ritual como vestimentas sobre os corpos dos seres e suas relações. Neste sentido, se faz necessário identificar as vestes dos códigos para desvestir o discurso e re-encontrar o corpo: pessoal e social.
Para ler estas materialidades e suas representações é necessário deslocar os eixos redacionais clássicos privilegiando as dinâmicas culturais e suas representações literárias. Mais do que perguntar pelos códigos como corpo jurídico, procurar pelos corpos concretos de homens, mulheres e outros seres da natureza perguntando pela ordenação das relações, que são ordenações do mundo na relação com o sagrado. São os mistérios mais dolorosos e os mais gozosos que dão e tiram sentido pra vida vestidos de rituais e gestos que, repetidos re-inventam o movimento que sustenta a vida.
            O corpo é a mediação pela qual a sociedade produz e se reproduz. Mais que uma estrutura biológica, o corpo é uma realidade sócio-cultural.[9]
O Levítico para ser entendido no âmbito da corporeidade precisa ser lido sem os preconceitos da compreensão ritualísticas que criam uma falsa antí-tese entre ritual/culto como contrários da dinâmica profética e evangélica.
            De fato o Levítico não pode ser lido a partir dessa cultura religiosa da palavra e dos atos interiores. O Levítico tem uma exterioridade e uma plasticidade que não convive com a percepção do judaísmo-cristianismo como religião do Livro e da Palavra. No Levítico a Palavra não tem função. O que está por escrito não precisa ser dito, não há fórmulas a serem repetidas, são os gestos e os rituais, os sacrifícios e sua geografia do corpo animal, os banhos e a materialidade dos corpos, as ofertas e seus odores desprendíveis.
No princípio era o corpo. E o corpo era sem forma e vazio... havia o caos entre as dobras do corpo e seu contorno, entre o hálito da fera e o casco das cabras, entre a flor de farinha e o azeite de cheiro, entre a coceira interminável e o sangue na pedra, entre a água e o fogo, o cru e o cozido, o fora e o dentro, o um e o outro, entre o muito e o fim.
É na passagem entre uma coisa e outra que o corpo é fabricado, tecido, cozido, criado, disposto, enfiado, trazido.
O corpo é passagem, lugar de trocas necessárias e cotidianas, no exato lugar imprevisível entre o desejo e a sobrevivência, precisão e vontade.
Relação de relações, o corpo é espelho do mundo, no reflexo do olho, na ponta da língua, na palma da mão, no palmo de terra, na planta do chão, na planta do pé, no pé de feijão, no fundo do prato, no clarão do sexo, na pressa da dor... o corpo se faz ritual.
O corpo se faz ritual entre istos e aquilos, entre eu e uma outra, entre o almoço e jantar – mesmo quando não há; entre nascer e morrer, entre o molhado e seco, o gozo e o medo... tudo é corpo.
Na pele do mundo
no rosto do bicho
na densidade da água
na forma do fogo
na aspereza da fome
na estreiteza do corte.

Entre os entres de estar vivo, entradas e saídas de rituais repetidíssimos acontecem de novo e de novo, variações improváveis da marcação do ritmo do ar que entra pelo nariz

da semente que arrebenta a terra

do sol em seu giro de sombra
da chuva e suas vontades de pouco e muito
do ponto de cozer a carne
do sangue vindo todo mês
da festa e suas predigistações
de nove meses pra poder nascer.

Os rituais de fabricação do corpo são assim a exata proporção entre a necessidade e a invenção, natureza e cultura de não se poder dizer onde uma antropofageia a outra sem desaparecer.
Seres de ser assim: rituais sobre o corpo. Religião.
O Levítico é um livro sobre as trocas religiosas e culturais. Um exercício de olhar a realidade e de identificação de seus pontos de passagem, as encruzilhadas das trocas sociais e seus mecanismos de poder.



Eis aqui o corpo com tudo que pode acontecer com um… ou quase! O capitulo 13 do Levítico é exaustivamente meticuloso e conhece todas as possibilidades de cores, riscos e sensações. Os capítulos 13 e 14 tratam da lepra. Uma leitura mais cuidadosa revela que pôr lepra se entende toda e qualquer mancha ou marca ou sinal que aparecer num corpo. Tudo que coçar, modificar, irritar, tingir a pele de uma outra cor...tudo que desordenar a aparência, a ordem visível de um corpo...é lepra.
Inchação, pústula, mancha, pêlo, pele, carne, cabeça e pés,  úlcera, cicatriz, queimadura, barba, cabelo, calva, bigode. Podem ser amarelas, brancas, vermelhas ou verde, fundas ou superficiais, lustrosas ou baças. Podem aparecer na roupa, lã ou linho, na costura, na linha, no couro, na pele, avesso ou direito. Vão merecer fogo ou água; vão poder conviver ou não no meio da comunidade.
Todas estas possibilidades e, quem pode verificar, avaliar e decidir é o sacerdote. É diante de um sacerdote que o corpo marcado pôr qualquer dessas coisas deve se apresentar e aguardar o veredicto:
“Será imundo durante os dias em que a praga estiver nele; é imundo, habitará só: a sua habitação será fora do arraial.” (Lev. 13, 46)


Aqui os códigos estão lidando com materiais muito antigos, selecionados e colecionados a partir de temas básicos da cosmovisão do judaísmo. A seqüência corpo/casa/cosmo é freqüente em muitas culturas e a crença de que as doenças são co-extensivas ao corpo da pessoa, da casa e do cosmos também :

            “Habita-se o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo...Toda  ‘moradia estável’ onde o homem se ‘instalou’ eqüivale, no plano filosófico, a uma situação existencial que se assumiu.” [10]

 Os tabus e interditos sobre doença podem ser protetores e criativos se vividos na ambivalência e conflituosidade do corpo do doente, da casa/coisas, do cosmo.  Mas, idealizados e legitimados como mecanismos de exclusão podem matar. Entre tantas e outras doenças que excluem e matam na América Latina, enfrentar os conteúdos religiosos das metáforas sobre saúde e doença é uma exigência, também no que diz respeito à AIDS:

            “As afirmações dos que pretendem falar em nome de Deus podem de modo geral, ser facilmente explicadas como a tradicional retórica do discurso sobre as doenças sexualmente transmissíveis - desde as fulminantes  de Cotton Mather até  as recentes declarações de dois destacados religiosos brasileiros, o cerdeal-arcebispo de Brasília, D, José Falcão, para quem a AIDS é ‘conseqüência da decadência moral’, e o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro,  d. Eugênio Sales, que vê na AIDS ao mesmo tempo um castigo de Deus’ e uma ‘vingança da natureza’.”[11]  

Nas metáforas da AIDS convivem o medo de uma sociedade plural, a idéia de uma sociedade suja merecedora de condenação, o imaginário de deterioração que vem do contato com quem não é normal, ou alguém que vem de fora, além da relação com uma sexualidade doentia, exótica e poluente.

O contagio: entre uma coisa e outra
            A função que o sistema do Levítico atribui ao sacerdote é o de examinar e identificar, categorizar e anunciar os estados de pureza-impureza e seus rituais asociados à economia do altar: para cada exame, declaração e ritual se estabelece uma troca econômica que legitima o poder do sacerdote no cumprimento de sua função social. Esta lógica é fundamental para entender o lugar da religião nos processos de  certificação social: é a partir destes mecanismos que os agentes religiosos e suas agências se recriam economicamente.


            Parte do trabalho do sacerdote descrito no capítulo 13 é o de não só identificar o status corporal deste ou daquilo, mas também de avaliar os trânsitos entre uma coisa e outra. Interessa a cor, o tamanho, a espessura da ferida na pele mas também existe a exigência de avaliar o trânsito, a possibilidade e o alcance do contágio.
            O capítulo 13 começa com:
2 O homem que tiver na sua pele inchação, ou pústula, ou mancha lustrosa, e isto nela se tornar como praga de LEPRA, será levado a Arão, o sacerdote, ou a um de seus filhos, sacerdotes.
 3 O sacerdote lhe examinará a praga na pele; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de LEPRA; o sacerdote o examinará e o declarará imundo.
 4 Se a mancha lustrosa na pele for branca e não parecer mais profunda do que a pele, e o pêlo não se tornou branco, então, o sacerdote encerrará por sete dias o que tem a praga.


            A tarefa inicial é a de análise e qualificação das marcações corporais e seus comprometimentos: inchação, pústula e mancha; branco, lustroso, profundo ou não. Sob uma designação genérica todos os fenômenos são reunidos numa mesma categoria צרעת “tsaraath” que vai se tornar mais genérico e impreciso nas traduções para o latim lepra e este do grego λέπρα (lepra, doença de pele que provoca o aparecimento de escamas). 
            Bem distante do termo moderno e seus usos, o termo “tsaraath”, no hebraico, significava uma condição anormal da pele dos indivíduos, das roupas, ou das casas, que necessitava de purificação. Segundo o Livro Sagrado, o “tsaraath” na pele dos judeus seriam “manchas brancas deprimidas em que os pelos também se tornavam brancos”. Na tradução grega, a palavra “tsaraath” foi traduzida como lepra e “lepros” em grego, significa “algo que descama”.  Afeta seres animados e inanimados; aflige seres humanos (1), roupas/tecidos (2) e casas/objetos (3). A raiz linguística sugere “afligir, causar aflição”; termo geral para certos tipos de doenças de pele e não uma condição; qualquer doença que produz feridas e erupções na pele.

            O outro termo utilizado pelo Levítico 13 (34 vezes em 59 versículos) é נֶגַע nega` que pode ser traduzido por  peste, doença, marca, praga local e tem como matriz o significado  o que pode  tocar, fazer chegar, estender, atingir como por exemplo em Levítico 6, 18:

Todo varão entre os filhos de Arão comerá dela, como a sua porção das ofertas queimadas do Senhor; estatuto perpétuo será para as vossas gerações; tudo o que as tocar נָגַע será santo.

A segunda tarefa do sacerdote torna o exame mais apurado (discernir, distinguir, considerar, refletir) aproximando o “nome da coisa” ao “medo da coisa” na raiz נֶגַע nega`: peste → espalhar, estender
5 Ao sétimo dia, o sacerdote o examinará; se, na sua opinião, a praga tiver parado e não se estendeu na sua pele, então, o sacerdote o encerrará por outros sete dias.
 6 O sacerdote, ao sétimo dia, o examinará outra vez; se a LEPRA se tornou baça e na pele se não estendeu, então, o sacerdote o declarará limpo; é pústula; o homem lavará as suas vestes e será limpo.
 7 Mas, se a pústula se estende muito na pele, depois de se ter mostrado ao sacerdote para a sua purificação, outra vez se mostrará ao sacerdote.


A atenção do sacerdote se volta para os processos de comunicação ou não de “tsaraath” e nega` e a “opinião” que o sacerdote deve emitir tem como objetivo identificar se o contágio é um processo que se alastra ou se houve interrupção do processo. A “opinião” do sacerdote vai implicar em processos de exclusão ou não da pessoa “contaminada”.
Os termos hebraicos importantes aqui são:
se a praga tiver parado”  עָמַד `amad permanecer, perseverar, manter uma posição de
“se a pústula se estende” פָּשָׂה  pasah  que se traduz como disseminação, espalhar

            Contra o perigo de transmissão, de contágio o texto vai propor medidas de controle ou destruição uma vez que este “fato social” coloca em risco o conjunto, a totalidade da vida comunitária sob guarda dos altar. Pessoas e coisas que foram declaradas impuras nos capítulos devem ser purificadas ou destruídas: (a) Lavado com água (cf. Lv 11:32; 15:06.). (b) queimadas a fogo (cf. Lv. 13:52, 55, 57). (c) Quebradas (cf. Lv. 11:33, 35). (d) Demolidas (cf. Lv. 14:40-41, 45).
            A pessoa que for considerada impura pelos sacerdotes sofre a humilhação de ser publicamente declarada ou até mesmo de ter que se declarar imunda, o que tem como consequência o isolamento da presença de Deus e da vida comunitária. O que está imundo deve ser colocado fora do campo, longe da presença de Deus, longe do povo. "... Ela não deve tocar em qualquer coisa consagrada, nem entrar no santuário" (Lv 12:4). Em alguns casos a coisa imunda ou pessoa era visto como sendo um elemento de contágio que precisa ser controlado ou eliminado (cf. Lv. 15:4-12, 23-24, 26-27). O Levítico confere este poder aos sacerdotes e toda a vida comunitária depende desta tarefa de manter o puro longe do impuro... e se este lugar não existe ele pode ser inventado pelo ritual.


Conclusão:
a clareza não traz proveito, a não ser que apenas um a possua... Brecht
            Os equívocos da história da tradução e da interpretação reforçaram ainda mais o potencial inquisidor e persecutório do texto do Levítico que, a rigor, representa a formulação conjuntural de tratamento de casos de doença de pele e de processos de contaminação na antiguidade. Está claro que a proposta do Levítico de uma sociedade controlada a partir do altar tem condicionantes políticos e econômicos e a explicitação das situações de conflito presentes na comunidade. Claro está também que este projeto de totalidade não se sustenta como modelo de ordenação da vida comunitária uma vez que muitos elementos vitais da proposta foram deslocados, relativizados e superados. Mas...
a proibição do homoerotismo permaneceu. A Igreja herdou a visão antropológica da heterossexualidade universal, com suas interdições.[12]

            Os usos e malfeitos da leitura do Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para as pretensões de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica do Cristianismo Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as interdições. Os temores de contágio – que insistem na vinculação aids/desordem/castigo – encerram em si uma ideologia heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na homogeneidade e repetição do mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas clássicas de teologia sistemática[13] e no lobby das hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo, das relações, das peles e do pelo.
            Quando o Papa Bento XVI afirma que o casamento gay ameaça a humanidade[14] e que se deve proteger a heterossexualidade em nome de Deus como se protege o planeta o que está sendo dito é que os arranjos sexuais, familiares e comportamentais escapolem do controle da igreja que vê minguando seus mecanismos de poder. Tal clareza só traria proveito para o Papa mesmo... se ele fosse um poder inconteste. Não é.   Mal ou bem me sinto acompanhada: faz tempo que não pronuncio Teu nome em vão.







[1]   MEYERS, Carol, As raízes da restrição - as mulheres no Antigo Testamento, in: Estudos Bíblicos, Vozes, Petrópolis, n.20, 1988. p. 18
[2]   DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo, Perspectiva, Sao Paulo, 1998,  p. 15
[3] IRIGARAY, Luce. Elemental Passions, New York: Routledge,1992.
[4] MARTINS; SILVA; MUTARELLI; A teoria dos temperamentos: d o corpus hippocraticum ao século XIX http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a14/martisilmuta01.pdf
[5] BRECHT, B., Stories of  Mr. Keuner (Excerpts), in:  http://www.bopsecrets.org/CF/brecht-keuner.htm (acesso em 12/11/2011)
[6] DOUGLAS, Mary, Pureza e perigo, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976. p. 15
[7] LUKÁCS, G. Existencialismo ou Marxismo? São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979,  apud. CRUZ, M. M. Avaliação de Políticas e Programas de saúde: contribuições para o debate. In : MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde, 2011. p.181-199, http://www.ims.uerj.br/ccaps/wp-content/uploads/2011/10/Capitulo-7.pdf (acesso 20/12/2011)
[8] CARVALHO, Edimilson, A Totalidade Como Categoria Central na Dialética Marxista, Revista Outubro, Instituto de Estudos Socialistas, nº 15, 2007, in: http://orientacaomarxista.blogspot.com/2008/07/totalidade-como-categoria-central-da.html (acesso em 20/12/2011)
[9]              MADURO, Otto, El cuerpo en América Latina, in: Revista Feminista de México, N. 14, 1979, p. 14
[10] ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano - a essência das religiões,  Edição Livros do Brasil, Lisboa, p. 184 e 185
[11] SONTAG, Susan, op.cit., . p.73
[12] LIMA, op. Cit.,
[13] MUSSKOPF, A.S., Via(da)gens Teológicas, itinerários de uma teologia queer  no Brasil, tese de doutorado, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2008, in: http://pt.scribd.com/doc/17202107/35/Marcella-Althaus-Reid-e-uma-%E2%80%9Cteologia-inde


estado laico: o jOgO dos 7 erros

encontrei 7 erros nesta frase...
"O Estado brasileiro é um Estado laico. Mas, citando o salmo de Davi, queria dizer que feliz é a nação cujo Deus é o Senhor." - Dilma, a presidenta
1. O Estado Brasileiro não é um Estado laico pleno (confira próximos itens abaixo);

     2.Não se coloca um MAS depois de uma afirmação constitucional;

3.Dilma não queria nem saberia dizer o que disse... disse por imposição de campanha (que assessoria é essa?);

    4.Este Salmo não é de Davi;

5.Davi não escreveu este Salmo nem nenhum Salmo;

6.Este verso pressupõe 2 afirmações inaceitáveis num Estado laico e democrático:   

- que a “felicidade” da vida nacional depende da garantia do senhorio de um Deus Senhor;
- implica numa percepção de povo escolhido;


7.este Salmo usa 3 expressões yāša‘ (salvar), nāşal (escapar), e mālaţ (salvar) - versos 16 e 17 – mas do jeito que a coisa vai... vamos ter que nos virar do avesso para escapar do fundamentalismo religioso porque o Estado prefere o escambo ao direito.


confira: 

https://www.youtube.com/watch?v=F_s5Gnrvoj0

http://www.estadao.com.br/noticias/geral,feliz-e-a-nacao-cujo-deus-e-o-senhor-diz-dilma-a-evangelicos,1540929