agosto 06, 2017

os pobres possuirão a terra



"Os pobres possuirão a terra " - disse dom Tomás!



O documento "Os pobres possuirão a terra" construído e assumido por lideranças de diversas igrejas sobre a questão da TERRA no Brasil deve ser lido de modo apocalíptico ou integrado? Utópico ou realista? O título seria um slogan litúrgico ou um programa político? 
Afirmar que “os pobres possuirão a terra” num momento de retomada da concentração da terra no Brasil pelo modelo do agro-hidronegócio e expansão de grandes projetos de infra-estrutura que devoram milhares de quilômetros de chão e floresta e rios e modos de vida pode parecer mais uma frase de efeito incapaz de lidar com a realidade.
Mas como é mesmo que "realidade – religião – campesinato – história" se combinam numa mesma frase? A luta pela terra não precisa da Bíblia para se legitimar... o que se procura aqui é uma compreensão entre religião e luta pela terra aonde a CPT tem suas raízes e sua motivação. Quem são os pobres? e como esta afirmação se realiza na história?


Os pobres-quem possuirão a terra?
Três categorias importantes na teologia da libertação latino-americana (TdLL) potencializam e exigem esta pluralidade epistemológica: história, realidade e pobre. Mais que conceitos estas palavras são acontecimentos e motivam e sustentam o fazer teológico entre nós. Num texto de 1989, José Comblin afirma:

Os pobres... são seres vivos e ativos, vivem a história e não são apenas peças que intervêm em certos acontecimentos... Pois a história não se constrói somente nos acontecimentos excepcionais que de vez em quando mudam os rumos das sociedades. Tais acontecimentos são o ponto final em que desembocam milhões de ações particulares de milhões de pessoas diferentes.

Com esta perspectiva evita-se uma compreensão idealizada e meta-narrativa dos processos históricos e suas simultaneidades, problematiza-se a idealização e redução do sujeito histórico – pobre – e traz a relacionalidade da realidade – com suas estruturas, vida cotidiana e subjetividade - para dentro do âmbito da teologia.
Antropologia, relações sociais de gênero e etnia, ecologia, literatura, linguagem mediática, economia, cultura popular, bio-ciência... a teologia é visitada e habitada numa relação conflitiva e criativa que refaz as perguntas, complica o método e desassossega os sistemas. A teologia precisa aprender a pronunciar o plural como diferença e como simultaneidade, como construção e constructo.
Assim história-realidade-pobre deixam de ser uma identidade auto-referenciada nos métodos sociológicos e histórico-críticos e a teologia passa a conviver com a vertigem da pluralidade dos paradigmas. Para alguns – reféns dos monólogos teológicos patriarcais – a pluralidade da história, da realidade e do sujeito enfraquece a teologia ou se limita a ornamentos e anexações. É que eles ainda pensam que existe uma teologia substantiva que aceita conviver com teologias adjetivas, desde que ajustadas na concordância verbal de uma teologia fundamental, sistemática e dogmática.

Torna-se difícil no momento prever se a pós-modernidade se imporá no interior da teologia a ponto de reduzí-la a pequenas narrativas teológicas, renunciando-se assim definitivamente a qualquer sistematização, ou se entrará num processo de harmonização de todo o pensar religioso ou se conviverá com uma pluralidade de paradigmas.

A pluralidade vista assim como garra da pós-modernidade contrapõe sistema  a narrativa. Renunciar aos sistemas e reduzir-se a pequenas narrativas? Harmonizar ou conviver? O sentimento é de perda do controle, das totalidades e de medo dos fragmentos simultâneos. O que está perspectiva não compreende é que a pluralidade não é uma escolha metodológica que se faz na quietude da reflexão. A pluralidade e a diferença e a simultaneidade constituem história-realidade-sujeito e  constituem o discurso e a prática sobre elas. É que ao trazer a vida e luta plural dos pobres pra dentro da teologia os métodos e sistemas não ficaram intactos: são criticados, rejeitados, deslocados, oxigenados... Somente a assepsia da teologia patriarcal poderia pretender trazer a vida pra dentro de seus livros e exegeses e não ser contaminada por ela. A vida: sofrida e gloriosa. Soberbamente insinuante por todos os poros desse continente e suas lutas e religiosidades suadas, vividas no atrito entre textos e corpos. Uma teologia vivida e apaixonada.


Nas palavras de Dom Tomás Balduíno:
Teologia é a reflexão que esses bispos engajados nessa luta pela justiça e pela paz em todo o mundo, sobretudo aqui na América Latina em que a Igreja se abriu, fazem. Ao se abrir para o nosso mundo, encontrou o mundo de baixo: o mundo dos índios, dos negros, dos sem-terra. E [a Igreja] foi a eles, com opção preferencial evangélica pelos pobres.


2- A revelação primeira – a VIDA e a HISTÓRIA

A terra sempre foi disputada palmo a palmo no processo de dominação do Brasil. A violência sistemática contra as comunidades indígenas e negras a partir da escravidão e da exploração arrancava das mulheres e homens os meios de produção e destruía os modos de vida e trabalho; esta violência foi se institucionalizando, se estruturando na forma jurídica da propriedade da terra baseada na grilagem, falsificação de documentos, corrupção e suborno e diversos processos de expulsão e violência contra comunidades. Estas “leis” transformavam todas as trabalhadoras e trabalhadores em sem-terras forçadas/os ao assalariamento ou ao abandono do campo, da floresta, da terra, dos rios, das ilhas... de seu chão. 
Este processo vai marcar nossa história por grandes processos de lutas camponesas de resistência contra o avanço do modelo explorador do capitalismo brasileiro. São histórias que ainda não foram bem contadas, nem bem estudadas: são histórias da resistência das mulheres e homens mais pobres na defesa da terra, da água e da floresta. São histórias de fé e de andanças, de profecias e guerrilhas, de vitórias e derrotas... muitas derrotas.
O pouco que se sabe sobre estas lutas camponesas são datas de massacres e nomes de líderes, datas de enfrentamentos com o exército e nomes dos coronéis que ordenavam o massacre. Sabemos os belos nomes dos acampamentos, dos assentamentos, dos novos lugares para onde acorriam as camponesas e os camponeses para viver e para lutar. Mas sobre as mulheres o que se sabe é que elas estavam lá! Definitivamente! Eram lutas comunitárias, eram lutas de re-invenção da sociedade e lutas que deslocavam comunidades, famílias inteiras para novos territórios “libertados”, organizados a partir da nova esperança. Haviam mulheres, homens e crianças, jovens e velhos, velhas. Animais. Árvores. Seres da terra na luta pela terra.
Os poucos olhares historiográficos sobre estes movimentos não retrataram de modo digno os homens (chamados de “loucos”, “selvagens”, “ignorantes”, “brutos”, “incivilizados”) e as mulheres não foram vistas! Quando era impossível não vê-las elas também foram tratadas como “loucas” e “histéricas”. Outros relatos contam dos casos de estupro e abuso da soldadesca contra as mulheres e crianças no final dos episódios de derrota dos movimentos. 
Seria preciso então re-construir o dia-a-dia de vida desses movimentos camponeses de luta e resistência, perguntar por suas formas de organização e de circulação de poderes, os modos de produção e reprodução da vida material e simbólica que mantiveram estas comunidades camponesas coesas e com capacidade de enfrentamento. A re-construção das relações sociais de gênero no âmbito dessas experiências ainda não é uma tarefa possível pela dificuldade das fontes e pelo reduzido interesse desse campo da história. 
Seria possível  situar estas relações por dentro das tradicionais relações sociais de poder e gênero do campesinato resguardando características regionais e mantendo as tarefas e os papéis culturalmente atribuídos; mas também seria possível supor que o deslocamento geográfico e político, a matriz messiânica-carismática de muitos desses movimentos pudesse ter deslocado também os atributos de poder e gênero redefinindo culturalmente alguns significados e modelos. 
Não são idéias que alteram e mudam as relações de poder mas na vivência do conflito, da luta de classes as mulheres e homens se apropriam também dos instrumentos políticos e econômicos de enfrentamento da subordinação patriarcal. As situações de conflito e de revolta flexibilizam os modelos e papéis sociais e familiares exigindo de mulheres e homens novas atribuições;  a situação de conflito prolongado exige que também as mulheres assumam tarefas econômicas na comunidade até então atribuídas aos homens, exige que elas participem das formas de organização da defesa “militar” da comunidade, que “substituam” os homens em situação de risco ou clandestinidade. O conflito redesenha os poderes, suspende os atributos historicamente conferidos e cria reais condições revolucionárias. 
Entender as revoltas e resistências camponesas não como episódios isolados mas como capacidade continuada e orgânica de reprodução de um modo de vida exige perceber o protagonismo de mulheres e homens, da família/comunidade camponesa como expressão da classe trabalhadora. Esta perspectiva cria condições reais de integrar toda a riqueza da subjetividade sociocultural, a profundidade das crenças, dos sentimentos e emoções na análise dos fatos históricos. A fé cultivada na luta, no dizer de Mariátegui:

No meu caminhar encontrei uma fé. Isto explica tudo. Cabe esclarecer que a encontrei por minha alma ter saído de madrugada na procura de Deus. Como diria Unamuno, sou uma alma agônica (agonia, no sentido como ele com tanta razão acentua, não significa morte, significa luta). Agoniza quem combate.



As revoltas camponesas apresentam então por um lado um aspecto que poderia ser entendido como nostalgia de um mundo tradicional expresso em valores míticos e religioso contra as inovações da nova ordem que violenta o mundo camponês, mas por outro lado se organiza de modo absolutamente inovador na contramão dos atributos culturais estabelecidos, invertendo inclusive valores do mundo tradicional também presente. Não deve ser visto unicamente como "uma sobrevivência comovente de um passado arcaico", mas como uma força cultural que permanece ativa, sob outra forma, nos movimentos sociais e políticos modernos

Essa abertura para a dimensão subjetiva se traduz também pelo fato de que a análise em termos de classes sociais não elimina o lugar irredutível dos indivíduos, tanto célebres quanto desconhecidos, aos quais o historiador frequentemente dá a palavra.

O aspecto religioso e messiânico das revoltas camponesas na história do Brasil tem servido como motivo para uma leitura de caráter mágico, extravagante e irrelevante desses movimentos. De modo especial as ambigüidades que cercam a participação das mulheres nesses movimentos como do Contestado tem deixado de visualizar as potencialidades organizativas e emancipatórias das formas tradicionais da cultura camponesa fazendo uma avaliação crítica a partir de elementos organizativos não pertencentes ao modo de vida camponês e seu repertório de revolta e resistência.
As análises marcadas pelo "preconceito racionalista e modernista" de boa parte dos estudos sobre campesinato no século XX marcaram as lutas das populações camponesa como primitivas sendo por isso consideradas "bizarras e fenômenos marginais". Em nome da coerência classificatória os movimentos de populações do campo marcadas por manifestações religiosas foram distanciados e isolados dos movimentos sociais considerados classistas e revolucionários. 
Foi o trabalho crítico de Hobsbawm que criou argumentos analíticos e interpretativos que considerassem as populações "primitivas", sobretudo rurais como vetor, fonte e raiz domais significativos acontecimentos revolucionárias deste mesmo século XX, em que camponeses e massas pobres dos campos tiveram um papel decisivo: a revolução mexicana de 1911-1919, a russa de 1917, a espanhola de 1936, a chinesa e a cubana. O elemento desestabilizador seria o viés religioso-messiânico que inviabilizaria o modelos de entendimento "classista" para movimentos liderados por beatos e beatas e muita reza.


O povo vivia a religião das novenas, dos benditos, exemplos de santos contados pelos mais "lidos", pelos romeiros, histórias de graças alcançadas e terríveis punições infligidas a quem tem "a alma em pecado mortal". recorrendo às orações fortes, e promessas nas horas de aflição. A religião aparece naquele universo como o próprio elemento organizador das relações sociais, o aspecto dominante, emergente e estruturante daquela sociedade, constituindo, com o trabalho, o pacifismo e a caridade, os alicerces do mundo dos beatos.

Entre beatos e bandidos a história das "vias camponesas" no Brasil precisam mesmo de um processo de alargamento e recriação teórica, para que a vida de comunidades inteiras e sua luta pelo direito de vida num território e pelo direito a manter com dignidade seu modo de vida não seja massacrado também nas lidas interpretativas.


3As "vias camponesas" e suas revoltas
O reducionismo teórico de compreensão do campesinato, criou lacunas imperdoáveis no debate e no resgate histórico das lutas camponesas no Brasil. Este debate importante e estruturante impactou não só o campo teórico mas também as formas de organização e intervenção dos/as trabalhadores/as do campo e da cidade. Contrariando as fórmulas teóricas que minimizavam a luta camponesa, o conflito sempre manteve alternativas de compreensão:

Jamais, ao longo de toda a história da sociedade brasileira, esteve ausente, por um instante sequer, o inconciliável antagonismo entre a classe dos latifundiários e a classe camponesa, tal como igualmente sucedeu em qualquer tempo e em qualquer parte do mundo.

A tarefa de resgate teórico e das práticas camponesas ainda estão em curso entre nós; apresento alguns exercícios que foram iniciados nos cursos de formação da CPT.
Acreditamos que tenham sido sobretudo cinco as vias que levaram à formação do campesinato brasileiro propriamente dito, categoria que se encontra, atualmente, em acelerado processo de superação devido a sua crescente submissão à produção e ao mercado capitalistas. Ou sejam: as vias nativa, cabocla, escravista, quilombola e colonial.





3.1- Eram camponeses os "cabanos"?
Quem eram os cabanos e o que queriam com a revolta das “cabanas”? queriam reorganizar seus modos de vidatradicionais, queriam se livrar da integração compulsória aos interesses econômicos do Poder Central na região, queriam manter sua relação de trabalho e vida com a floresta e rio sem a imposição da miséria. Frei Francisco Luis Zagalo, e o Padre João Batista Gonçalves Campos participaram ativamente da definição do projeto político-ideológico no processo revolucionário no Grão-Pará.
A capitania do Grã-Pará era desenvolvida com uma economia extrativista das drogas do sertão e de madeira. A produção extensiva de cacau e arroz em grandes fazendas do interior utilizavam basicamente a mão-de-obra de indígenas aldeados e poucos escravos negros. Os portugueses controlavam todo o comércio e a economia local. A população miserável de mestiços, brancos pobres e indígenas alienados de suas comunidades habitavam palafitas sobre os rios e igarapés e eram chamados de cabanos
Eram camponeses? Pela régua fria da teoria, não. Mas eram populações expulsas de seus territórios, que perdiam a relação estável com a natureza e tinham seus modos de vida baseados no trabalho familiar e na convivência com a natureza destruídos. 
A reflexão de Hobsbawm pode ajudar a superar a rigidez teórica e buscar uma percepção ampliada e mais orgânica com os modos de vida do "primitivos", da classe-antes-da-classe, do campesinato que ainda-não-se-sabia.

Para compreender tais revoltas ... é preciso partir da verificação de que a modernização, a irrupção do capitalismo em sociedades campesinas tradicionais, a introdução do liberalismo econômico e das relações sociais modernas significam para elas uma verdadeira catástrofe, um autêntico cataclismo social que as desarticula completamente... Quer esse advento do mundo capitalista moderno seja um processo insidioso, pela operação das forças econômicas que os camponeses não compreendem, quer uma irrupção brutal, por conquista ou mudança de regime, eles o veem como uma agressão mortal a seu modo de vida. As revoltas camponesas de massa contra essa nova ordem, vivida como insuportavelmente injusta, são frequentemente inspiradas pela nostalgia do mundo tradicional, do "velho e bom tempo" - mais ou menos mítico...

Quem estuda a Cabanagem aponta para um movimento revoltoso de massa por parte dos "cabanos" e a aproximação improvisada de intelectuais, entre eles religiosos, que discordavam do poder central do Império. De certo modo, se as motivações das massas "cabanas" eram econômicas, as lideranças mediadoras se concentravam mais na ruptura com o modelo político imposto pelo poder central. A participação de padres e religiosos na Cabanagem é cortada por contradições que ainda precisam ser estudadas 
Em 1833 a grande revolta popular dos Cabanos reúne todo o descontentamento com a política colonial, mas principalmente expressa a revolta das comunidades extrativistas “cabanas” que vão ser a principal força nesta luta que durou até 1840 e exigiam reformas sociais, tais como: fim da escravidão; melhoria de condições de vida das camadas populares; distribuição de terras sob a liderança de Eduardo Angelim e outros.  O Governo Central esmagou violentamente cerca de 30% da província do Grão-Parácomo "bandidos". Não havia como identificar os “cabanos” porque eram muitos, eram todas as comunidades de índios, negros e mestiços.


3.2- O Cangaço – Maria Bonita é camponesa?
A origem do Cangaço é o latifúndio.
A necessidade de manter a posse da terra, de ter a terra, fez com que esses donos de terra mantivessem exércitos para lutar contra os índios, lutar contra os pobres, os posseiros, e depois também houve a necessidade de manter esses exércitos, grupos de capangas, de bandidos, etc... para manter a própria mão-de-obra, ou seja, para manter o escravo, prisioneiro, para evitar ou lutar contra a rebeldia do negro escravo.

Esta expressão histórica da luta camponesa do nordeste (1900- 1938) que se mostra de modo mais evidente na conhecida trajetória de Lampião e Maria Bonita mas é cercada por muitos mitos e contradições.


O cangaço foi uma forma de organização de camponeses rebeldes que atacavam fazendas e vilas. Os grupos eram formados, principalmente, por camponeses em luta pela terra., expulsos de suas terras pelos coronéis. Os cangaceiros replicavam, vingando-se em uma ou mais pessoas da família do fazendeiro. Os diferentes grupos
cangaceiros desenvolviam suas ações por meio de saques nas fazendas e nas casa comerciais. Essa forma de banditismo colocava em questão o próprio poder do coronelismo.

A presença e participação das mulheres se dá nas lutas de classes, também naquelas que não conseguem um potencial de organização e consciência capaz de conduzir as classes trabalhadoras para seus objetivos de emancipação.
O cangaço nordestino é plenamente marcado por essa ambigüidade, por essas contradições: expressavam a revolta camponesa contra o latifúndio, mas podiam ser também manipulados pelos interesses do latifúndio (Lampião foi “contratado” para combater a coluna Prestes!).
A fixação na pessoa de Maria Bonita – mulher de Lampião – e Dadá – mulher de Corisco -  entre os cangaceiros não reflete a dinâmica complexa das relações de gênero que marcaram este período da história nordestina:
As mulheres entravam nos bandos de cangaço por vontade própria; os casos de rapto eram poucos e não representativos. A partir de 1928 as mulheres são plenamente integradas aos bandos sem nenhuma função específica (cozinhar, costurar, limpar...). Existiam os grupos designados para as tarefas e as mulheres se encaixavam nesta divisão.
A costura era assumida por alguns artesão que tinham sob sua responsabilidade as obras de artesanato que vestia o grupo. As mulheres não carregavam punhal ou fuzil, somente pistolas automáticas. Elas eram jovens e tiveram filhos e filhas durante o período de Cangaço muitas vezes em processo de perseguição. As mulheres entre si faziam os partos.
Os relatos atestam que a infidelidade sexual-afetiva era considerada como erro fatal e a vingança ocorria dentro dos valore do machismo mais grosseiro.
Marcado por estas contradições o Cangaço mesmo não sendo considerado um movimento popular camponês da história brasileira apresenta elementos importantes para a consideração da luta de classes e a participação plena das mulheres. A situação de marginalidade total em que o bando se colocava suspendia as normas de funcionamento da família em nome do funcionamento eficiente da vida do bando redefinindo o papel das mulheres ficando a sexualidade como um reduto mais sedimentado e difícil de ser deslocado.
Os equívocos políticos e estratégicos que acompanharam a história de homens e mulheres no Cangaço deve ser motivo de reflexão e aprendizado para que o pleno desenvolvimento do potencial revolucionário e organizativo de camponesas e camponeses e para que a violência das classes dominantes não manipulem lideranças e ações de luta para seus interesses.
Se o Cangaço servia tanto às classes dominantes, por que ele foi liquidado, por que se tratou de liquidar o Cangaço? Porque, a partir de determinado momento, quando as condições sociais, econômicas, de incipiente industrialização, de progresso, enfim, de novas estradas, de novas relações econômicas, sociais surgem no Nordeste, o Cangaço já não é mais conveniente para as classes dominantes.
Qual a herança que a história do cangaço deixa para a luta das camponesas e dos camponeses? 
Onde andas Lampião ? Onde estás Maria Bonita?Ainda sois cangaceiros ? Deixastes rastros  de história, tu que eras mestre nos rastros da enganação. Deixastes restos de memória, tu que vivestes tempos de solidão.Talvez numa fazenda, talvez numa paz longíqua, talvez manter-se guerreiro. Talvez vingativos, em dívidas de sangue, em raivas históricasde injustiças infindas. Talvez numa mulher daquelas brejeiras com a coragem de Maria. Com a vontade de Dadá, com a presteza de Nenê, com a garra de Moça E o ímpeto de Inacinha...Não acordastes Lampião para acordar Maria Bonita. Hoje dormes inquieto E teu povo medroso enfrenta Outros bandos centrais. Tu e teus cangaceiros eram apenas marginais. O rio São Francisco te viu passar.


3.3- Jacobina:  eram camponeses/as os/as Muckers?
Entre 1872 e 1876  no Rio Grande do Sul um grupo de colonos descendentes de alemães, insatisfeitos com o crescente processo de concentração da propriedade da terra e a espoliação dos comerciantes da região, liderados por Jacobina Mentez Maurer (que se dizia o Cristo Feminino) e inspirados na Bíblia, forma uma comunidade fechada em Sapiranga (RS).
...a rebeldia e até seu revolucionarismo deveram-se às modificações estruturais, econômicas e sociais, porque passavam as colônias alemãs depois do término da Guerra do Paraguai, quando transitaram de uma comunidade igualitária para outra assentada na diferenciação de classes.

A perspectiva classista do movimento dos Muckers precisa ser entendido por dentro da resistência de "colonos" contra os mecanismos de acumulação nas mãos dos comerciantes e transportadores da produção rural. Este processo de acumulação golpeava o modo devida auto-suficiente desejado pelas comunidades autônomas até a década de 1870. A ruptura com a coerência interna de seu modo de produção de vida levou ao processo de insurreição na forma de movimento messiânico que propunha o retorno ao passado igualitário, negando o presente cheio de desigualdades e conflitos.
Os muckers aboliram a propriedade privada e implantando a autogestão econômica. Não circulava dinheiro entre eles e o trabalho era realizado de forma associativa com refeições em comum. Redefiniram as regras do convívio social.  Os casamentos foram desfeitos e re-feitos sob a benção de Jacobina, tendo ela mesma trocado de marido sendo acusada na época de defensora do amor-livre e contra a família. 
Esta experiência provoca uma reação positiva em outras famílias camponesas descontentes que se organizam ao redor de Jacobina (chamada mucker , “beata”) e uma violenta reação da oligarquia gaúcha, que mobiliza tropas do Exército, da Guarda Nacional e grupos civis, num total de 800 homens armados, que praticam um verdadeiro massacre, destruindo a comunidade dos Muckers e matando cerca de 100 pessoas.
Diferente das outras formas de resistência religiosa do catolicismo popular camponês, o movimento dos muckers precisa ser entendido por dentro das trajetórias do campesinato de imigração no sul do Brasil e sua movimentação por dentro da luta de classes e das relações sociais de gênero que se estabelecem a partir do conflito.
Lembrando o desafio teórico que se coloca para a luta camponesa hoje 
camponês e campesinato são palavras maiores, indispensáveis, úteis, mas também imprecisas e de árdua definição diante da diversidade do universo empírico ao qual estão referidas... Se camponês é termo que suscita um conceito aparentemente volátil, ou mais precisamente problemático ou até incômodo para certos pesquisadores, juntá-lo com etnicidade pode parecer complicado, mas tem repercussões bem precisas no campo das relações sociais. 


3.4- O Caldeirão e Pau-de-Colher: lugar de mulher!

Organizados ao redor do beato José Lourenço, seguidor do Padre Cícero, diversas famílias se organizaram na região do Crato e com o trabalho comum, fizeram a terra prosperar de modo comunitário atraindo cada vez maior número de fiéis para a vida comunitária e o ódio dos fazendeiros da região. As comunidades de Caldeirão e Pau de Colher, nos anos de 1930, envolviam sertanejos principalmente do Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia. 
As elites do local não toleravam mais nenhum tipo de movimento messiânico o que levou à perseguição e prisão do beato e a dispersão das famílias. Ao sair da prisão, o beato Lourenço teve que deixar a região mas, em 1926, o padre Cícero consentiu que seus seguidores se fixassem em outro sítio conhecido como  Caldeirão, também próximo à cidade do Crato. Apesar da região difícil, com o trabalho organizado das famílias camponesas, a região se tornou produtiva na agricultura e pequenos animais e se desenvolveu com mais de 500 núcleos familiares. Isto começou a atrair romeiros e outro beato que percorria os sertões, Severino Tavares, exortava o povo para que seguisse ao Caldeirão - terra da fartura e da promissão. Durante a terrível seca de 1932, o beato José Lourenço chegou a alimentar, além de seu povo, um grande número de flagelados. 

Maria de Maio nasceu no Caldeirão, conta:
 Eu vivia lá. Ia gente que o Padrim Cícero sempre mandava. Gente pra trabalhar lá. Quando chegava em Juazeiro umas pessoas, que não tinha trabalho, ia trabalhar lá.

Com a morte do Padre Cícero setores da igreja católica quiseram retomar o terreno ocupado pela comunidade do Caldeirão sem nenhuma forma de negociação ou indenização considerando as benfeitorias e todo o trabalho feito pelas famílias camponesas na região. Nenhuma negociação foi possível nem compra. A igreja e as elites retomaram o processo de difamação do Caldeirão de modo especial acusando o beato pela vida comum com as muitas mulheres que viviam na comunidade, mulheres sem marido que haviam encontrado seu lugar na comunidade. Outra acusação era de que o Caldeirão recebia armas do exterior.




A comunidade do Caldeirão não aceitou sair e organizou sua resistência. A intervenção armada aconteceu em 11 de setembro de 1936 e o beato Lourenço e seus seguidores refugiaram-se na serra do Araripe. O sítio foi destruído, saqueado e vendido em leilão público - sob as vistas das mulheres, crianças e velhos que não fugiram das tropas. 
As famílias camponesas se reorganizaram então a partir da serra do Araripe e do sítio do Pau-de-Colher. Atraídos pela água e pelos ensinamentos dos beatos o Pau de Colher passou a ser um lugar onde se reuniam necessitados, flagelados e famílias de pequenos posseiros. 
Estas  três experiências camponesas (Caldeirão, Serra do Araripe e Pau de Colher) são formas de lutas contra o latifúndio, onde alguns poucos controlam os meios de produção, são donas dos recursos naturais. 
O fanatismo que os animava (os camponeses) era revolucionário e alimentava a esperança de mudanças para um mundo melhor. O ódio contra as classes dominantes, o entusiasmo na vida comunitária, levaram todos eles a deflagrarem um fluxo de atividade econômica, usando meios de produção revolucionários para a época"

O crescimento significativo dos assentamentos camponeses e a capacidade de organização da produção e da reprodução da vida comunitária vai desafiar a política de controle dos governos estaduais e central fazendo com que o governo da Bahia  peça ajuda aos estados do Ceará e Pernambuco para destruir as comunidades articulando os donos das terras, igreja, polícia e governo. O Presidente da República, Getúlio Vargas exigiu que se exterminasse o movimento radicalmente!
Na batalha final o Ministério da Guerra utilizou três aviões para o bombardeio aéreo, incendiou as casas e os locais comunitários, promoveu saques dos produtos e equipamentos existentes no local. As mulheres e homens enfrentaram os homens do Exército armados de fuzis com luta corporal usando facões, ferrões e cacetes. Crianças e velhos foram espancados, os prisioneiros/as foram executados/as (300 fuzilamentos). No final foram setecentos camponeses mortos. Não há notícia de baixa entre as forças militares.
Hoje em dia existem somente três peças que fazem a memória do povo do Caldeirão e Colher-de-Pau: a bandeira da comunidade, três fotografias publicadas em jornal da época e uma espingarda não muito usada. O depoimento de uma das únicas sobreviventes desapareceu do Museu Histórico do Ceará. Dizia assim:

Eu num sei o que foi de fizeram esta perseguição, porque agente num tava matando, num tava roubando, num tava fazendo mal. Tava trabalhando e rezando. Ai, por isso fomos perseguido e sentenciado à morte, ninguém sabe, quem é Deus, né! O que tenho a dizer é isto... tava no Caldeirão cantando e rezando e tão feliz, trabalhando e comendo. Sem ninguém precisar pedir nada pra ninguém, porque tudo tinha, nada faltava, tudo era comum. O que era de um era de todos e ai quando dava fé uma perseguição.

As vias camponesas atravessam a história e se apresentam sempre de novo como resistência ao modelo de mercantilização da terra,da água, da natureza, do trabalho e da vida. Nas palavras de Dom Tomás Balduíno: 

Os povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio.


4- A REVELAÇÃO SEGUNDA – o texto bíblico e a teologia 

O que dizer hoje de "os pobres possuirão a terra"? Como entender o desassossego programático do salmo bíblico (Salmo 37, 11) quando estamos cercados de discursos e políticas realistas de adaptação dos pobres ao espaço e território possível, permitido e deixado pelo capital?  Significa embarcar nas políticas da soja ética, da monocultura de eucalipto ecológica, do manejo de rios e populações transplantados, da reforma agrária anexada ao capital? Os pobres possuirão o que o capital deixar?
Jogar a inquietação deste pequenino versículo bíblico para um futuro revolucionário restaurador de relações ambientais e sociais exigiria uma compreensão mágica de um processo revolucionário que não cabe na dialética do concreto de nenhuma militância real. Os pobres possuirão... seja lá o que sobrar de terra e de gente? Esta compreensão mágica restauradora das relações ambientais e sociais teria de pressupor uma presença de Deus no mundo e na história para além do mundo e da história. Apesar do corpo do mundo e da história humana. Contra a geografia e seus viventes. E aqui seria preciso pedir explicações teológicas ao documento.
O que significa teológica e pastoralmente afirmar que OS POBRES POSSUIRÃO A TERRA? O que afirma o Documento da CPT?


O discurso sobre a utopia me desagrada porque é um discurso sobre o que não existe. O que transformou o mundo não foi a utopia, mas a necessidade. Se a realização de nossas utopias ocorressem em breve, não seriam chamadas de utopia, mas sim de muito trabalho e dedicação(José Saramago, debate no Fórum Social Mundial)

Aceito a provocação de Saramago: não se trata de utopia... mas necessidade. Precisão (como modo ativo de precisar... de querer muito!) O documento  OS POBRES POSSUIRÃO A TERRA não é um texto utópico, uma referência de trabalho, um roteiro a ser consultado. O documento é resultado, ele mesmo fruto da necessidade, nascido do trabalho e da dedicação de gente comprometida com a luta da terra. 
O texto afirma a história como conflito, assume a luta de classes como cenário trágico de disputa de modelos de estar no mundo e seus seres... e faz uma escolha: OS POBRES. A TERRA. 
Na afirmação do texto do Êxodo 3 é na luta pela terra que historicamente se conhece a Deus, o nome de Deus é revelado: na aflição que é ouvida, no sofrimento que é compartilhado, na ação libertadora que á assumida. No êxodo 3 não se trata da eleição de um povo, de uma etnia, de um território, de um estado. É a afirmação do sagrado na vida dos pobres. Também não se trata da condição humana em geral, da existência dos seres humanos ... trata-se de uma experiência de fé que se entende e se explica a partir dos pobres – homens e mulheres! Deus escolhe uma classe social! e um projeto de libertação da terra.
Assim OS POBRES POSSUIRÃO A TERRA!
O texto bíblico não é detalhe ornamental. Um texto antigo. Nada utópico, o texto bíblico é memória das materialidades esperançosas dos oprimidos - homens e mulheres, suas lutas e caminhadas pela terra de precisão e promissão. O texto bíblico fala de um coletivo, dos oprimidos (`anavim), os pobres e necessitados, os afligidos. 
O verbo (Yarashé mesmo tomar posse, possuir, ocupar, herdar a terra mas de uma forma conflituosa... despossuindo para possuir; desocupando para ocupar; deserdando para herdar. O tempo do verbo aqui é outra maravilha: é um presente aberto de futuro. É o modo de ação – o contexto – que caracteriza a ação como acabada ou não: passado, presente ou futuro. 
E a terra: 'erets! Tanto pode ser a terra sob os nossos pés, como a terra-planeta. Melhor assim: os pobres possuirão a terra sob seus pés e o planeta!! Território, região, pedaço, sub-solo, solo, mundo. 
É uma afirmação de fé. É a afirmação do espaço e da intensidade da experiência de Deus: na história, no mundo. Com os pobres e a terra. Tudo necessidade. Tudo desejo. Tudo precisão.
Nos evangelhos esta afirmação programática retorna na prática de Jesus e na afirmação de Mateus 5:
Bem-aventurados os pobres porque eles herdarão a terra!

O texto da CPT diz:

Em primeiro lugar nossa mensagem se dirige aos camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, e a todos os povos da terra, das águas e da floresta do Brasil. Apreciamos sua sabedoria e sua cultura. O trabalho de suas mãos põe nas mesas dos brasileiros a maior parte dos alimentos. Reafirmamos nossa solidariedade às suas causas, lutas e organizações...

O texto deixa claro o amplo exercício de convivência, prática e de deslocamento teórico sobre quem são os pobres - homens e mulheres - e de modo concreto o campesinato. As vias camponesas são nomeadas, superando os entraves formais que inviabilizam a articulação das muitas lutas dos povos que vivem da terra e na terra.



Por isso convidamos todas as pessoas, de qualquer credo, que desenvolveram o senso de justiça e fraternidade a que procurem conhecer mais e em profundidade a emergência da situação ambiental e a realidade das pessoas que vivem da terra, a se solidarizarem com elas, a apoiarem suas, mais que justas, lutas e reivindicações. Convidamos toda a população brasileira para juntos procurarmos construir uma sociedade alicerçada na solidariedade capaz de combater a idolatria do mercado.

Os requisitos exigidos pelo documento são o senso de justiça e de fraternidade, o conhecimento em profundidade da situação ambiental e social, a solidariedade e o apoio nas lutas das pessoas que vivem da terra. Estes requisitos vão ser concretizados na frase final: o combate organizado da idolatria do mercado! Tarefa política e teológica. Desafio para a CPT. “Somos da terra e dela recebemos o que é nosso.

Assim falou Dom Tomás:

Está chegando, pois, a transfiguração do povo e da terra construída de baixo para cima, no respeito e na convivência, libertando-se dos projetos faraônicos devastadores, impostos autoritariamente de cima para baixo.


Um bispo faz greve se fome por 24 dias por amor de um rio e seu povo, e as comunidades ribeirinhas e camponesas respondem com a ocupação de hidrelétricas, portos, rodovias, pontes... o tempo parou: fez-se a hora da luta contra o modelo energético capitalista e a mercantilização das águas. Duas mil mulheres num 8 de março ocupam e destroem o laboratório de pesquisa de uma grande coorporação de papel e celulose... o tempo parou: fez-se a hora da luta conta as florestas artificiais, a mercantilização das florestas e contra o papel que o capitalismo internacional destina ao Brasil como exportador de recursos naturais. No norte do país, comunidades atingidas por grandes projetos econômicos ocupam uma central elétrica e desafiam governos e polícias... o tempo parou: as comunidades não aceitam ter seus territórios invadidos pelo agronegócio, pelas obras de infra-estrutura do capital a serviço de interesses das elites. Trezentas mulheres interrompem os trilhos do trem da maior mineradora do país, uma das maiores do mundo... o tempo parou: denunciam a privatização e a violência com que o capital se apodera de terras indígenas e quilombolas, denunciam um modelo de exportação que esburaca e arrebenta com florestas, rios e comunidades. Em todo o país, milhares de milhares de comunidades sem terra ocupam terras, exigem reforma agrária e um outro modelo agrário e agrícola a partir das necessidades das maiorias... o tempo parou: são milhares de barracos de plástico preto, milhares de escolas itinerantes, milhares de roças que produzem alimento e dignidade. Uma centena de mulheres ocupa o laboratório de sementes da Monsanto... o tempo parou: na luta contra transgênicos e contra a privatização da biodiversidade na defesa da produção de alimentos. Trabalhadores escravos são libertados numa grande plantação de cana de açúcar, de uma grande usina produtora de biodiesel para exportação... o tempo parou: que o mundo saiba as condições de vida degradante e da destruição ambiental que alimenta a produção dos combustíveis chamados “verdes”. E tudo isso nos últimos meses, nesses tempos de agora.
Em cada uma dessas atividades, antes – durante e depois, o povo reunido fez a sua mística, relembrou seus mártires, repetiu os motivos e cantou! cantou! cantou! se fazendo povo, se tornando classe. O povo reunido abriu suas bandeiras, desdobrou suas máscaras e gritou suas palavras mais queridas! E nesse exato momento a história dos vencedores foi interrompida e quem tem olhos pra ver... faça teologia! quem tem ouvidos pra ouvir ouça o que o Espírito diz à teologia.
A rememoração do passado, dos mártires de todas as épocas, serve à libertação que há de vir. As lutas são mais inspiradas na memória viva e concreta dos ancestrais dominados do que naquela, ainda abstrata, das gerações futuras. A Teologia da Libertação, recusa as armadilhas da “previsão científica” e valoriza a oportunidade, kairós, em grego, do fim da opressão e da emancipação. Os calendários são expressão de um tempo histórico, heterogêneo, carregado de memória e de atualidade, ao contrário do tempo vazio da tirania do relógio sobre a vida dos trabalhadores. 
O conjunto das culturas tradicionais, pré-capitalistas guarda em seus calendários e festas os vestígios da consciência histórica do tempo. Ao contrário do que pretende o discurso tranqüilizador da doxa atual, da opinião generalizada orquestrada pelo Capital, a catástrofe é possível e provável... não por uma visão do futuro, mas porque nosso povos já experimentaram e experimentam a capacidade detruidora da dominação norte-atlêntica ocidental. Temos memória agônica, com os poros abertos do tecido social para os extremos, a radicalidade fincada no cotidiano. A teologia nem a historiografia não são - mesmo quando querem ser - uma tarefa meramente acadêmica. 
A opção preferencial pelos pobres coloca a teologia no meio do lixo, das sobras e dos restos. Entre os vencidos, já nem sabem mais se a Teologia da Libertação está viva ou morta! Vivíssima... como vivem e lutam os pobres. As maiorias indígenas e negras do continente, as vias campesinas de Chiapas e do MST, quechuas, mapuches, bolivarianos, mariáteguis resistentes. E quando disserem do Brasil que somos um país desenvolvido e já nos contam entre as economias de primeiro mundo mostraremos nossa cara pobre, nossa terra e água consumidas pelo Capital, nossas cidades inviáveis, nossa política corrupta e nossa democracia farsante.
O passado que não aceita morrer (por isso lemos Bíblias na vida do povo, leituras populares, roteiros dos antigos e novos êxodos), as cotidianas lutas dos movimentos sociais (por isso somos pastorais da terra, operária, da mulher marginalizada, do povo de rua, de pescadores, indigenista... o que for!) e a sede por rituais, místicas, símbolos, mágicas, lamentações e profecias.
A teologia da libertação não explica: desexplica! Sem caráter descritivo, não se contenta em estabelecer nexo causal entre isso e aquilo, deus e o mundo.  A teologia atrasa relógios, ataca o mecanismo de permanência e constância e  desinstala o tic-tac ininterrupto e participa da criação desse tempo de agora, o momento exato onde é possível intervir, alterar, destruir, transformar. Como narrativa e ritual a teologia pode fissurar o tempo e estilhaçar o fluxo vazio do tempo passante do “progressismo” burguês.
O pensamento selvagem não é excêntrico, mas é algo grudado na pele do que se poderia chamar de  tradição da dinâmica cultural latino-americana. Um pensamento que sobreviveu ao choque com o colonizador europeu, e sobrevive ao Grande Liquidificador da cultura de massas globalizada, fazendo parte das manifestações e na própria formação desse caldo cultural miscigenado que configura nosso acontecimento e assim entre selvagens e excêntricos repetimos entre a oração e o grito: "Os pobres possuirão a terra".

... parafraseando Mariátegui:

teologia burguesa se satisfaz com uma crítica racionalista do método, da teoria, da técnica das práticas pastorais... Que incompreensão! A força dos agentes eclesiais de base não reside em sua ciência e sim em sua fé, sua paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária (...) é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais.