PAUTAS PARA UMA HERMENÊUTICA FEMINISTA DE LIBERTAÇÃO
Ribla 25 - 1995
Como terra que precisa ser arada, assim é a Bíblia para as mulheres. Bíblia, terra difícil, com partes endurecidas, às vezes, pantanosa...mas com inumeráveis lugares férteis que podem ser trabalhados. Descobrir a fecundidade libertadora do texto bíblico é a tarefa de mulheres e homens que acreditam ser possível recriar as relações sociais de gênero. Há que se trabalhar a Bíblia como se trabalha a terra: com afinco, determinação, sabedoria e prazer.
A leitura feminista da Bíblia é complexa. Nós, as mulheres, nos enfrentamos com um texto muito antigo, que reflete culturas, costumes, épocas, relações, línguas e gramáticas diferentes. Nos enfrentamos, além de tudo, com textos patriarcais e leituras patriarcais - androcêntricas - que vêm se acumulando por séculos. Por isto, a hermenêutica que assume as relações sociais de gênero como lugar privilegiado da leitura, deve ser atrevida, ir além dos cânones tradicionais da ciência exegética. A hermenêutica da suspeita precisa funcionarem todas as áreas: textos, interpretações, tradições, traduções e métodos exegéticos.
As teorias de gênero são uma ferramenta de análise que permite deconstruir o texto, trazendo à luz as relações que aparecem estruturadas no discurso, o qual permitiria a construção de um novo texto que busca ser libertador, também nas relações de gênero. Cremos que este é um dos desejos da divindade criadora de homem e mulher, à sua imagem e semelhança.
1- O corpo como categoria hermenêutica
Por muitos séculos a importância do corpo, do material, foi relegado. Importava a “alma” das pessoas ou, num outro processo de generalização, a pessoa na estrutura sócio-política, nos processos econômicos. Mas, constatamos na história, que o corpo tem sido o espaço maior de opressão e apropriação da mulher - assim como também de outros grupos dominados (indígenas, negros): violação, agressão, negação, abuso, manipulação, idealização. Por isso mesmo, o corpo não pode ser um detalhe numa leitura que se pergunta pelas relações de gênero. A vida ou a morte se manifestam através dos corpos. Recuperar os corpos concretos é parte fundamental da afirmação da vida concretas e sensual.
O texto também é um corpo que se mostra e se esconde de seus leitores/as. Aqueles e aquelas que lêem também são corpos viventes que entram em diálogo e luta com outro corpo: o texto. Ambos mostram seus próprios tecidos: corpos individuais e sociais, femininos e masculinos. No processo hermenêutico desde uma perspectiva corporal, às vezes os corpos se encontram e celebram como quando se recolhe com alegria a boa colheita da terra. As vezes se detestam mutuamente, por decepção pela ausência de frutos ou a imposição de um fruto amargo, que não serve para nada. E, as vezes, um corpo fica de braços estendidos, esperando ser correspondido pelo outro corpo...e nada.
Entender o texto como corpo, fruto de relações sociais de gênero; entender o processo de interpretação também a partir das relações concretas dos corpos traz novas luzes para a compreensão do discurso. O corpo como critério hermenêutico oferece alternativas de leituras que querem ser convites para um diálogo e vivência de novas relações entre mulheres e homens - na teologia, nas igrejas, em casa, na cama, na vida.
Ler a paixão e ressurreição de Jesus desde os corpos esquartejados da América Latina, exige que se volte os olhos para os corpos violentados de mulheres e homens, meninos e meninas e a urgência da ressurreição de seus corpos agora. A recriação do corpo como lugar de revelação do sagrado significa assumir e afirmar a dinâmica libertadora do gozo, do prazer sem vergonha, sem os limites da vergonha, dos estereótipos e censuras opressivas.
2- Os sujeitos e suas histórias cotidianas no processo hermenêutico
Também como nos aproximamos da Bíblia como terra a ser trabalhada, é preciso buscar uma reaproximação de nossas vidas cotidianas: há partes férteis, outras cheias de pedras; desertos e pântanos...mas também, muita fecundidade.
Uma hermenêutica feminista de libertação, que articula as relações sociais de gênero, em sua aproximação do texto, descobre as pessoas em suas realidades, com sua subjetividade, história, cultura, particularidades. Toda a vivência cotidiana lê, interroga e interpreta os textos.
Não somos leitoras/es imparciais; somo pessoas com corpos, cor, sexo, idade; corpo que trabalha, que sofre e que goza, um corpo do qual gostamos ou não, um corpo em que os outros encontram prazer ou não.
Nos aproximamos do texto com nossas vidas que, na maioria das vezes, são tão comuns, tão banais, sem grandiosidades que merecessem ser contadas: os trabalhos domésticos, o cuidado dos filhos e filhas, as preocupações com comida, saúde e sobrevivência; o cansaço, a rotina; a sexualidade passivamente aceita; os sonhos de uma vida mais plena: de amor e paixão; a alegria com o nascimento dos filhos e filhas; sexo vivido com prazer. Uma vitória sobre a luta, um trabalho digno, uma amizade solidária.
São vidas e histórias que nunca serão História, mas são as que constróem e sustentam o tecido social, suas mudanças e resistências. Mesmo quando são objeto dos sistemas e estruturas de poder e governo, podem ser lugar de obstinada e criativa resistência e esperança, sobrevivendo a todos os massacres.
Queremos nos aproximar dos textos trazendo toda a diversidade e riqueza de nossas histórias cotidianas, com esta aparente ausência de cientificidade e assumida parcialidade. O cotidiano é também dinâmica estruturadora dos textos, seu tecido mais profundo e escondido que ainda não foi tocado pelas leituras super-estruturais, super-objetivas e super-sociológicas.
Assim como a vida, os textos também apresentam e são produtos de relações cotidianas cortadas por mecanismos de dominação: de um sexo sobre o outro, de uma classe sobre a outra, de uma etnia sobre a outra, de uma geração sobre a outra. É impossível tentar reduzir estas relações numa categoria ou tentar hierarquizá-las. É preciso trabalhar com esta pluralidade de dimensões e sistemas que aparecem nos textos e em nossas vidas. Se descobre assim o visível e o invisível, se evidenciam as múltiplas crises e diferenças que assumem rosto, voz, corpo...isto é o que constrói e condiciona a história/as histórias, assim como nossa leitura e hermenêutica.
3- Hermenêutica da deconstrução e reconstrução
Como descobrir a fecundidade da terra? Quando ela permite que a vida germine e cresça. Para isso será preciso arrancar da terra o que atrapalha sua fecundidade, aquilo que rompe seu equilíbrio ou seja um obstáculo à sua fertilidade. Então será possível voltar a semear e trabalhar pata receber o fruto da vida.
Nos aproximamos da Bíblia como terra para trabalhar com instrumentos que nos ajudem a receber frutos de vida. Além dos métodos exegéticos com seus limites e possibilidades, as teorias de gênero vêm se mostrando fundamentais para que possamos conhecer a terra em que trabalhamos, suas fertilidades e esterilidades.
As teorias de gênero desnaturalizam os papéis, as identidades, funções e relações que determinada sociedade atribui a homens e mulheres, entendendo que estas atribuições são constructo social que podem ser deconstruídas e recosntruídas sobre outras bases e critérios. Uma hermenêutica feminista trabalhando com gênero faz perguntas como: como se dão no texto as relações entre os gêneros? quais as relações “invisíveis”? como são construídas as identidades de mulheres e homens? que atributos recebem? que estereótipos estão presentes? quais as condições concretas de vida?
Há que se trabalhar em diversos níveis tratando de perceber as motivações e tentativas de normatização que perpassam os textos: o que é narrado expressa uma leitura e compreensão do que é vivido por quem narra; não há que se assumir o que aparece no texto como a realidade de vida das mulheres. Muitas vezes os textos projetam mulheres ideais ou mulheres malditas como realidades opostas e fixas. Texto que são aparentemente favoráveis às mulheres, podem ser sustentados por estereótipos de identidade (mulher sedutora, mãe sacrificial, etc).
Este é o processo de deconstrução. Partimos do pressuposto de que o texto está genericamente construído, isto é, é refém de interesses e relações assimétricas que subordinam as mulheres e, por isso mesmo, precisa ser deconstruído.
É preciso que esta abordagem considere as relações de poder e as estruturas sociais e literária de modo dinâmico para que não se caia numa perspectiva vitimizadora das mulheres. O desafio é o de entender e analisar as circulações de poder numa determinada estrutura social ou literária: o poder não é uma instância absoluta e estática, mas é um conjunto de forças que se move entre/contra/sobre/com os diversos sujeitos sociais. As mulheres também exercem poder, muitas vezes de resistência e sobrevivência, mas nunca são somente vítimas de seus homens e estruturas. podem também ser co-participantes de sua própria subordinação.
A análise da relações sociais de gênero pergunta por esta circulação do poder, entendo aqui a confluência não só das relações de sexo, mas também étnicas, de classe, culturais, geracionais que atravessam as diferentes parcelas da humanidade em toda suas complexidade.
Alguns textos vão se mostrar estéreis para as mulheres, textos em que não haverá possibilidade de germinação. Deconstrói-se o texto, abrindo e limpando a terra, e se descobre os materiais presentes ali por anos mas que, analisados revelam ser causadores de esterilidade para a terra. Precisam ser arrancados. A partir daí a terra precisa receber outros insumos, precisa ser mexida e revolvida, restaurando seu equilíbrio e, quem sabe, sua capacidade de germinação de frutos de vida. Escavando e aprofundando vão surgindo histórias de mulheres, corpos mutilados que estavam escondidos e enterrados por séculos.
Neste processo de deconstrução se recorre a outros elementos hermenêuticos como a intertextualidade (mais dados entre outros textos), intratextualidade (textos dentro do texto) e extratextualidade (documentos extra-canônicos, como por exemplo, os evangelhos gnósticos),
Neste trabalho de agricultoras/es não basta somente limpar e conhecer o texto...é preciso continuar o trabalho perguntando pela possibilidade de germinação. Se inicia assim o processo de reconstrução que seria, antes de tudo, a reformulação dos paradigmas de interpretação, mais ainda, a novidade de paradigmas que permitam outras resoluções da mensagem ou mensagens do texto.
O fato de reconstruir outros texto que por anos vem sendo tomado como lei ou usado para distorcer ou limitar a liberdade das mulheres em sua participação na história coloca a hermenêutica feminista de libertação em uma situação desafiadora diante dos esquemas tradicionais da teologia e da estrutura das igrejas. Neste sentido, uma hermenêutica feminista é a reconstrução da história e participação das mulheres que já não aceitam conviver como minorias mas que se assumem como donas de seu pedaço de terra: seu corpo, sua mente, suas decisão, sua dignidade.
As mulheres e homens que lêem os textos desde suas experiências cotidianas, suas histórias particulares e comunitárias, desde o cruzamento de relações e caminhos, assumem o compromisso da deconstrução e da reconstrução de sentido do texto de tal modo que possa ser lugar de humanização, de integração entre as pessoas. Isto não significa eliminar as ambigüidades ou homogeneizar estilos e recursos dos textos...reconstruir o texto é torná-lo libertador, procurando manter alternativas de interpretação que inviabilizem qualquer tentativa de controle do texto e sua mensagem.
4- Uma hermenêutica que questiona o conceito de autoridade bíblica
Na Bíblia como na terra há revelação de Deus...mas nem a Bíblia nem a terra são Deus. A divindade é um mistério inescrutável. Nossas aproximações do sagrado são aproximações humanas, mediatizadas pela cultura e por nossa história cotidiana. Ninguém pode definir o mistério e declarar sua verdade absoluta. O texto tem a palavra de Deus mas não é a palavra de Deus porque a palavra de Deus é mais do que o texto escrito.
Para as mulheres é fundamental reconhecer que na Bíblia há textos que não são normativos mas meramente circunstanciais. Um texto patriarcal que justifica a discriminação da mulher não pode ser normativo porque é contrário ao espírito libertador do evangelho. Também os aspectos da tradição cultural e social opressores daqueles que interpretam o texto não podem ser projetados como ponto normativo do texto.
A revelação é boa nova e por ser concreta é dinâmica e mutante. Não se limita ao texto mas ao encontro possível da palavra de Deus no texto com a palavra de Deus presente na vida cotidiana de comunidades, mulheres e homens, meninos e meninas...presente na vida de povos distintos com suas culturas e tradições religiosas. Daí a importância de discernir na revelação quais são os elementos particulares do contexto do texto e quais elementos a comunidade que lê considera válidos para seu contexto.
A revelação então se expressa na recriação do texto, produto do encontro libertador entre os corpos dos textos e os corpos de suas leitoras e leitores.
A hermenêutica feminista da libertação não é descobrimento ou exclusividade nossa mas é fruto do diálogo com movimentos feministas e de libertação no continente latino-americano e em outros continentes. O que se deseja é que a terra da Bíblia se converta num Abya Yala para todos e todas, terra enriquecida e fecunda: o humus, terra fértil da palavra libertadora. Terra que já não é lugar de esterilidade e morte mas onde se colhem os novos frutos de fé e espiritualidade.
Ouvimos o que foi dito...MAS NÓS MULHERES DIZEMOS!
Este texto é fruto coletivo do Primeiro Encontro Latino Americano de Mulheres Biblistas, que aconteceu em Bogotá, Colômbia, em fevereiro de 1995. Muitas mulheres contribuiram para a organização dessas Pautas Hermenêuticas: Elsa Tamez, Mercedes Brancher, Ana Maria Rizzante Gallazzi, Nancy Cardoso Pereira,Rebeca Montemayor, Irene Foulkes, alícia Winters, Luz Jimenez, Débora garcia, Violeta Rocha, Josefina Caviedes, Maribel Pertuz, Verônica Rozzotto. Este número de RIBLA reúne a contribuição de algumas de nós e de outras biblistas latino-americanas.
Estamos a caminho. Estamos aprendendo a ler a Bíblia assim...sendo fiéis a nós mesmas, às nossas lutas e movimentos de libertação, em especial de mulheres de nossas igrejas e países. Ainda temos que lutar com as teorias e procedimentos, autoridades e limites. Os textos aqui reunidos expressam nossos esforços pessoais e coletivos e querem ser parte do diálogo da caminhada bíblica latino-americana.
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