Desafios: prática simbólica e política de um cristianismo libertador
Pneus,
pedras e paus. Pode.
Baldes,
cuias, tachos e panelas: também pode!
Cachos
de bananas. Sandálias. Chinelos, também.
Livros,
Bíblia, poesia rabiscada num papel. Pode!
E
a terra! nacos, torrão, punhado, empedrada, poeirenta, montes, rastros.
Sentida toda de chão.
E
a água: molhada de canecas, potes, bacias, garrafas, copos e mãos.
Suada de
sede sempre.
Na
mística da luta do povo as coisas, os tempos e os corpos se oferecem como a
fome e a vontade de comer, o prato e o que é comido.
A mística: o que
é e o que queria ser
Na luta do povo nem sempre os
tempos podem ser ordenados, nem tudo pode ser planejado. As intervenções e
ações obedecem a um plano, um traçado de intenções. Estas intenções estão
articuladas por processos de formação e informação que respondem aos desafios
do enfrentamento cotidiano e histórico dos movimentos classistas. Questões
imediatas de resistência e sobrevivência dos movimentos interagem com os
horizontes mais amplos da luta de emancipação das maiorias. Entre uma coisa e
outra os processos de formação e informação precisam criar identidade, criar
organicidade, mas é a ação direta mesmo que formata na prática as concepções e
as mediações de luta, de organização, de vida e de povo.
"a
experiência dos atores é a primeira, no sentido de mais imediata, determinação da ação política,
por isso, para explicar as mobilizações
populares é necessário recorrer às
formas, bandeiras e reivindicações
desses movimentos e como expressam a
experiência da sua base social no momento da mobilização, cuja demonstração
exige que voltemos a atenção para as tradições, o vasto repertório da cultura
urbana e as mobilizações políticas anteriores, porque é a partir deste conjunto
amplo, fluído e complexo que os movimentos engendram formas organizativas,
criam lemas e bandeiras de luta com os quais se apresentam no debate público e
formulam suas reivindicações" (Pinheiro, 2009).
Nesta passagem entre o imediato e
as mediações do que ainda vai ser residem duas dinâmicas vitais das lutas
emancipatórias: a revisão crítica e autocrítica da práxis e a apropriação
simbólica e afetiva do processo de luta vivido[3]. Estas duas dinâmicas são
simultâneas e se visitam podendo estabelecer relações de atrito e/ou de atração
dependendo da conjuntura que pode ser de crise, de conquista, de derrota
parcial entre outras.
Os
movimentos sociais classistas possuem um caráter educativo, que se dá na
participação política, nos processos de interação, nas negociações com
representantes políticos, nas relações com os mediadores, enfim, a vivência
mesmo como espaço de trabalho e educação. Tanto na dimensão da organização
política, como na dimensão de uma cultura de classe, os movimentos estabelecem
novas aprendizagens e novas tarefas que são vitais na consolidação do sentido
de "pertencimento de classe".
"A
mística enquanto ritual é aqui compreendida como um complexo de ações simbólicas que busca a
construção da identidade de um sujeito
político através da formação da subjetividade dos indivíduos. No congresso como
em todos os eventos de ação coletiva do MST a mística aparece intensamente, busca
obter unidade entre os participantes e
faz com que as pessoas se sintam bem em participar da luta e serve de veículo de aplicação dos princípios
organizativos" (Stédile, 2000).
Se
fosse só teoria, mas não é. Ela é
chamada Baiana, mas é de Alagoas. Ela é a cozinheira do encontro do movimento
de trabalhadores e trabalhadoras desempregados/as. E é mais. Porque não é só
teoria: é a vida.
No final da manhã ela entra na roda
descalça e com um garrafão de vidro azul. Uns 5 litros de água. Um rolinho de
jornal na cabeça ajuda a equilibrar o garrafão.
Com o pandeiro na mão ela desafia toda lei e a gravidade: dança, toca,
canta e equilibra! A voz é forte, cortante. A música fala dos canaviais do
nordeste. Ela bate com força no pandeiro e repete o refrão. Resistência pura. Ela continua sendo a cozinheira, baiana de
Alagoas mas nesse momento ela coloca todo o grupo pra girar e girar em círculo
como se a cantoria dos cortadores de cana e sua luta fosse a luta nossa aqui
também aqui no Sul do Brasil. E funciona. Por um minuto todos/as nós estamos no
canavial, enfrentamos o coronel e a voz dela organiza a nossa luta. Ela bate o
pé e a mão. Balança o corpo. O grupo se diverte, se esbarra. A gente pode ser o que quiser!
Ela vai diminuindo as batidas. Até que uma pancada definitiva e última avisa
que é pra terminar. Ela tira o garrafão da cabeça e grita: obrigada meu povo! E
o povo aplaude: a esperança e a equilibrista! A mulher anuncia: “Tá na hora do
almoço!” – agora ela é cozinheira sem nunca deixar de ser a educadora, a mulher
que oferece o fio da mística pra fazer caber o dia, os estudos, o enfrentamento
do capitalismo, a fome e a vontade de comer.
Os processos de apropriação
simbólica e afetiva da luta popular também oscilam entre momentos organizados e
momentos “acontecidos”. Este momento da
“mulher com a garrafa” não foi planejado... mas necessário. Longe de ser a
afirmação de espontaneismo, o povo organizado articula suas tradições, suas
memórias e suas linguagens e opera na trama com os desafios da intervenção
social gerando momentos de pura “mística”.
Mística,
"percepção do caráter escondido, não comunicado da realidade", que,
como explica Leonardo Boff, "não é o limite da razão, mas o ilimitado da
razão”. A mística do MST tem raízes no milenarismo camponês. Em todo o
mundo e desde sempre, o camponês é a pessoa que aspira e acredita na
possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a natureza. Em nome dessa
utopia, as massas rurais têm se levantado, através dos tempos, contra o mundo
real, sempre injusto, cruel e desequilibrado.
Assim, nas ocupações de terra, nas
ocupações urbanas, nas greves, nas manifestações os movimentos sociais
classistas organizam “místicas”, momentos celebrativos que têm a capacidade de
modificar a experiência expressando-a e apressando-a, potencializando suas
alternativas, criando sequencias e sentidos. Na mística tudo e todos podem ser
convocados para ajudar a dizer o exato momento da vida individual e coletiva e
suas possibilidades. Deus conosco.
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