leitura crítico-antropológica
do Levítico Bíblico
Corpora non agunt nisi fluida.
"As
substâncias não interagem a não ser
fluidas"
- ditado
dos antigos alquimistas
A
saúde e a doença, a fome e a comida, o prazer e a dor são, na biblia hebraica, feixes complexos que
se entrelaçam pôr dentro do tecido social de forma tão abrangente que é
difícil dissociar a saúde do corpo das
pessoas da saúde do corpo social. Nas narrativas bíblicas as fomes e
dores, as pestes e pragas dizem respeito
à ordem social, tendo alcance sempre comunitário e político.
“É crucial reconhecer a existência de um
período de freqüentes epidemias e altas taxas de mortalidade...este fator,
talvez até mais que a fome e a guerra (ou ao menos combinado com esses dois
outros males), criou uma situação de vida - ou melhor, de morte - de
monumentais proporções...” [1]
Este
comentário de Carol Meyers ajuda a perceber a importância que havia em tentar
entender e intervir nas situações de doença, de fome e dor que colocavam em
risco a sobrevivência de todo o povo. Era fundamental criar modelos
interpretativos e rituais que pudessem interferir nas situações de risco do
sistema vital. Estas situações eram sinais de desordem e ausência de Deus.
Tanto a técnica como a cultura elabora instrumentos e metáforas que controlem
e/ou expliquem/ordenem estas situações de risco.
A
comida, a sexualidade, a saúde e a terra são dinâmicas de reprodução da vida
social. Em torno destas dinâmicas se
criam procedimentos e rituais que garantem ou restauram a ordem/saúde de todo o
grupo.
“Tudo que pode acontecer a um homem na forma de desastre
deveria ser catalogado de acordo com os princípios ativos envolvidos no
universo de sua cultura particular. Algumas vezes, palavras engatilham
cataclismos, algumas vezes atos, algumas vezes condições físicas...as idéias
sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões, têm como função
principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada. É
somente exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e abaixo, fêmea e
macho, com e contra, que um semblante de ordem é criado.” [2]
No Levítico em
particular e nas religiões antigas em geral é impossível pensar no sistema
saúde-doença sem levar em conta o "princípio vital" que se faz
presente de modo concreto nos fluídos corporais e os possíveis mecanismos de
controle nele implicado.
Problema:
Para
mim, nada é finito. O que não passa através da pele,
entre
nossa pele, mistura-se nos fluidos dos nossos corpos.
Nosso.
Ou pelo menos o meu.
E
como o meu é contínuo com o seu, não há limite fixo para impor
uma
nítida separação. Exceto por você.
Quando
você diz: eu sou, ou existo. Ou: você é isso.
cercando nossa natureza, transformando nossos corpos em
cercando nossa natureza, transformando nossos corpos em
Nossa ideia de corpo é escrava da
ideia de conceito, como uma unidade e identidade, mas os corpos são passagens,
são buracos, orifícios entre isso e aquilo, como funções e relações de
continuar vivo. O corpo não é. O corpo flui. Narinas, boca, poros, vaginas,
anus, olhos, orelhas e todas as trocas possíveis entre os corpos de gente e o
corpo do mundo.
A troca de fluido através dos limites
que não são fixos, especialmente as fronteiras permeáveis de corpos, e as
possibilidades infinitas de intercâmbio, sugere uma vital in-corporação de
vários corpos/subjetividades, em oposição à incorporação opressiva/ apropriação
na a economia heterossexista pelo qual a mulher e o homem são limitadas dentro
das fronteiras finitas de definição.
As culturas desenvolvem modos de
controle e ordenação do sistema "fluidos corporais", seus conteúdos e
símbolos associados, através de técnicas corporais e rituais aplicadas a cada
fluído, as regras de comportamento e cuidados relativos à manipulação e os
lugares de descarte. Mais do que o estudo individualizado, é necessário
formular significados para o lugar deste sistema para os processos de produção
e reprodução da vida social e ritual.
As religiões antigas médio-orientais
oferecem um cenário privilegiado para perceber como os sistemas de crença se
apropriam, organizam e significam as dinâmicas dos fluidos corporais. Os
sistemas de crença produzem relações de poder e saber que fundam processos de
exclusão, naturalização da desigualdade e normatização da hierarquia. Outros
cenários mantem a proximidade com a religião mas ampliam as técnicas de
manipulação para o campo da ciência, da medicina e da cosmética como pode ser
conhecido, por exemplo, no Livro dos Mortos ou na teoria dos temperamentos do
Corpus Hippocraticum[4].
No caso da literatura bíblica o
Levitico pode ser considerado um cenário privilegiado para o estudo de proposta
ritual de controle e ordenação das trocas pessoais e sociais e seus processos
de contaminação/comunicação. Esta proposta ritual se oferece para alem dos
códigos de pureza da Biblia Hebraica, exercendo pressão também sobre as
comunidades judaico cristas do 1º século como pode ser estudado no Novo
Testamento, textos de Qumran e também em expressões iconográficas, como
amuletos de proteção.
Uma aproximação critica ao livro do
Levítico tem com objetivo identificar os materiais da retórica fundamentalista
e suas contradições desvinculando o texto bíblico dos abusos discursivos e
recolocando-o no seu lugar significativo e importante para o estudo da religião
judaico-cristã e suas interferências complexas na cultura contemporânea.
Os usos e malfeitos
da leitura do Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para
as pretensões de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica
do Cristianismo Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa
heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as
interdições. Os temores de contágio – que insistem, por exemplo, na vinculação aids/desordem/castigo –
encerram em si uma ideologia heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na
homogeneidade e repetição do mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas
clássicas de teologia sistemática e no
lobby das hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo,
das relações, das peles e do pelo.
Justificativa: das totalidades
e seus contágios
"Por que
está doente?", perguntaram à Herr Keuner as pessoas. "Porque o Estado
se acha em desordem", respondeu ele. "Por isso também meu modo de
vida não está em ordem, meus rins, meus músculos e meu coração ficam em
desordem... Quando chego à cidade, tudo anda mais rápido ou mais lento do que
eu. Falo apenas com quem está falando, e escuto quando todos escutam. Todo o
proveito que ganho de meu tempo vem da confusão; a clareza não traz proveito, a
não ser que apenas um a possua."
Geschichten vom Herrn Keuner. Bertolt Brecht[5]
Uma das formas importantes no
Levítico de conexão das partes e do todo é a dinâmica de “contaminação”: pode
ser uma ideia, uma doença ou uma culpa. Tudo se comunica com tudo. Mas é uma
conexão não necessariamente projetada ou sistêmica porque a concepção de
contágio guarda está ideia de “fora do controle”, pode até mesmo acontecer sem
que se saiba, de maneira insidiosa.
Esta percepção de que as trocas e
comunicações sociais e pessoais são suscetíveis de levar-e-trazer conteúdos não
desejáveis coloca todo o sistema e sub-sistemas num lugar de
vulnerabilidde que pode gerar confusão
colocando as parte-e-todo em situação de distúrbio das identidades e
integridades pretendidas. Este processo fora do controle – contaminação –
distúrbio é justamente o que pode ameaçar a “totalidade social” pretendida e
seus eixos de disciplina. Aqui reencontramos as heranças e interdições que
fundam e mantém o cristianismo patriarcal.
O Levítico é particularmente atento a
situações de passagem, aos espaços entre isto-e-aquilo porque são os ínfimos
lugares de conexão do todo-e-partes que definem a santidade do sistema
pretendido. Desde o pescoço do animal sacrificado e a asa destroncada da ave,
passando pela fusão do azeite sob a farinha até o contato do sacerdote com um
cadáver, passando pelas trocas vitais de todos os poros e orifícios corporais
nas dinâmicas de sexo-comida-saúde, chegando até os tipos de semente, os fios
da roupa, os processos de divida e a posse da terra: entre uma coisa e outra,
um corpo e outro um grupo social e outro existem espaços de poder que precisam
ser controlados, fronteiras estabelecidas e limites impostos para garantir o
pleno funcionamento da vida.
Para além de uma compreensão
funcional e mecânica dos espaços de comunicação, o Levítico identifica
normatividades e padrões e alerta para os elementos estranhos e indesejados que
podem diluir e comprometer a integridade desejada. Pode ser o mofo, pode ser um
animal com barbatanas, pode ser uma mancha num animal, pode ser sexo
incestuoso, o sangue menstrual, ou a situação de endividamento não superável:
tudo isso é confusão, abominação e impureza. Se algumas destas situações são
inesperadas e não controláveis outras são frutos da decisão e da contravenção,
da transgressão que geram poluição. Tudo que coloca o tecido social em
distúrbio na forma de caos ou indiferenciação precisa ser identificado e
excluído pelos sistemas de controle da cultura[6].
Tanto os pecados conhecidos como os
desconhecidos precisam sem examinados, identificados e reconhecidos como
impureza que coloca toda a vida pessoal e social em perigo. Se consequência do
imponderável nas relações com a natureza ou consequência da subversão dos atos
humanos o altar reivindica para si sob os olhos do sacerdote a legitimidade de
conferir e certificar, considerar aceitável ou inaceitável, puro ou impuro.
Este poder de comunicação/transmissão
são identificados nos fluídos corporais (sêmen, sangue, pus, cuspe,etc.) que
extrapolam suas potencialidades para além do corpo mesmo assumindo caráter
condutor das relações interpessoais, grupais, sociais e até mesmo ambientais.
Fora do corpo os fluídos merecem ser identificados, catalogados e controlados
por colocarem todos os níveis de relação em processo de comunicação/transmissão/contaminação.
O Levítico tem a proposta de
organizar toda a vida e suas redes a partir do altar, do sacrifício e do
sacerdócio que expressam e representam a vontade e o mandamento de Deus. Esta
noção de “rede” pode parecer moderna mas surpreendentemente corresponde ao modo
como o Levítico articula as relações de relações do complexo vital.
O projeto do Levítico se ocupa com a
ordenação e a integridade dos corpos: o corpo pessoal, o corpo social e o corpo
da terra. Também aqui o uso de “corpo” pode parecer fora do lugar, mas o
Levítico compreende as materialidades “encorpadas” que se relacionam no
processo de vida e tudo está em relação com tudo. Os textos se ocupam com a
coceira num corpo e com os mecanismos sociais de distribuição da terra, passando
pelos arranjos familiares, relações de trabalho e conflitos.
Esta característica de “totalidade”
do projeto do Levítico é sistematicamente descartada em usos mais rápidos e
inescrupulosos que destacam itens e os isolam sem as necessárias articulações
internas. A modernidade interpretativa aqui – de tratar da totalidade literária
e da totalidade sócio-simbólica – é uma opção teórica que procura manter a
organicidade e materialidade histórica do texto.
A categoria de totalidade significa
(...), de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada
elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de
outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva,
correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras
completamente diversas, mas sempre determinadas[7].
Neste sentido os abusos
fundamentalistas das leituras bíblicas encontram coerência e aderência na
descostura dos pós-modernismos que pairam pela teologia reduzindo as tradições
religiosas e seus textos “a um amontoado
incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar
qualquer processo de efetiva produção do conhecimento”[8].
O Levítico, sem critica e sem mediações, passa a fazer parte do circo de
horrores da teologia retributiva e patriarcal sem corpo, contra o corpo e
apesar do corpo.
O Levítico é um livro sobre os corpos, de corpos sobre corpos, de corpos
evitados, de corpos mediados e mediadores. Todo o livro está organizado na
forma de códigos como se todos os procedimentos da vida ritual e cotidiana
estivessem previstos e codificados. Para entender o Levítico é preciso então o
exercício de perceber as linguagens corporais sobrepostas: o corpo jurídico e o
corpo ritual como vestimentas sobre os corpos dos seres e suas relações. Neste
sentido, se faz necessário identificar as vestes dos códigos para desvestir o
discurso e re-encontrar o corpo: pessoal e social.
Para ler estas materialidades e
suas representações é necessário deslocar os eixos redacionais clássicos
privilegiando as dinâmicas culturais e suas representações literárias. Mais do
que perguntar pelos códigos como corpo jurídico, procurar pelos corpos
concretos de homens, mulheres e outros seres da natureza perguntando pela
ordenação das relações, que são ordenações do mundo na relação com o sagrado.
São os mistérios mais dolorosos e os mais gozosos que dão e tiram sentido pra
vida vestidos de rituais e gestos que, repetidos re-inventam o movimento que
sustenta a vida.
O corpo é a mediação pela qual a
sociedade produz e se reproduz. Mais que uma estrutura biológica, o corpo é uma
realidade sócio-cultural.[9]
O Levítico para ser entendido no
âmbito da corporeidade precisa ser lido sem os preconceitos da compreensão
ritualísticas que criam uma falsa antí-tese entre ritual/culto como contrários
da dinâmica profética e evangélica.
De
fato o Levítico não pode ser lido a partir dessa cultura religiosa da palavra e
dos atos interiores. O Levítico tem uma exterioridade e uma plasticidade que
não convive com a percepção do judaísmo-cristianismo como religião do Livro e
da Palavra. No Levítico a Palavra não tem função. O que está por escrito não
precisa ser dito, não há fórmulas a serem repetidas, são os gestos e os
rituais, os sacrifícios e sua geografia do corpo animal, os banhos e a
materialidade dos corpos, as ofertas e seus odores desprendíveis.
No
princípio era o corpo. E o corpo era sem forma e vazio... havia o caos entre as
dobras do corpo e seu contorno, entre o hálito da fera e o casco das cabras,
entre a flor de farinha e o azeite de cheiro, entre a coceira interminável e o
sangue na pedra, entre a água e o fogo, o cru e o cozido, o fora e o dentro, o
um e o outro, entre o muito e o fim.
É na passagem entre uma coisa e
outra que o corpo é fabricado, tecido, cozido, criado, disposto, enfiado,
trazido.
O corpo é passagem, lugar de
trocas necessárias e cotidianas, no exato lugar imprevisível entre o desejo e a
sobrevivência, precisão e vontade.
Relação de relações, o corpo é
espelho do mundo, no reflexo do olho, na ponta da língua, na palma da mão, no
palmo de terra, na planta do chão, na planta do pé, no pé de feijão, no fundo
do prato, no clarão do sexo, na pressa da dor... o corpo se faz ritual.
O corpo se faz ritual entre istos
e aquilos, entre eu e uma outra, entre o almoço e jantar – mesmo quando não há;
entre nascer e morrer, entre o molhado e seco, o gozo e o medo... tudo é corpo.
Na pele do mundo
no rosto do bicho
na densidade da água
na forma do fogo
na aspereza da fome
na estreiteza do corte.
Entre os entres de estar vivo,
entradas e saídas de rituais repetidíssimos acontecem de novo e de novo,
variações improváveis da marcação do ritmo do ar que entra pelo nariz
da
semente que arrebenta a terra
do sol em seu giro de sombra
da chuva e suas vontades de pouco e muito
do ponto de cozer a carne
do sangue vindo todo mês
da festa e suas predigistações
de nove meses pra poder nascer.
Os rituais
de fabricação do corpo são assim a exata proporção entre a necessidade e a
invenção, natureza e cultura de não se poder dizer onde uma antropofageia a
outra sem desaparecer.
Seres de ser assim: rituais sobre
o corpo. Religião.
O Levítico
é um livro sobre as trocas religiosas e culturais. Um exercício de olhar a
realidade e de identificação de seus pontos de passagem, as encruzilhadas das
trocas sociais e seus mecanismos de poder.
Eis aqui o corpo com tudo que pode acontecer com um… ou quase! O capitulo
13 do Levítico é exaustivamente meticuloso e conhece todas as possibilidades de
cores, riscos e sensações. Os capítulos 13 e 14 tratam da lepra. Uma leitura
mais cuidadosa revela que pôr lepra se entende toda e qualquer mancha ou marca
ou sinal que aparecer num corpo. Tudo que coçar, modificar, irritar, tingir a
pele de uma outra cor...tudo que desordenar a aparência, a ordem visível de um
corpo...é lepra.
Inchação, pústula, mancha, pêlo, pele, carne, cabeça e pés, úlcera, cicatriz, queimadura, barba, cabelo,
calva, bigode. Podem ser amarelas, brancas, vermelhas ou verde, fundas ou
superficiais, lustrosas ou baças. Podem aparecer na roupa, lã ou linho, na
costura, na linha, no couro, na pele, avesso ou direito. Vão merecer fogo ou
água; vão poder conviver ou não no meio da comunidade.
Todas estas
possibilidades e, quem pode verificar, avaliar e decidir é o sacerdote. É
diante de um sacerdote que o corpo marcado pôr qualquer dessas coisas deve se
apresentar e aguardar o veredicto:
“Será imundo durante os dias em que a praga estiver nele; é imundo,
habitará só: a sua habitação será fora do arraial.” (Lev. 13, 46)
Aqui os códigos estão lidando com materiais muito antigos, selecionados e
colecionados a partir de temas básicos da cosmovisão do judaísmo. A seqüência
corpo/casa/cosmo é freqüente em muitas culturas e a crença de que as doenças
são co-extensivas ao corpo da pessoa, da casa e do cosmos também :
“Habita-se
o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou
para si mesmo...Toda ‘moradia estável’ onde
o homem se ‘instalou’ eqüivale, no plano filosófico, a uma situação existencial
que se assumiu.” [10]
Os tabus e interditos sobre doença
podem ser protetores e criativos se vividos na ambivalência e conflituosidade
do corpo do doente, da casa/coisas, do cosmo.
Mas, idealizados e legitimados como mecanismos de exclusão podem matar.
Entre tantas e outras doenças que excluem e matam na América Latina, enfrentar
os conteúdos religiosos das metáforas sobre saúde e doença é uma exigência,
também no que diz respeito à AIDS:
“As
afirmações dos que pretendem falar em nome de Deus podem de modo geral, ser
facilmente explicadas como a tradicional retórica do discurso sobre as doenças
sexualmente transmissíveis - desde as fulminantes de Cotton Mather até as recentes declarações de dois destacados
religiosos brasileiros, o cerdeal-arcebispo de Brasília, D, José Falcão, para
quem a AIDS é ‘conseqüência da decadência moral’, e o cardeal-arcebispo do Rio
de Janeiro, d. Eugênio Sales, que vê na
AIDS ao mesmo tempo um castigo de Deus’ e uma ‘vingança da natureza’.”[11]
Nas metáforas da AIDS convivem o medo de uma sociedade plural, a idéia de
uma sociedade suja merecedora de condenação, o imaginário de deterioração que
vem do contato com quem não é normal, ou alguém que vem de fora, além da
relação com uma sexualidade doentia, exótica e poluente.
O contagio: entre uma coisa e outra
A função que o sistema do Levítico atribui ao sacerdote é o de examinar e
identificar, categorizar e anunciar os estados de pureza-impureza e seus
rituais asociados à economia do altar: para cada exame, declaração e ritual se
estabelece uma troca econômica que legitima o poder do sacerdote no cumprimento
de sua função social. Esta lógica é fundamental para entender o lugar da religião
nos processos de certificação social: é
a partir destes mecanismos que os agentes religiosos e suas agências se recriam
economicamente.
Parte
do trabalho do sacerdote descrito no capítulo 13 é o de não só identificar o
status corporal deste ou daquilo, mas também de avaliar os trânsitos entre uma
coisa e outra. Interessa a cor, o tamanho, a espessura da ferida na pele mas
também existe a exigência de avaliar o trânsito, a possibilidade e o alcance do
contágio.
O
capítulo 13 começa com:
2 O homem que
tiver na sua pele inchação, ou pústula, ou mancha lustrosa, e isto nela se
tornar como praga de LEPRA, será levado a Arão, o sacerdote, ou a um de seus
filhos, sacerdotes.
3 O sacerdote lhe examinará a praga na pele;
se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a
pele da sua carne, é praga de LEPRA; o sacerdote o examinará e o declarará
imundo.
4 Se a mancha lustrosa na pele for branca e
não parecer mais profunda do que a pele, e o pêlo não se tornou branco, então,
o sacerdote encerrará por sete dias o que tem a praga.
A
tarefa inicial é a de análise e qualificação das marcações corporais e seus
comprometimentos: inchação, pústula e mancha; branco, lustroso, profundo ou
não. Sob uma designação genérica todos os fenômenos são reunidos numa mesma
categoria צרעת “tsaraath” que vai se tornar mais
genérico e impreciso nas traduções para o latim lepra e este do grego λέπρα (lepra, doença de pele que provoca o
aparecimento de escamas).
Bem distante do termo moderno e seus usos, o termo “tsaraath”, no hebraico, significava uma
condição anormal da pele dos indivíduos, das roupas, ou das casas, que
necessitava de purificação. Segundo o Livro Sagrado, o “tsaraath” na pele dos judeus seriam “manchas brancas deprimidas em
que os pelos também se tornavam brancos”. Na tradução grega, a palavra “tsaraath” foi traduzida como lepra e “lepros” em grego, significa “algo que
descama”. Afeta seres animados e
inanimados; aflige seres humanos (1), roupas/tecidos (2) e casas/objetos (3). A
raiz linguística sugere “afligir, causar
aflição”; termo geral para certos tipos de doenças de pele e não uma
condição; qualquer doença que produz feridas e erupções na pele.
O outro termo utilizado pelo Levítico 13 (34 vezes em 59
versículos) é נֶגַע nega` que pode ser traduzido por peste, doença, marca, praga local e tem como
matriz o significado o que pode
tocar, fazer chegar, estender, atingir como por exemplo em Levítico
6, 18:
Todo varão entre os filhos de Arão comerá dela, como a
sua porção das ofertas queimadas do Senhor; estatuto perpétuo será para as
vossas gerações; tudo o que as tocar נָגַע será santo.
A segunda tarefa do
sacerdote torna o exame mais apurado (discernir, distinguir, considerar,
refletir) aproximando o “nome da coisa”
ao “medo da coisa” na raiz נֶגַע nega`: peste → espalhar, estender
5 Ao sétimo dia, o sacerdote o examinará; se, na sua opinião, a
praga tiver parado e não se estendeu na sua pele, então, o sacerdote o
encerrará por outros sete dias.
6 O sacerdote, ao sétimo dia,
o examinará outra vez; se a LEPRA se tornou baça e na pele se não estendeu,
então, o sacerdote o declarará limpo; é pústula; o homem lavará as suas vestes
e será limpo.
7 Mas, se a pústula se
estende muito na pele, depois de se ter mostrado ao sacerdote para a sua
purificação, outra vez se mostrará ao sacerdote.
A atenção do
sacerdote se volta para os processos de comunicação ou não de “tsaraath” e nega` e a “opinião” que o sacerdote deve emitir tem como
objetivo identificar se o contágio é um processo que se alastra ou se houve
interrupção do processo. A “opinião” do sacerdote vai implicar em processos de
exclusão ou não da pessoa “contaminada”.
Os termos hebraicos
importantes aqui são:
“se a praga tiver parado” עָמַד `amad permanecer,
perseverar, manter uma posição de
“se a pústula se
estende” פָּשָׂה pasah que se traduz como disseminação, espalhar
Contra
o perigo de transmissão, de contágio o texto vai propor medidas de controle ou
destruição uma vez que este “fato social” coloca em risco o conjunto, a
totalidade da vida comunitária sob guarda dos altar. Pessoas e coisas que foram
declaradas impuras nos capítulos devem ser purificadas ou destruídas: (a)
Lavado com água (cf. Lv 11:32; 15:06.). (b) queimadas a fogo (cf. Lv. 13:52,
55, 57). (c) Quebradas (cf. Lv. 11:33, 35). (d) Demolidas (cf. Lv. 14:40-41,
45).
A pessoa que for considerada impura
pelos sacerdotes sofre a humilhação de ser publicamente declarada ou até mesmo
de ter que se declarar imunda, o que tem como consequência o isolamento da
presença de Deus e da vida comunitária. O que está imundo deve ser colocado
fora do campo, longe da presença de Deus, longe do povo. "... Ela não deve
tocar em qualquer coisa consagrada, nem entrar no santuário" (Lv 12:4). Em
alguns casos a coisa imunda ou pessoa era visto como sendo um elemento de
contágio que precisa ser controlado ou eliminado (cf. Lv. 15:4-12, 23-24,
26-27). O Levítico confere este poder aos sacerdotes e toda a vida comunitária
depende desta tarefa de manter o puro longe do impuro... e se este lugar não
existe ele pode ser inventado pelo ritual.
Conclusão:
a clareza não traz proveito, a não ser que apenas um a
possua...
Brecht
Os equívocos da história da tradução e da interpretação
reforçaram ainda mais o potencial inquisidor e persecutório do texto do
Levítico que, a rigor, representa a formulação conjuntural de tratamento de
casos de doença de pele e de processos de contaminação na antiguidade. Está
claro que a proposta do Levítico de uma sociedade controlada a partir do altar
tem condicionantes políticos e econômicos e a explicitação das situações de
conflito presentes na comunidade. Claro está também que este projeto de
totalidade não se sustenta como modelo de ordenação da vida comunitária uma vez
que muitos elementos vitais da proposta foram deslocados, relativizados e
superados. Mas...
a proibição do homoerotismo permaneceu. A
Igreja herdou a visão antropológica da heterossexualidade universal, com suas
interdições.[12]
Os usos e malfeitos da leitura do
Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para as pretensões
de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica do Cristianismo
Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa
heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as
interdições. Os temores de contágio –
que insistem na vinculação aids/desordem/castigo – encerram em si uma ideologia
heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na homogeneidade e repetição do
mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas clássicas de teologia
sistemática[13] e no lobby das
hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo, das
relações, das peles e do pelo.
Quando o Papa Bento XVI afirma que o
casamento gay ameaça a humanidade[14]
e que se deve proteger a heterossexualidade em nome de Deus como se protege o
planeta o que está sendo dito é que os arranjos sexuais, familiares e
comportamentais escapolem do controle da igreja que vê minguando seus
mecanismos de poder. Tal clareza só traria proveito para o Papa mesmo... se ele
fosse um poder inconteste. Não é. Mal
ou bem me sinto acompanhada: faz tempo que não pronuncio Teu nome em vão.
[1] MEYERS, Carol, As raízes da restrição - as
mulheres no Antigo Testamento, in: Estudos Bíblicos, Vozes, Petrópolis, n.20,
1988. p. 18
[2] DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo, Perspectiva,
Sao Paulo, 1998, p. 15
[3] IRIGARAY, Luce. Elemental Passions,
New York: Routledge,1992.
[4]
MARTINS; SILVA; MUTARELLI; A teoria dos temperamentos: d o corpus hippocraticum
ao século XIX http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a14/martisilmuta01.pdf
[5] BRECHT, B., Stories of Mr. Keuner (Excerpts), in: http://www.bopsecrets.org/CF/brecht-keuner.htm (acesso em 12/11/2011)
[6] DOUGLAS,
Mary, Pureza e perigo, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976. p. 15
[7]
LUKÁCS, G. Existencialismo ou Marxismo? São Paulo, Livraria Editora Ciências
Humanas, 1979, apud. CRUZ, M. M.
Avaliação de Políticas e Programas de saúde: contribuições para o debate. In : MATTOS,
R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde, 2011.
p.181-199, http://www.ims.uerj.br/ccaps/wp-content/uploads/2011/10/Capitulo-7.pdf
(acesso 20/12/2011)
[8]
CARVALHO, Edimilson, A Totalidade Como Categoria Central na Dialética Marxista,
Revista Outubro, Instituto de Estudos Socialistas, nº 15, 2007, in: http://orientacaomarxista.blogspot.com/2008/07/totalidade-como-categoria-central-da.html
(acesso em 20/12/2011)
[9]
MADURO, Otto, El cuerpo en América Latina,
in: Revista Feminista de México, N. 14, 1979, p. 14
[10]
ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano - a
essência das religiões, Edição
Livros do Brasil, Lisboa, p. 184 e 185
[11] SONTAG, Susan, op.cit., . p.73
[12]
LIMA, op. Cit.,
[13]
MUSSKOPF, A.S., Via(da)gens Teológicas, itinerários de uma teologia queer no Brasil, tese de doutorado, Escola Superior
de Teologia, São Leopoldo, 2008, in: http://pt.scribd.com/doc/17202107/35/Marcella-Althaus-Reid-e-uma-%E2%80%9Cteologia-inde
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