A Troca da Roda
Estou
sentado à beira da estrada,
o
condutor muda a roda.
Não
me agrada o lugar de onde venho.
Não
me agrada o lugar para onde vou.
Por
que olho a troca da roda
com
impaciência?
(Bertold Brecht)
A roda está quebrada.
Este nosso encontro
acontece num momento difícil e dramático do Brasil, de modo muito especial para
quem trabalha com educação e diversidade. É de vital importância começar
dizendo: não reconheço o governo golpista e sua agenda de ajustes e violência
contra direitos conquistados.
Eu venho do processo
de formação e educação popular da Comissão Pastoral da Terra e, para nós está
claro:
Quando o modelo de
desenvolvimento a qualquer custo no país legitima arrebentar com sistemas de
vida, biomas e culturas entregando na mão de empreiteiras corruptas e
corruptoras todos e recursos e poderes para destruir, legitima também o
massacre e a eliminação de alternativas e modos de vida do povo da terra e das
águas.
Quando a estrutura
política, econômica e jurídica do país se move ao redor dos interesses de uma
minoria burguesa, elitista e racista contra os interesses das maiorias negras e
pobres autoriza também o terror nas favelas e periferias – no campo e na
cidade.
Quando as políticas
públicas de saúde e educação são as primeiras a sofrerem com os cortes por
conta da “crise” econômica, quando se tolera formas de precarização do trabalho
e as políticas sociais não se fazem acompanhar de mudanças estruturais a gente
vê a fina camada de democracia e de igualdade no Brasil se desmanchar sob
pressão das elites nacionais ainda hoje parceiras e protagonistas de todos os
governos.
Quando o
fundamentalismo econômico precisa do fundamentalismo religioso para manter
funcionando o sistema de exclusão são os direitos das mulheres que desaparecem
recolocando sobre elas as tarefas históricas do cuidado e da subordinação,
sobrecarregando as mulheres – do campo e da cidade – com o trabalho
super-explorado e a violência doméstica e social que rondam os pobres ainda
mais nos tempos de crise. São os modos de diversidade que sofrem com a
pretensão da mono-cultura na violência diária contra as comunidades LGBTT e a
ameaça aos frágeis direitos conquistados.
Pensar o cenário
nacional hoje não pode ser um exercício curto de identificar os golpistas de
sempre e as manipulações da mídia. Ficar de frente pro mar de costas pro Brasil
e não articular os golpes contra nossa frágil democracia com os golpes antigos
e novos contra a terra e os povos do campo e da cidade nos manterá de novo no
labirinto de poder de oligarquias racistas.
Que sejamos contra o
golpe institucional em curso, mas que sejamos também honestos: a democracia que
queremos não vai ser fruto de simpósios e congressos, textos e livros... mas
nosso encontro aqui pode ser expressão de um acúmulo de forças, crítica e
criatividade para o enfrentamento necessário e contribuição para o esforço
organizativo necessário de um projeto popular – democrático e diverso - para o Brasil.
Não defendo o governo
do PT, mas exijo respeito com a democracia. Não gosto do lugar de onde venho...
nem gosto do lugar pra onde vou. Este é o tempo que nos reúne aqui e essas são
as enormes tarefas!
Dito isso, tenho 2
questões que gostaria de compartilhar:
1-
Nunca fomos modernos!
2-
O fundamentalismo é
sintoma!
1-Nunca fomos modernos: no Brasil o que chamamos de modernidade
reformou os espaços de poder, entre eles o da religião hegemônica sem contudo
romper com os conteúdos patriarcais e patrimonais que persistem de modo
contraditório no modelo hegemônico do cristianismo ocidental. Neste sentido o
que assistimos hoje não é a volta da religião, nem o reencantamento do
religioso porque a religião cristã nunca deixou de fazer parte do cenário
político brasileiro.
Um dos pontos centrais
nestas relações de poder entre Igreja e Estado sempre foi o protagonismo quase
exclusivo que a igreja católica manteve e mantém no campo da assistência
social, entendida quase como uma extensão das obras de caridade.
Reconhecer este
trânsito de poderes e símbolos nas históricas relações Igreja-Estado significa
identificar a matriz religiosa cristã e católica na formação das políticas de
assistência e seus âmbitos e interfaces na saúde, na educação, no planejamento
e na economia. Mesmo já não mantendo hegemonia de influência nas coisas públicas,
os ícones e mecanismos do catolicismo operam ainda de modo eficiente.
No processo histórico
de construção da sociedade civil brasileira, os limites do Estado para
implementar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se
reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa
"devolução" das funções seculares do Estado para a Igreja,
organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no
campo da saúde que se apropriou do código cristão da "caridade".
Estas funções do
Estado moderno – seguridade social, saúde, educação etc. - no Brasil não
encontraram uma via de consolidação estrutural e ficaram reféns dos modos de
intervenção privada em especial do cristianismo católico. O persistente nesta
estratégia é a “modelagem” do feminino e do âmbito da família como mediação das
políticas de assistência que, se por um lado empodera de modo significativo -
mas parcial - as mulheres pobres (acesso a renda, gás, luz elétrica, leite,
etc.) por outro lado aciona um mecanismo cultural de subordinação: o feminino
“assistencioso e misericordioso”.
A estruturação de uma
proposta assistencial que tinha caráter público foi deslocada para uma abordagem
privada, no âmbito da modelagem católica e fundamentada em concepções religiosas
que persisitem ainda hoje.
Entretanto mesmo no
ocidente, e em especial no Brasil, é
preciso reconhecer que a modernidade instaurou mecanismos e processos
desiguais, parciais e incompletos e que muitos processos de “direitos” foram e
são fruto de um intenso tempo de conflitos, negociações, enfrentamentos e
resistências.
Uma das
características do mundo a ser superado pela modernidade era a de uma sociedade
hierárquica e patriarcal sendo, a religião hegemônica do mundo ocidental
norte-atlântico cristão, uma religião de conteúdos e estruturas masculinas bem
definidas em diversas modalidades de protagonismo com um discurso e uma
“catequese” para as mulheres bastante claro e formatado.
Sem dúvida alguma o
século XX assistiu uma profunda mudança na vivência e nas políticas para as
mulheres mas seria ingênuo considerar estas mudanças como avanços lineares da
modernidade secularizada. A diversidade de cenários religiosos de diferentes
mulheres em diferentes conjunturas exigem uma avaliação criteriosa.
Neste cenário a
pergunta pelo feminino no campo religioso se torna significativo o que é
confirmado pelos intensos debates e resistência por parte de setores
conservadores a respeito de políticas voltadas para mulheres na atualidade. O
“re-encantamento” religioso significaria também uma desaceleração na garantia
de direitos e participação das mulheres? Significaria também um recrudescimento
com as formas clássicas das hierarquias das diversas agências religiosas? Qual
o impacto deste cenário para outras matrizes religiosas?
As teorias feministas
agregam diversos elementos de crítica fundamentais para esta reflexão: a
hermenêutica da suspeita, a superação tradicional dos universais como
encobrimento do masculino, a superação da compreensão consolidada de “natureza
feminina” que teria a maternidade como destino irrecusável, a rejeição de uma
fundamentação biológica para explicar o ordenamento social e religioso dos
sexos, a crítica radical dos modelos hierárquicos, a superação de modelos
unficados e redutores de compreensão dos modos de crença vicenciados pelas
mulheres e apresentados de modo normativo e naturalizado, a superação do
entendimento de que as atividades simbólicas –crenças, ritos e discursos
religioso - escapam da diferenciação explicitando o caráter sexual dessas
atividades, enfrentamento dos esquemas de silenciamento e exclusão do
protagonismo feminino na historiografia da religião, suas fontes e métodos; denúncia dos usos da discussão do “Público e
Privado” como funcionalização dos esquemas sociais de poder patriarcal.
Os avanços e
conquistas dos movimentos feministas arranharam profundamente o verniz
superficial da frágil democracia de conciliação revelando a cara sexista,
racista e classista da sociedade brasileira. Revela também que não há
disposição para tolerância ou mudanças estruturais e que a todo custo deve ser
barrado e silenciado o assenso de políticas de igualdade e diversidade – até
mesmo com o uso da violência – de modo especial na educação.
2- O fundamentalismo é sintoma: o
fundamentalismo religioso é a outra ponta do mesmo processo do fundamentalismo
econômico que tem como objetivo a preservação do capitalismo como modo de
organização da vida e de manutenção das desigualdade essenciais para os
processos de exploração e endividamento. O capitalismo é religião:
Segundo a religião do capital, a
única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no
acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece
sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do
mundo "do qual se deveria esperar a salvação”.[1]
O fundamentalismo é um
modo de ordenação do mundo e das relações que situa num lugar acima da
sociedade e suas questões um eixo de estabilidade e verdade que disciplina tudo
e todos. Fora de nós, acima de nós existe uma esfera de certezas pretensamente
infalíveis que regula e legisla, que estabelece as normas e os padrões que só
pedem para ser obedecidas.
O fundamentalismo é assim
a paralisação da interpretação!
E isto é extremamente
perigoso e violento em especial para quem trabalha com educação, com a sala de
aula, com processos de pesquisa e investigação: a paralisação do processo
interpretativo.
A lógica é simples: se
existe um lugar de poder e normatividade acima e fora de nós não é preciso
correr o risco da avaliação, suspende-se a vertigem da decisão, anula-se as
pretensões de inovação. Pode ser uma bíblia, um padre, um pastor, um
marqueteiro religioso, uma cantora gospel e suas verdades. O que se pede de nós
é obediência e a manutenção dos labirintos imitativos. Anula-se o drama humano
de ter que escolher – tanto nas individualidades mas também nas coletividades.
Por isso a educação
virou um campo de batalha, porque é aí que se faz a disputa central: pelo
direito de decidir! Tirar gênero dos planos de educação, escola-sem-partido,
ensino religioso, boicote a temas relacionados com sexualidade tudo isso
responde diretamente ao objetivo principal: imobilizar o direito de decidir, o
empoderamento das autonomias éticas e suas responsabilidades decididoras.
Os fundamentalismos
são palavras contra os corpos, apesar dos corpos, através dos corpos. É preciso
silenciar os corpos em contextos individuais, práticas coletivas e arranjos
culturais/institucionais: os corpos não conhecem, não produzem
conhecimento. A negação das
interseccionalidades de gênero, classe, raça/etnia, geração, capacidades, opção
sexual entre outras é um dos objetivos principais do ataque conservador na
educação.
É o que os
fundamentalistas temem: que os eixos de opressão ainda não articulados em
nossas lutas emancipatórias encontrem espaço e incentivo de acontecer numa
educação que não se apequena diante dos desafios da complexidade e
maleabilidade sem perder a interação e interpretação de totalidades, mesmo que
provisórias.
(Interseccionalidade)
estimula o pensamento complexo, a
criatividade e evita a produção de novos essencialismos. Isto não significa
afirmar, contudo, que trate-se de “meta-teoria” capaz de abarcar todas as
questões fundamentais, mas que, exatamente por suas características de
maleabilidade e ambigüidade teórica fornece um campo aberto de novas
possibilidades de pesquisa e intervenção. [2]
Desafios para continuar conversando
Esta dimensão
“interpretadora & decididora” da educação não pode se limitar aos aspectos
formais, isto é, não é algo de que se fala sobre, mas que deve fazer parte do
modo mesmo de organizar os processos escolares/aprendentes e suas vivências. A
redução de conteúdos de inclusão, diversidade e autonomia ao nível discursivo
tem como resultante muito mais do que a ineficácia do processo: potencializa o
esvaziamento das formas participativas, condiciona processos a lideranças
atomizadas, banaliza questões éticas e desacredita possibilidades de ruptura.
Muito dos cenários conservadores podem ter sido gestados em práticas educativas
sem coerência entre ditos e não ditos.
Citando Paulo Freire:
Não há pensar certo fora de uma
prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo... É próprio do pensar
certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser
negado... O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir dele como um
dado dado, que se conforma a prática docente crítica... envolve o movimento
dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.[3]
O dado dado! Esta é uma expressão surpreendente e a repetição do nome
(dado) e da ação (dado) deixam ver bem do que se trata: tratar de temas e
conteúdos - por mais libertadores que sejam – não cria a prática docente
crítica. Em boa parte nossos esforços de inclusão e diversidade na educação se
esgotaram na autoreferência de processos apressados e superficiais que não
consideraram de modo consistente as contradições da formação social por exemplo
nas relações – incestuosas e obscenas – com a religião cristã.
Tomamos a modernidade
como um dado dado, não consideramos a
experiência religiosa no repertório cultural das comunidades com que
trabalhamos e... precisamos agora construir uma casa morando nela.
A nosso favor temos
robustos e criativos movimentos de estudantes por todo o país, que na
metodologia da ocupação exercitam a dimensão “interpretadora & decididora”
da educação. Do mesmo modo os movimentos do professorado mostra capacidade de
luta e de enfrentamento das políticas reacionárias e de ajuste contra as
condições de trabalho e das escolas. A capacidade de interlocução entre estes
movimentos seria vital para o fortalecimento da ação classista contra o
neo-liberalismo.
Do mesmo modo os
movimentos LGBTT e feministas já vêm apontando práticas testemunhais de
vivência de diversidade e da emancipação. O desafio agora é pensar certo,
pensar junto, radicalizando a democracia entre o fazer e o pensar sobre o
fazer.
Nancy Cardoso
Maio de 2016
texto disponível em wp.ufpel.edu.br/observatorio/files/2016/09/e-book-PALESTRANTES.pdf
[1]
LOWY, Michel, O Capitalismo como Religião, in: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33501-43270-1-PB.pdf
(acesso em 20/6/2016)
[2] RODRIGUES,
Cristiano, Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e
prática feminista no Brasil, Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais
Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X, in: http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_ARQUIVO_CristianoRodrigues.pdf (acesso em 20/6/2016)
[3] FREIRE,
Paulo, Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa, Paz e Terra, São Paulo, 2002, in: http://www.apeoesp.org.br/sistema/ck/files/4-%20Freire_P_%20Pedagogia%20da%20autonomia.pdf
(acesso em 20/6/2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário