agosto 05, 2017

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE em tempos de fundamentalismos



A Troca da Roda
Estou sentado à beira da estrada,
o condutor muda a roda.
Não me agrada o lugar de onde venho.
Não me agrada o lugar para onde vou.
Por que olho a troca da roda
com impaciência?
(Bertold Brecht)

A roda está quebrada.
Este nosso encontro acontece num momento difícil e dramático do Brasil, de modo muito especial para quem trabalha com educação e diversidade. É de vital importância começar dizendo: não reconheço o governo golpista e sua agenda de ajustes e violência contra direitos conquistados.
Eu venho do processo de formação e educação popular da Comissão Pastoral da Terra e, para nós está claro:
Quando o modelo de desenvolvimento a qualquer custo no país legitima arrebentar com sistemas de vida, biomas e culturas entregando na mão de empreiteiras corruptas e corruptoras todos e recursos e poderes para destruir, legitima também o massacre e a eliminação de alternativas e modos de vida do povo da terra e das águas.
Quando a estrutura política, econômica e jurídica do país se move ao redor dos interesses de uma minoria burguesa, elitista e racista contra os interesses das maiorias negras e pobres autoriza também o terror nas favelas e periferias – no campo e na cidade.
Quando as políticas públicas de saúde e educação são as primeiras a sofrerem com os cortes por conta da “crise” econômica, quando se tolera formas de precarização do trabalho e as políticas sociais não se fazem acompanhar de mudanças estruturais a gente vê a fina camada de democracia e de igualdade no Brasil se desmanchar sob pressão das elites nacionais ainda hoje parceiras e protagonistas de todos os governos.
Quando o fundamentalismo econômico precisa do fundamentalismo religioso para manter funcionando o sistema de exclusão são os direitos das mulheres que desaparecem recolocando sobre elas as tarefas históricas do cuidado e da subordinação, sobrecarregando as mulheres – do campo e da cidade – com o trabalho super-explorado e a violência doméstica e social que rondam os pobres ainda mais nos tempos de crise. São os modos de diversidade que sofrem com a pretensão da mono-cultura na violência diária contra as comunidades LGBTT e a ameaça aos frágeis direitos conquistados.
Pensar o cenário nacional hoje não pode ser um exercício curto de identificar os golpistas de sempre e as manipulações da mídia. Ficar de frente pro mar de costas pro Brasil e não articular os golpes contra nossa frágil democracia com os golpes antigos e novos contra a terra e os povos do campo e da cidade nos manterá de novo no labirinto de poder de oligarquias racistas.
Que sejamos contra o golpe institucional em curso, mas que sejamos também honestos: a democracia que queremos não vai ser fruto de simpósios e congressos, textos e livros... mas nosso encontro aqui pode ser expressão de um acúmulo de forças, crítica e criatividade para o enfrentamento necessário e contribuição para o esforço organizativo necessário de um projeto popular – democrático e diverso -  para o Brasil.
Não defendo o governo do PT, mas exijo respeito com a democracia. Não gosto do lugar de onde venho... nem gosto do lugar pra onde vou. Este é o tempo que nos reúne aqui e essas são as enormes tarefas!

Dito isso, tenho 2 questões que gostaria de compartilhar:
1-      Nunca fomos modernos!
2-      O fundamentalismo é sintoma!

1-Nunca fomos modernos: no Brasil o que chamamos de modernidade reformou os espaços de poder, entre eles o da religião hegemônica sem contudo romper com os conteúdos patriarcais e patrimonais que persistem de modo contraditório no modelo hegemônico do cristianismo ocidental. Neste sentido o que assistimos hoje não é a volta da religião, nem o reencantamento do religioso porque a religião cristã nunca deixou de fazer parte do cenário político brasileiro.
Um dos pontos centrais nestas relações de poder entre Igreja e Estado sempre foi o protagonismo quase exclusivo que a igreja católica manteve e mantém no campo da assistência social, entendida quase como uma extensão das obras de caridade.
Reconhecer este trânsito de poderes e símbolos nas históricas relações Igreja-Estado significa identificar a matriz religiosa cristã e católica na formação das políticas de assistência e seus âmbitos e interfaces na saúde, na educação, no planejamento e na economia. Mesmo já não mantendo hegemonia de influência nas coisas públicas, os ícones e mecanismos do catolicismo operam ainda de modo eficiente.
No processo histórico de construção da sociedade civil brasileira, os limites do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa "devolução" das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do código cristão da "caridade".
Estas funções do Estado moderno – seguridade social, saúde, educação etc. - no Brasil não encontraram uma via de consolidação estrutural e ficaram reféns dos modos de intervenção privada em especial do cristianismo católico. O persistente nesta estratégia é a “modelagem” do feminino e do âmbito da família como mediação das políticas de assistência que, se por um lado empodera de modo significativo - mas parcial - as mulheres pobres (acesso a renda, gás, luz elétrica, leite, etc.) por outro lado aciona um mecanismo cultural de subordinação: o feminino “assistencioso e misericordioso”.
A estruturação de uma proposta assistencial que tinha caráter público foi deslocada para uma abordagem privada, no âmbito da modelagem católica e fundamentada em concepções religiosas que persisitem ainda hoje.
Entretanto mesmo no ocidente, e em especial no Brasil,  é preciso reconhecer que a modernidade instaurou mecanismos e processos desiguais, parciais e incompletos e que muitos processos de “direitos” foram e são fruto de um intenso tempo de conflitos, negociações, enfrentamentos e resistências.
Uma das características do mundo a ser superado pela modernidade era a de uma sociedade hierárquica e patriarcal sendo, a religião hegemônica do mundo ocidental norte-atlântico cristão, uma religião de conteúdos e estruturas masculinas bem definidas em diversas modalidades de protagonismo com um discurso e uma “catequese” para as mulheres bastante claro e formatado.
Sem dúvida alguma o século XX assistiu uma profunda mudança na vivência e nas políticas para as mulheres mas seria ingênuo considerar estas mudanças como avanços lineares da modernidade secularizada. A diversidade de cenários religiosos de diferentes mulheres em diferentes conjunturas exigem uma avaliação criteriosa.
Neste cenário a pergunta pelo feminino no campo religioso se torna significativo o que é confirmado pelos intensos debates e resistência por parte de setores conservadores a respeito de políticas voltadas para mulheres na atualidade. O “re-encantamento” religioso significaria também uma desaceleração na garantia de direitos e participação das mulheres? Significaria também um recrudescimento com as formas clássicas das hierarquias das diversas agências religiosas? Qual o impacto deste cenário para outras matrizes religiosas?
As teorias feministas agregam diversos elementos de crítica fundamentais para esta reflexão: a hermenêutica da suspeita, a superação tradicional dos universais como encobrimento do masculino, a superação da compreensão consolidada de “natureza feminina” que teria a maternidade como destino irrecusável, a rejeição de uma fundamentação biológica para explicar o ordenamento social e religioso dos sexos, a crítica radical dos modelos hierárquicos, a superação de modelos unficados e redutores de compreensão dos modos de crença vicenciados pelas mulheres e apresentados de modo normativo e naturalizado, a superação do entendimento de que as atividades simbólicas –crenças, ritos e discursos religioso - escapam da diferenciação explicitando o caráter sexual dessas atividades, enfrentamento dos esquemas de silenciamento e exclusão do protagonismo feminino na historiografia da religião, suas fontes e métodos;  denúncia dos usos da discussão do “Público e Privado” como funcionalização dos esquemas sociais de poder patriarcal.
Os avanços e conquistas dos movimentos feministas arranharam profundamente o verniz superficial da frágil democracia de conciliação revelando a cara sexista, racista e classista da sociedade brasileira. Revela também que não há disposição para tolerância ou mudanças estruturais e que a todo custo deve ser barrado e silenciado o assenso de políticas de igualdade e diversidade – até mesmo com o uso da violência – de modo especial na educação.



2- O fundamentalismo é sintoma: o fundamentalismo religioso é a outra ponta do mesmo processo do fundamentalismo econômico que tem como objetivo a preservação do capitalismo como modo de organização da vida e de manutenção das desigualdade essenciais para os processos de exploração e endividamento. O capitalismo é religião:
Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo "do qual se deveria esperar a salvação”.[1]

O fundamentalismo é um modo de ordenação do mundo e das relações que situa num lugar acima da sociedade e suas questões um eixo de estabilidade e verdade que disciplina tudo e todos. Fora de nós, acima de nós existe uma esfera de certezas pretensamente infalíveis que regula e legisla, que estabelece as normas e os padrões que só pedem para ser obedecidas.
O fundamentalismo é assim a paralisação da interpretação!
E isto é extremamente perigoso e violento em especial para quem trabalha com educação, com a sala de aula, com processos de pesquisa e investigação: a paralisação do processo interpretativo.
A lógica é simples: se existe um lugar de poder e normatividade acima e fora de nós não é preciso correr o risco da avaliação, suspende-se a vertigem da decisão, anula-se as pretensões de inovação. Pode ser uma bíblia, um padre, um pastor, um marqueteiro religioso, uma cantora gospel e suas verdades. O que se pede de nós é obediência e a manutenção dos labirintos imitativos. Anula-se o drama humano de ter que escolher – tanto nas individualidades mas também nas coletividades.
Por isso a educação virou um campo de batalha, porque é aí que se faz a disputa central: pelo direito de decidir! Tirar gênero dos planos de educação, escola-sem-partido, ensino religioso, boicote a temas relacionados com sexualidade tudo isso responde diretamente ao objetivo principal: imobilizar o direito de decidir, o empoderamento das autonomias éticas e suas responsabilidades decididoras.
Os fundamentalismos são palavras contra os corpos, apesar dos corpos, através dos corpos. É preciso silenciar os corpos em contextos individuais, práticas coletivas e arranjos culturais/institucionais: os corpos não conhecem, não produzem conhecimento.  A negação das interseccionalidades de gênero, classe, raça/etnia, geração, capacidades, opção sexual entre outras é um dos objetivos principais do ataque conservador na educação.
É o que os fundamentalistas temem: que os eixos de opressão ainda não articulados em nossas lutas emancipatórias encontrem espaço e incentivo de acontecer numa educação que não se apequena diante dos desafios da complexidade e maleabilidade sem perder a interação e interpretação de totalidades, mesmo que provisórias.
(Interseccionalidade) estimula o pensamento complexo, a criatividade e evita a produção de novos essencialismos. Isto não significa afirmar, contudo, que trate-se de “meta-teoria” capaz de abarcar todas as questões fundamentais, mas que, exatamente por suas características de maleabilidade e ambigüidade teórica fornece um campo aberto de novas possibilidades de pesquisa e intervenção. [2]



Desafios para continuar conversando
Esta dimensão “interpretadora & decididora” da educação não pode se limitar aos aspectos formais, isto é, não é algo de que se fala sobre, mas que deve fazer parte do modo mesmo de organizar os processos escolares/aprendentes e suas vivências. A redução de conteúdos de inclusão, diversidade e autonomia ao nível discursivo tem como resultante muito mais do que a ineficácia do processo: potencializa o esvaziamento das formas participativas, condiciona processos a lideranças atomizadas, banaliza questões éticas e desacredita possibilidades de ruptura. Muito dos cenários conservadores podem ter sido gestados em práticas educativas sem coerência entre ditos e não ditos.
Citando Paulo Freire:
Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo... É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado... O pensar certo sabe, por exemplo, que não é a partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica... envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.[3]

O dado dado! Esta é uma expressão surpreendente e a repetição do nome (dado) e da ação (dado) deixam ver bem do que se trata: tratar de temas e conteúdos - por mais libertadores que sejam – não cria a prática docente crítica. Em boa parte nossos esforços de inclusão e diversidade na educação se esgotaram na autoreferência de processos apressados e superficiais que não consideraram de modo consistente as contradições da formação social por exemplo nas relações – incestuosas e obscenas – com a religião cristã.
Tomamos a modernidade como um dado dado, não consideramos a experiência religiosa no repertório cultural das comunidades com que trabalhamos e... precisamos agora construir uma casa morando nela.
A nosso favor temos robustos e criativos movimentos de estudantes por todo o país, que na metodologia da ocupação exercitam a dimensão “interpretadora & decididora” da educação. Do mesmo modo os movimentos do professorado mostra capacidade de luta e de enfrentamento das políticas reacionárias e de ajuste contra as condições de trabalho e das escolas. A capacidade de interlocução entre estes movimentos seria vital para o fortalecimento da ação classista contra o neo-liberalismo.
Do mesmo modo os movimentos LGBTT e feministas já vêm apontando práticas testemunhais de vivência de diversidade e da emancipação. O desafio agora é pensar certo, pensar junto, radicalizando a democracia entre o fazer e o pensar sobre o fazer.

Nancy Cardoso
Maio de 2016


texto disponível em wp.ufpel.edu.br/observatorio/files/2016/09/e-book-PALESTRANTES.pdf

[1] LOWY, Michel, O Capitalismo como Religião, in: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33501-43270-1-PB.pdf (acesso em 20/6/2016)
[2] RODRIGUES, Cristiano, Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil, Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X, in: http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_ARQUIVO_CristianoRodrigues.pdf (acesso em 20/6/2016)
[3] FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa,  Paz e Terra, São Paulo, 2002, in: http://www.apeoesp.org.br/sistema/ck/files/4-%20Freire_P_%20Pedagogia%20da%20autonomia.pdf (acesso em 20/6/2016)

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