setembro 13, 2017

Com a Virgem Maria na Porta dos Fundos


das “aparições” marianas nas políticas de assistência e as possíveis tarefas de uma teologia queer-feminista






para Rute Noemi Souza
pastora, teóloga e assistente social, advogada,
compositora, contadora de histórias para crianças,
mãe, cantora e amiga.[1]


Resumo
A “imagem” da Virgem Maria associada à família, à assistência e à saúde no registro das políticas voltadas para a as mulheres tem uma história que articula teologia e política. É a história do forte acento intervencionista da Igreja/das Igrejas nos assuntos do Estado pressionando todo o conjunto social. A partir de estudos de documentos históricos e debates contemporâneos esta reflexão pergunta por uma teologia queer-feminista neste âmbito.

Abstract
The "image" of the Virgin Mary associated with family, assistance and health in the register of policies focused on women has a history that articulates theology and politics. It is the history of the strong interventionist accent of the Church / of the Churches in State affairs by pressing whole social set. Based on studies of historical documents and contemporary debates this reflection asks for possible approaches for a queer-feminist theology in this area.

palavras-chave: Virgem Maria, políticas de assistência, Estado, mulheres

Um vídeo do grupo Porta dos Fundos criou polêmica – de novo! – no natal de 2013! O site Gospelmais conta assim o acontecido:
No diálogo (com o anjo Gabriel), Maria conta a seu noivo que está grávida e o filho não é dele. Revoltado, o carpinteiro diz que quando a história se espalhar, vai ser chamado de corno. O arcanjo interfere e diz que José precisa compreender o propósito e que a ideia é que todos saibam que o Filho de Deus nasceu de uma mulher virgem.
Gabriel continua sua explicação dizendo que “está uma dificuldade achar mulher virgem”. Nesse momento do diálogo, José interrompe e diz “Mas Maria não é mais virgem”, quando a própria Maria repreende o noivo: “Gabriel está falando, olha a falta de educação”, diz a progenitora.
Queixando-se de que “ninguém acreditará” que sua mulher engravidou virgem de um filho de Deus, José é tranquilizado: “Querido, isso aí, relaxa. O pessoal acredita em qualquer coisa”.[2]

É sobre esta “qualqueer” coisa sobre Maria que esta reflexão quer se ocupar, entrando e saindo pela Porta dos Fundos.
“Virgem Maria” é aquela do aparelho do Estado (colonial, imperial, republicano, militar e democrático) e a mesma das Romarias da igreja popular; é a mesma do Império: Nossa Senhora da Conceição e a mesma-outra da República: Nossa Senhora Aparecida... e também a mesma-e-outra de Canudos, Contestado, da irmandade dos pretos de Chico Rei e de centenas de festas populares; a mesma que sobrevoa a imagem de Anastácia e da Princesa Isabel na parte superior da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito; Rainha e Padroeira do Brasil na revolução getulista de 1930; nomeia a praia e o bairro: Copacabana. Híbrida, é Yemanjá e Oxun e é, no Santo Daime, a Cannabis sativa - planta sagrada. É a mesma também das marchas com Deus pela família e a que desperta intenso repúdio imagético de pentecostais.
... pode-se escrever uma História do Brasil descrevendo os diversos significados que a imagem de Nossa Senhora teve ao longo desta história[3].


Esta simultaneidade e ambiguidade do ícone da Virgem Maria e suas múltiplas aparições e representações apontam para conteúdos internos do imaginário cristão católico e sua capacidade histórica de impor e reproduzir valores e significados sobre o conjunto da sociedade brasileira, mas também deixa ver - na diversidade das recepções e vivência do ícone - conteúdos diversos e contraditórios não controlados plenamente pelas agências religiosas hegemônicas. Parte significativa do catolicismo popular vive de expressões mais ou menos sincréticas em que as variações “marianas” confirmam e modificam a teologia e a dogmática católica romana em sua oficialidade.
Muitos dos modelos explicativos para a centralidade do ícone da Virgem Maria na América Latina utilizam uma compreensão essencialista do “feminino” atribuindo aos conteúdos míticos da deusa-mãe ou da mãe originária - supostamente presente em todas as culturas - a via de comunicação privilegiada que explicaria a presença e persistência ambígua da Virgem Maria no campo religioso e na cultura. O cristianismo como religião patriarcal, hierárquica e de exclusão conseguiria operar com formas flexionadas de inserção cultural na utilização de um suposto “princípio feminino” que explicaria também a aparente feminização do religioso entre nós.
Entretanto os estudos feministas da religião recusam esta perspectiva fazendo a crítica do senso comum sobre uma suposta essência do feminino e um maior investimento natural das mulheres na religião. Este senso comum é reforçado pela ausência de consideração das relações sociais de poder e gênero nos estudos da religião em geral e nas ciências da religião em especial.
Nas palavras de Maria José Rosado Nunes:
Tal visão esconde um enorme equívoco que as atuais formas fundamentalistas das religiões, no Ocidente como no Oriente, vêm desvendar. Na verdade, as religiões são um campo de investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é 'sagrado' nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso[4].

O uso do “feminino” não pode ser reduzido a uma compreensão cultural essencialista nem tão pouco esgotado numa racionalidade histórica que faz desaparecer a materialidade sexuada do ícone. No meu entender os estudos feministas da religião articulam hermeneuticamente os instrumentais historiográficos e culturais garantindo que a mulher no ícone e as mulheres na realidade não desapareçam, mas participem ativamente do trânsito de significados de religião que são produzidos.
No atual cenário de fortalecimento da religião no espaço político e relativa «desmitologização da modernidade»[5] – fruto de suas contradições internas, e também dos deslocamentos epistêmicos das teorias feministas e pós-coloniais - a pergunta pelo “feminino no campo religioso” se torna significativo - o que é confirmado pelos intensos debates e resistência por parte de setores conservadores e fundamentalistas a respeito de políticas voltadas para mulheres na atualidade.
O “re-encantamento” religioso significaria também uma desaceleração na garantia de direitos e participação das mulheres[6]? Significaria também um recrudescimento com as formas clássicas das hierarquias das diversas agências religiosas? Qual o papel e o lugar da religião no debate e práticas de políticas de assistência? Qual o impacto deste cenário para outras matrizes religiosas?
Mesmo considerando o protagonismo da assim chamada “bancada evangélica” no debate e na intervenção contrária às políticas públicas voltadas para a autonomia das mulheres é preciso identificar e analisar a persistência do imaginário católico romano atualizado e condensado no ícone da Virgem Maria mesmo no discurso “evangélico”.
Voltemos para a Porta dos Fundos. Uma mostra disso está nos pronunciamentos do deputado pastor Marcos Feliciano – que já foi presidente da comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados – num programa de auditório[7].
o deputado move contra o grupo de humor na internet Porta dos Fundos, Feliciano se saiu em defesa dos cristãos, de um modo especial dos católicos, veneradores da Virgindade de Maria. Na representação que o deputado ajuizou contra o grupo de humor é pedida a indenização de 1 milhão de reais. ”Esse dinheiro será destinado para as entidades que se sentiram ofendidas como as Santas Casas de Misericórdia que trazem a imagem de Maria que foi vilipendiada nesse vídeo”, explicou.

Independente do debate sobre “liberdade de expressão” contido neste episódio, o alinhamento de um deputado representante da assim chamada “bancada evangélica” com os conteúdos em torno da “imagem de Maria vilipendiada” expressa bem este núcleo de persistência do imaginário “mariano” no conjunto da sociedade brasileira, para além das áreas de influência da igreja católica romana. A persistência também opera na vinculação deste imaginário com as políticas de assistência representadas pelas Santas Casas de Misericórdia.
A “imagem” da virgem associada à família, à assistência e à saúde tanto no registro das políticas de assistência como nas políticas voltadas para as famílias e mulheres tem uma história que articula teologia e política. É a história do forte acento intervencionista da Igreja/das Igrejas nos assuntos do Estado pressionando todo o conjunto social em especial na matrix cristã católica, mas também para as variações do mesmo tema evangélico o que explica um ecumenismo conservador compartilhado.

Aparecida na História
É de vital importância desnaturalizar estas compreensões que igualam de modo acrítico o feminino na maternidade e por extensão à caridade e assistência/ e buscar um olhar histórico para a questão em especial para entender porque ainda hoje estas conexões persistem. Para entender os usos do ícone da Virgem Maria nos discursos e imaginários religiosos que buscam se legitimar na intervenção e manutenção de vínculos Igreja-Estado a trajetória pode ajudar.
no que se refere à tradição do Ocidente e de Roma, apenas no século V encontramos o primeiro exemplo de uma invocação latina direta, em estilo de hino, a Maria [...]; somente no século VI o nome de Maria foi introduzido no cânon romano da missa [...] somente no final do século VI [...] se desenvolveu uma poética marial latina sempre mais rica [...] apenas no século VII foram assumidas as festas marianas orientais da anunciação, morte, nascimento e purificação [...] Apenas no fim do século X surgem certas lendas sobre a força prodigiosa da oração a Maria [8].

            O culto à Virgem se consolidou na Europa a partir do século XII, onde Maria representava o ideal de mulher com conteúdos disciplinares de pureza, castidade e concepção sem pecado: um ideal que deveria ser seguido pelas demais mulheres. De modo especial na consolidação da ordem imperial de Portugal e seus projetos coloniais, a devoção religiosa dedicada a Nossa Senhora é evidente e bem documentada sendo possível identificar os trânsitos de significados e as idealizações identitárias que interessavam ao projeto expansionista e “civilizador[9]”.
“(...), Verdade, mansidão & justiça vos hão de levar adiante, Vossas armas serão victoriosas, & vosso Reyno eterno. Que tudo vos está prometendo a soberana Raynha do Ceo, ó mãy de Deos com a assistência que faz a vossa mão direita, que se cõ essa mão aveis de mover a espada, que esta divina Senhora ajudarvo la a mover. Seja assi, Senhora, seja assi, & eu vos prometo em nome de todo este Reyno, que elle agradecido levante hum tropheo a Vossa Imaculada Conceição, que vencendo os séculos, seja eterno monumento da Restauração de Portugal”·

            O catolicismo que desembarca no Brasil transferiu para a colônia um formato de poder religioso que se expressa na devoção mariana que ao mesmo tempo fazia parte da alta política do Estado e elemento simbólico vital de coesão social que vai marcar o período colonial e monárquico:
o catolicismo português era profundamente mariano. A figura de Maria contribui historicamente para a construção daquela nação na sua coesão interna e inspirou as suas maiores empresas políticas, como as guerras contra os mouros e as grandes descobertas marítimas. O marianismo português fazia parte da alta política de Estado. [10]

            No período colonial as escolhas e resoluções do ícone mariano no Império Português eram trasladadas para as colônias e em especial no Brasil consolidou uma sobreposição entre o imaginário do Estado e da Igreja que pode ser identificado ainda em hoje em documentos, arquitetura de templos e prédios públicos históricos e nas formas de festejos locais e nacionais.
Em 1640 D. João IV ratifica o ato de D. Afonso Henriques e proclama a Virgem da Conceição padroeira de Portugal e todas as suas possessões, inclusive o Brasil. A devoção a Maria era então uma prerrogativa de dinastia no reino português. Pedro Álvares Cabral trouxe em sua nau a imagem de Nossa Senhora da Esperança. A primeira capelinha construída no Brasil em 1503 tinha o título de nossa Senhora da Glória. O primeiro governador, Tomé de Souza, cuja nau capitânea era consagrada à Nossa Senhora da Ajuda,trouxe a sua imagem.[11]

Este imaginário vai ser revisitado e modificado pelos movimentos republicanos e a reconfiguração das relações Estado-Igreja. Na Europa a República tratou de evitar o imaginário mariano sem, contudo abdicar do imaginário feminino: acionou parte da iconografia da antiguidade na veiculação da mulher como alegoria para a liberdade,o que expressava o projeto de laicização dos positivistas.  A figura clássica do rei-sol foi substituída pela figura de mulher conhecida como Marianne[12] que não é mãe, mas sugere o imaginário das “musas”:


Par exemple la Liberté, selon une convention bien établie par les manuels d’iconologie du XVIe au XVIIIe, est représentée par une femme au bonnet (de la liberté), et qui brandit un sceptre ou une lance, avec des chaînes brisées aux pieds ; le bonnet peut coiffer l’allégorie ou être brandi par celle-ci au bout de la lance ; c’est cette dernière forme qui est  adoptée pour le sceau de la République française le 22 septembre 1792, dès  le lendemain de l’abolition de la royauté comme si adopter un nouvel emblème représentatif de l’État était la première chose à faire ; mais regardons la statue de la Liberté éclairant le monde (conçue dans les années 1865-75 et érigée en 1886 à New York)...[13]

No Brasil a República – mesmo que com fortes inspirações francesas[14] – não podia dispor deste imaginário feminino porque este espaço de representação estava comprometido com a igreja católica ocupada pela figura da Virgem Maria. A República no Brasil se instaurou de modo parcial e insatisfatório o programa da modernidade em seus aspectos laico e civil:
No Brasil, em uma República cujo suporte mais importante era o Exército — quase todos os cargos da Administração anteriormente civil seriam ocupados por oficiais no Brasil — a Liberdade (como valor e como alegoria feminina) não podia ser propulsada ao primeiro plano, ocupado por valores mais militares de disciplina e ordem[15].

Neste sentido seria importante perguntar pelo alcance do projeto de “modernização” no Brasil perguntando também pelos avanços emancipatórios das mulheres considerando as aproximações/controvérsias Igreja –Estado  representada na proclamação da Virgem de Aparecida como padroeira do Brasil. O “feminino”da Virgem na relação com o Estado não se refere a nenhuma qualidade ou quantidade de participação de mulheres no processo republicano – embora houvesse – mas era um instrumento a mais de manutenção da tradição autoritária e clientelista das relações de classes e gênero no país.


Desse modo, enquanto de um lado o Estado republicano apresentava seus símbolos cívicos e, mesmo sendo positivista, não deixava de fazer concessões religiosas, por outro a Igreja, que já vinha há um longo período incentivando a devoção da imagem de Aparecida, aumentou o estímulo na década de 1890, quando a Igreja esforçou-se para transformar seu símbolo religioso em representação cívica.[16]
Esta resolução simbólica se fazia seguir também por um sistêmico processo de disciplinamento da sociedade sacudida por movimento contestatórios no campo e na cidade. Autoridades, filósofos, médicos e juristas - nos séculos XIX e parte do XX - confirmaram o ideal de mulher que subordina sua existência à maternidade, como uma extensão dos conteúdos religiosos dos ideários cristãos agora investidos de respaldo científico [17] e projetados na vida pública.

...e na América Latina também:
Estes processos tem significativos pontos em comum com as experiências latino-americanas de constituição dos Estados nacionais. No México, Argentina, Brasil e outros as elites políticas utilizaram do símbolo da Virgem como imaginário de coesão e identidade nacional na contramão dos conteúdos republicanos e as exigências da modernidade secularizada.
Aparentemente o ícone da Virgem Maria se oferecia de modo exemplar e eficiente como “patrona” nacional, deixando claro que o epíteto “matrona” comprometeria a continuidade desejada de manutenção do feminino sobre controle das hierarquias em negociação com as elites políticas do período. A Virgem foi um álibi, um conteúdo disponível e de forte penetração em todas as camadas sociais e de fácil interação com setores sociais de outras matrizes religiosas.

Así, en 1930 en Argentina, y en 1931 en Brasil, imágenes de la Virgen María - Luján y Aparecida, respectivamente- fueron declaradas patronas nacionales. Se colocaba, así, a la Nación enciernes bajo la protección de un sagrado católico que, al mismo tiempo, la legitimaba [18].



Nossa Senhora da Misericórdia: políticas de assistência ou caridade?
No campo das políticas de assistência os antigos arranjos entre Igreja e Estado vão ser reconfigurados na primeira metade do século XX em especial no âmbito das políticas populistas do Estado Novo (1930 – 1945). A Igreja católica havia perdido alguns dos itens de influência do Padroado com a Constituição de 1881 (a regularização do casamento civil, o fim do pagamento do clero pelo Estado, a secularização dos cemitérios passando para controle das prefeituras e o fim o ensino religioso nas escolas de responsabilidade da igreja, entre outros).
Um dos pontos centrais nestas relações de poder entre Igreja e Estado sempre foi o protagonismo quase exclusivo que a igreja católica manteve e mantém no campo da assistência social, entendida quase como uma extensão das obras de caridade. Na história do Brasil, a tradição luso-brasileira esteve sempre presente nas ações das Irmandades e Ordens Terceiras, ambas de origem medieval, leigas e ligadas, direta ou indiretamente, à Igreja Católica. As Ordens Terceiras estavam diretamente vinculadas a uma ordem religiosa, a quem cabia permitir-lhes o funcionamento e, no caso específico do Rio de Janeiro, vale lembrar os hospitais mantidos pelas Ordens Terceiras de São Francisco da Penitência e de Nossa Senhora do Monte do Carmo.
As Irmandades, por sua vez, eram uma reunião de leigos em torno do culto de um santo determinado, à beneficência e à ajuda mútua. A mais famosa é, sem dúvida, a Irmandade de Nossa Senhora, Mãe de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, que contava com hospital, asilo, orfanato etc. para a realização de suas obras de caridade, um conjunto que forma a Santa Casa da Misericórdia. Ao lado da Santa Casa, outras irmandades mantinham suas obras de caridade, incluindo a manutenção de hospitais[19].



            O nome Misericórdia era uma das antigas invocações da Virgem Maria, que foi utilizado entre 1240 e 1350 para nomear uma irmandade em Florença - Nossa Senhora da Misericórdia[20]. O uso do nome e dos atributos da Virgem para a ação da caridade vai ser uma marca importante no modelo de cristandade do projeto colonial.
O que é importante destacar é que no mesmo cenário de distanciamento da Igreja e Estado no período de consolidação da República e muito mais no período do Estado Novo se intensificou o processo de implementação das Santas Casas de Misericórdia no Brasil, mais concretamente entre 1922 a 1945. A política estatal vai utilizar a estrutura das “Misericórdias” para efetivar a política de assistência e saúde. Esta influência é tão importante e duradoura que vem inspirando estudos e pesquisas de grande significtiva:
... (as Misericórdias) se fortaleceram no segmento de assistência médica, durante o período em análise, tornando o Estado brasileiro dependente das suas actividades. Este trabalho discute ainda o imaginário social da caridade e filantropia e a forma como tais preceitos configuraram a assistência médico-social no país[21].

Uma análise superficial da legislação sobre as políticas de assistência no período getulista deixa ver um estreito relacionamento do Estado com as Misericórdias. O Governo iria tornar-se, como na actualidade, um usuário do sistema, pagando pelos serviços[22].
A Constituição de 1934 vai consolidar os resultados das negociações Igreja-Estado tal como a retomada do ensino religioso nas escolas públicas, a presença de capelães militares nas Forças Armadas e a subvenção estatal para as atividades assistenciais ligadas à Igreja[23]. Este modelo, mesmo sendo alterado posteriormente nos arranjos jurídico-constitucionais, deixou uma marca persistente tanto na caracterização caritativa da assistência social – expressas nas virtudes da Virgem Maria – como numa suposta legitimidade da Igreja Católica de intervir nos assuntos relacionados com os serviços públicos de assistência, de modo especial nas políticas de maternidades e apoio à infância.
Fica evidente na história do período Vargas o surgimento de diversos órgãos e políticas que “entregavam” a assistência e os cuidados médicos aos cuidados da igreja católica como no caso da Escola de Enfermeiras do Hospital São Paulo fruto de um convênio com a Arquidiocese de São Paulo em 1938.

A Virgem e a Primeira-Dama
Esta projeção, a partir do ideário católico romano no ícone da Virgem Maria, consolida um lugar para o feminino no âmbito privado e deriva daí sua participação na vida política, de modo especifico,  no campo da assistência como extensão da família e do feminino. De modo especial na organização da Legião da Brasileira de Assistência (LBA) em 1942, sob o comando da então “priemira-dama” Darcy Vargas[24], o Estado brasileiro tornou estes vínculos institucionais. Por um lado a Virgem Maria Padroeira do Brasil e do outro lado a “primeira–dama” responsável pela política de assistência: assim foi cimentado o difícil caminho para as mulheres na construção da autonomia e emancipação com garantia de direitos.



Esta presença – no meu modo de ver, incômoda - da “primeira-dama” quase como natural na administração pública expressa a co-naturalidade da assistência social com os assuntos familiares e, por extensão – também incômoda – com os papéis na política desempenhados pelas mulheres. Num artigo da Revista Filantropia – voltada para o terceiro setor, ONGs e associações comunitárias – encontramos o seguinte comentário:
O primeiro-damismo, enfim, transformou-se em um dos cargos de maior expressão e influência do poder, e as questões sociais passaram a predominar a pauta de atributos do cargo, tanto é verdade, que muitas das ações solidárias no mundo são lideradas pelas primeiras-damas, inclusive no Brasil. O Terceiro Setor muito ganhou com tamanha influência, pois sempre foi cotejado pelo primeiro-damismo, que descobriu através dele, a nobre arte de associar interesse político com ações sociais...
Nós, da Revista Filantropia, acreditamos que o caminho para o bem é apenas um detalhe, pois o que vale mesmo nesta empreitada, é ajudar alguém, e se o estigma de que o primeiro-damismo é que traduz a solidariedade, não podemos deixar de homenagear as milhares de voluntárias e freiras (que nem casadas são), porém também são primeiras-damas, cujo par é Deus.[25]

            Longe do âmbito das igrejas e suas políticas de disciplina do feminino mas ainda sob influência do imaginário que associa as mulheres à nobre arte de associar política e ação social, este editorial atualiza para o senso-comum do terceiro setor os imaginários que vinculam e naturalizam o “fazer o bem” com o feminino, passando pelo lugar - inventado – da primeira-dama chegando até às voluntárias e... freiras (que) também são primeiras-damas, cujo par é Deus. Voltamos à Maria. Ela não está nomeada... mas persiste com suas “aparições” estratégicas e virginais.
As freiras são “homenageadas” e identificadas como grande força no trabalho de “ajudar alguém”, da expressão da “solidariedade”, são voluntárias, não são casadas, isto é, falta a elas uma referência masculina que é compensadas fazendo par com... Deus! Neste lugar as mulheres religiosas consagradas são aproximadas do lugar privilegiado da também virgem, também solidária e... primeira-dama de Deus: Maria. Esta leitura secularizada das resoluções teológicas e institucionais dá conta dos fragmentos ainda persistentes, das “aparições” da Virgem na cultura e na sociedade.
Longe de ser um fenômeno que tende a desaparecer com os processos de emancipação das mulheres, o “primeiro-damismo” segue firme e forte, à esquerda e direita, como no trabalho de pesquisa que traz o seguinte quadro sobre cidades no Rio de Janeiro[26]:

                               
                                                                

Mantidos os factóides históricos e imagéticos – da Virgem e da primeira-dama – nós ainda sofremos e enfrentamos esta estratégia patriarcal que nos bons e maus tempos, no passado e ainda hoje posicionam o caráter sexista da Igreja e Estado.

Na Porta dos Fundos da Santa Casa de Misericódia

            Reconhecer este trânsito de poderes e símbolos nas históricas relações Igreja-Estado significa identificar a matriz religiosa cristã e católica na formação das políticas de assistência e seus âmbitos e interfaces na saúde, na educação, no planejamento e na economia. Mesmo já não mantendo hegemonia de influência nas coisas públicas, os ícones e mecanismos do catolicismo operam ainda de modo eficiente.
No processo histórico de construção da sociedade civil brasileira, os limites do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa "devolução" das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do código cristão da "caridade".[27]

Estas funções do Estado moderno – seguridade social, saúde, etc. - no Brasil não encontraram uma via de consolidação estrutural e ficaram reféns dos modos de intervenção privada em especial do cristianismo católico. O persistente nesta estratégia é a “modelagem” do feminino e do âmbito da família como mediação das políticas de assistência que, se por um lado empodera de modo significativo - mas parcial - as mulheres pobres (acesso a renda, gás, luz elétrica, leite, etc.) por outro lado aciona um mecanismo cultural de subordinação: o feminino “assistencioso e misericordioso”.
A estruturação de uma proposta assistencial que tinha caráter público foi deslocada para uma abordagem privada, no âmbito da modelagem católica e fundamentada em concepções religiosas que persisitem ainda hoje.[28]

Esta influência do cristianismo católico tem dois aspectos importantes para a compreensão mesmo das políticas de assistência e em particular para as profissionais deste setor, e para as mulheres em geral.
Essa herança, advinda da disseminação do pensamento cristão, transformou o cuidado aos doentes, dantes realizado por mulheres, como peculiar a uma condição feminina, a uma das formas de caridade adotadas pela igreja e que conjuga com a história da enfermagem. Os ensinamentos de amor e fraternidade transformam não somente a sociedade, mas também o desenvolvimento da enfermagem, marcando, ideologicamente, a prática de cuidar do outro e modelando comportamentos que atendessem a esses ensinamentos. [...] a enfermagem passou a ser uma atividade de penitência que se realizava como meio de purgação e purificação[29].

De igual modo esta indistinção entre a assistência social e o feminino se visibiliza nos arranjos políticos de alocação das políticas para as mulheres. Ainda persiste – como já foi visto neste texto - ações voltadas para mulheres e famílias sob a liderança de primeira-dama... como extensão do espaço da casa grande do homem em cargo político e sua senhora para a senzala da assistência social.
Outro indício da persistência destes vínculos está na localização de políticas para as mulheres que, muitas vezes em nome da transversalidade, fica encurralada nas secretarias de cunho assistencial sem conseguir o debate sistêmico com as secretarias de economia, desenvolvimento e segurança – entre outras – tão necessário tanto para as mulheres e suas políticas  como para as políticas de assistência em geral.
A alocação das Coordenadorias/Assessorias da Mulher dentro de Secretarias com programas delimitados (como assistência social), ou dentro de um pretenso guarda-chuva (como direitos humanos; cidadania etc.) que torna ainda mais enviesada sua articulação com as demais Secretarias e compromete, em geral, sua perspectiva de atuação política. Não é por acaso que se tem debatido a importância da existência de uma Secretaria específica[30].

Mais ou Menos Virgem & Totalmente Ambígua: questões para uma teologia queer-feminista

A partir das considerações e leituras até aqui feita fica evidente que estamos diante de “fatos” culturais e discursivos contraditórios, realidades políticas de disputa de poder e de uma materialidade icônica feminina num âmbito patriarcal. Nesse sentido algumas tarefas se colocam para uma teologia queer-feminista na América Latina que passam não só pela pergunta sócio-histórica, mas também pela crítica do aparato religioso em movimento:
·         o que no imaginário da Virgem Maria confere a apropriação simultânea, ambígua conflituosa dos conteúdos religiosos?
·         Como é que o mesmo ícone religioso transita entre o mundo da autonomia teológica, ritual e organizativa da religião popular e o mundo dos acordos entre Estado e Igreja no limiar dos ajustes republicanos no Brasil?
·         Como é que este trânsito não implica em desaparecimento dos termos como síntese redutora, mas constitui o fenômeno religioso como ambiguidade?
·         De que modo a oficialização da Virgem Maria como padroeira do Brasil representa um investimento masculino por excelência – no Estado e na Igreja – garantindo as condições objetivas e subjetivas da dominação patriarcal da produção do que é “sagrado”?
      

A “Virgem Maria” como realidade social de crença deve ser estudada considerando o caráter de constructo histórico sem, contudo deixar desaparecer, os ”matizes” e “complexos” de simultaneidade e ambiguidade. A simultaneiedade e ambiguidade do ícone “Virgem Maria” não são elementos acidentais nem modernos: mas expressam o caráter performático da experiância religiosa.
A ambiguidade do ícone da Virgem Maria multiplica o objeto de estudo nele mesmo obrigando à revisão de conceitos petrificados: a cultura nem é instância de totalidade social (acima do econômico e do social) nem é reflexo ideológico da estrutura social e econômica. No caso da abordagem da “Virgem Maria” como problema histórico-cultural estes dois modelos podem participar dos rascunhos descritivos e analíticos, mas não esgotam a recriação da experiência na simultaneidade de tradição e tradução[31].
Neste particular os estudos feministas são importantes para apontar a necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente da oposição binária "masculino versus feminino", “sagrado versus profano”, “virgem versus puta”, “popular versus civilizado” e “público verus privado”.  A historicização e "desconstrução" destes termos busca reverter e deslocar a construção hierárquica e seus usos ideológicos, em lugar de aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza das coisas mesmo (do Estado, da família, da pátria, da nação, etc).
 Para romper com este padrão e tornar Maria “indecente” são necessários “imaginários de ruptura” (Ricoeur), pois “a Mariologia é sexualmente estagnada. Somente uma ruptura no nível da imaginação teológica pode libertar a ela e as comunidades devotas a ela... Assim, “o processo de tornar a Virgem indecente [indecenting] deve ser então um processo coletivo de desnudamento [undressing] dela, e sobreposição nela das vidas de mulheres mostrando sua irrelevância libertadora, a menos que um novo imaginárioreligioso da Virgem possa ser reconstruído sobre a base da antiga[32].
           Para Da Matta a ambíguidade é uma metáfora adequada para falar da identidade brasileira que o segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo que está ‘entre’ as coisas[33]. Este parece ser o melhor lugar para situar a Virgem Maria: “entre” as coisas.



          A análise/interpretação do ícone em situação de ambiguidade e conflito se dará através da interação dos estudos feministas e suas possibilidades indecentes[34]. O caráter inter-disciplinar da Ciências da Religião é fundamental para propor uma abordagem sistêmica, complexa e processual do tema criando as possibilidades de intervenção nos debates atuais sobre as relações Igreja-Estado e sobre a religião na contemporaneidade... mas também deve deixar que a indecência de uma epistemologia da ambiguidade pergunte pelos acordos sexuais que ainda mantém esta área de conhecimento sob influência dos modos patriarcais de produção do conhecimento.
Aqui a teologia feminista precisa da proximidade e da cumplicidade com a teologia queer. O desafio de articular a ambiguidade como princípio epistemológico está presente de modo insistente/indecente na reflexão de André Musskopf[35] que desenvolve sua teologia queer considerando a ambiguidade como um lugar/móvel a partir do qual se produz conhecimento como fenômeno de resistência da língua, expressão narrativa de performance e plástica produzindo, um conhecimento onde as fronteiras são sempre móveis e instáveis.
Resistência na língua, narrativa, performance e plástica me parecem vivências e conteúdos adequados para reencontrar a Maria – virgem ou não... mas sempre aparecida! – nos seus lugares de trânsito entre isso e aquilo. O enfrentamento dos usos disciplinares do ícone da Virgem na manutenção das disciplinas de corpo, política e lei sobre as mulheres precisa ser enfrentado a partir destas ambigüidades. Longe de apostar numa contraposição com uma figura virtuosa atada à luta do povo, e mãe dos pobres e da revolução – estratégias que reformam os conteúdos conservadores – uma das saídas hermenêuticas está na ambiguidadade mesmo do ícone, sua dispersão e polifonia.
Nossa Senhora da Porta dos Fundos, rogai por nós os e por toda essa gente que... relaxa... o pessoal acredita em qualquer coisa.








[1] Nancy Cardoso Pereira, pastora metodista, agente de pastoral da CPT Sul da Bahia
[2]  CHAGAS, Thiago, Especial de Natal do Porta dos Fundos faz piada sobre Deus, Bíblia e o nascimento de Jesus e causa polêmica. Assista,  Gospelmais, in: http://noticias.gospelmais.com.br/natal-porta-fundos-piada-nascimento-jesus-assista-63686.html (acesso em 4/5/2015); para assistir o vídeo acesse >> https://www.youtube.com/watch?v=2VEI_tn090c

[3]HOONAERT, Eduardo, et alii. História da Igreja no Brasil. Primeira Época, Petrópolis: Vozes, 1992. p. 346
[4] ROSADO-NUNES, Maria José. Gênero e religião. Rev. Estud. Fem.,Florianópolis ,  v. 13, n. 2, Aug.  2005 .Available from .(acesso em 2/5/2015)
[5] MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no espelho de próspero. Novos estud. - CEBRAP,  São Paulo ,  n. 83, p. 159-182, Mar.  2009 .   in; . http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002009000100009.; (acesso em 5/5/2015)
[6] TOLDY, Teresa Martinho, Sonhos secularistas e os direitos das mulheres, Revista Crítica de Ciências Sociais,in: rccs.revues.org/1754 (acesso em 30/4/2015)
[8] KÜNG, Hans. Maria nas Igrejas. Concilium, Petrópolis, n. 188/8, 3-10, 1983. p. 4.
[9] SOUZA, Juliana Beatriz de Almeida, Virgem Imperial: Nossa Senhora e império marítimo português, Luso-BrazilianReview - Volume 45, Number 1, 2008, p. 32, in: http://www.jstor.org/stable/30219058 (acesso em 23/1/2015)
[10] BOFF, Clodovis. Maria na cultura brasileira. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 9
[11] CIPOLINI, Pedro Carlos, A Devoção Mariana no Brasil, Teocomunicação, vol 40, n.1, Porto Alegre, jan/abr 2010, in: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/teo/article/download/7774/5519 (acesso em 2/5/2015)
[12]RICHARD, Bernard. 2012. Lesemblèmes de laRépublique. Paris: CNRS Éditions, in: B Richard, A Corbin - 2012 - aaelda.e-monsite.com (acesso em 9/2/2104)
[13] RICHARD, Bernard, Les Emblèmes de la République, in: http://aaelda.e-monsite.com/medias/files/2les-emblemes-de-la-republique.doc.; Tradução: Por exemplo  a Liberdade, de acordo com  uma convenção estabelecida pelos manuais iconologia dos séculos XVI ao XVIII, é representada por uma mulher de gorro  (da liberdade), e brandindo um cetro ou lança, com correntes quebradas aos pés; o gorro  pode estar na cabeça a alegoria ou ser brandido por ele na ponta da lança; é este último formato que é adotado para o selo da República Francesa, em 22 de setembro de 1792, imediatamente após a abolição da monarquia como se adotar um novo emblema  de representação do estado fosse a primeira coisa a fazer; projetando-se também  na Estátua da Liberdade que ilumina o mundo (concebida nos anos 1865-1875 e construído em 1886 em Nova York); (acesso em 3/5/2015)
[14] José Francisco Alves, INVENTÁRIO DA ESCULTURA PÚBLICA DE PORTO ALEGRE, In: Memória em caleidoscópio – Artes Visuais no Rio Grande do Sul .Bulhões, Maria Amélia (Org.). Porto Alegre: Editora UFRGS, 2005, p. 135-160, https://www.academia.edu/546419/Inventario_da_escultura_publica_de_Porto_Alegre (acesso em 9/2/2015)
[15] JURT, Joseph, O Brasil – um estado-nação a ser construído. O papel dos símbolos nacionais do império à república, Sonderdruckeaus der Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, in: www.freidok.uni-freiburg.de/volltexte/8946/pdf/Jurt_o_Brasil.pdf‎ (acesso em 9/2/2015)
[16] PETERS, José Leandro, Nossa Senhora Aparecida no discurso da Igreja Católica no Brasil (1854 – 1904), dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora ,  2012, p. 126 (acesso em 30/4/2015)
[17] MERGÁR, Arion. A representação social do gênero feminino nos autos criminais na Província do Espírito Santo (1853-1870). 2006. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Vitória,  2006, in: portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_3402_Arion_Mergár.pdf‎ (acesso em 9/3/2014)
[18] MARTIN, Eloisa, La construcción de Aparecida y Luján como Patronas Nacionales: Unanálisis comparativo, Estudios sobre Religión - Newsletter de laAsociación de Cientistas Sociales de laReligiónenelMercosur,, No. 9Junio 2000 , in: http://www.naya.org.ar/religion/news09.htm (acesso em 11/5/2015)
[19] SANGLARD, Gisele, Filantropia e assistencialismo no Brasil, in: www.scielo.br/pdf/hcsm/v10n3/19316.pdf   (acesso em 10/3/2014)
[20] SILVA, Jeovana, Assistência e Poder – os provedores da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, in: www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/.../14408.PDFXXvmi=jVIziwJlD0ApC...(acesso em 10/3/2015)
[21] FERNANDES, Liliane Alves, As Santas Casas de Misericórdia na República Brasileira – 1922/1945, http://www.ensino.uevora.pt/erasmusmundus/thesis/thesissantascasas_lilianefernandes.pdf (acesso em 11/3/2015)
[22] Ibid.,
[23] JULIÃO, Paulo Silva, a Igreja Católica e as relações políticas com o Estado na era Vargas, in: www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/view/456/391 (acesso em 2/5/2015)
[24] MARTINS, Ana Paula Vosne. Gênero e assistência: considerações histórico-conceituais sobre práticas e políticas assistenciais. Hist. cienc. saude-Manguinhos,  Rio de Janeiro ,  v. 18, supl. 1, p. 15-34, Dec.  2011 .   in:  .  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702011000500002; (acesso em 9/5/2015)
[25] BIAISOLI, Marcos, A primeira-dama e o terceiro setor, in: Filantropia, março 2003, in: http://www.revistafilantropia.com/secoes/artigos/item/158-a_primeiradama_e_o_terceiro_setor (acesso em 4/5/2015)
[26]  SILVA, Lianzi Santos,  Mulheres em cena, as novas roupagens do primeiro-damismo na Assistência Social, dissertação de mestrado,  Departamento de Serviço Social, PUC, Rio de Janeiro, 2009,  in: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/15501/15501_7.PDF (acesso em 3/5/2015)
[27] MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos estud. - CEBRAP,  São Paulo ,  n. 74, p. 47-65, Mar.  2006 , in: .  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100004. (acesso em 4/5/2015)
[28] GONCALVES, Marcos. Caridade, abre as asas sobre nós: política de subvenções do governo Vargas entre 1931 e 1937. Varia hist.,  Belo Horizonte ,  v. 27, n. 45, p. 317-336, June  2011 .   in: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-87752011000100014. (acesso em 3/5/2015)
[29] PADILHA, NAZÁRIO, STIPP. O legado e o (re)negado: a enfermagem e as ordens/associações religiosas.Texto Contexto Enferm 1998; 7(1): 71-9,  apud. GUSSI, Maria Aparecida; DYTZ, Jane Lynn Garrison. Religião e espiritualidade no ensino e assistência de enfermagem. Rev. bras. enferm.,  Brasília ,  v. 61, n. 3, p. 337-384, June  2008 .   in: .),  http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672008000300017 (acesso em 2/5/ 2015)
[30] GODINHO, Tatau, Construir a Igualdade combatendo a discriminação,  Políticas Públicas e Igualdade de Gênero, p. 58, in  http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05630.pdf (acesso 3/5/2015)
[31]  PRIORE, Mary Del,A história cultural entre monstros e maravilha, in: SWAIN, Tânia Navarro (org.), História no Plural, Brasília:UNB, 1993, p. 70
[32] ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology – Theological Perversions in Sex,Gender and Politics. London/New York:Routledge, 2000, p.93
[33]DAMATTA, A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco,1997, p.106
[34] MUSSKOPF, André, MUSSKOPF, André Sidney, Via(da)gens Teológicas: Itinerários para uma teologia queer no Brasil, Editora Fonte, São Paulo,  2011
[35] Ibid.,

setembro 04, 2017

agosto 30, 2017

Corpora Fluida - contaminação e perigo no imaginário religioso

leitura crítico-antropológica do Levítico Bíblico


Corpora non agunt nisi fluida.
"As substâncias  não interagem a não ser fluidas"
- ditado dos antigos alquimistas



A saúde e a doença, a fome e a comida, o prazer e a dor  são, na biblia hebraica, feixes complexos que se entrelaçam pôr dentro do tecido social de forma tão abrangente que é difícil  dissociar a saúde do corpo das pessoas da saúde do corpo social. Nas narrativas bíblicas as fomes e dores,  as pestes e pragas dizem respeito à ordem social, tendo alcance sempre comunitário e político.

“É crucial reconhecer a existência de um período de freqüentes epidemias e altas taxas de mortalidade...este fator, talvez até mais que a fome e a guerra (ou ao menos combinado com esses dois outros males), criou uma situação de vida - ou melhor, de morte - de monumentais proporções...”  [1]

Este comentário de Carol Meyers ajuda a perceber a importância que havia em tentar entender e intervir nas situações de doença, de fome e dor que colocavam em risco a sobrevivência de todo o povo. Era fundamental criar modelos interpretativos e rituais que pudessem interferir nas situações de risco do sistema vital. Estas situações eram sinais de desordem e ausência de Deus. Tanto a técnica como a cultura elabora instrumentos e metáforas que controlem e/ou expliquem/ordenem estas situações de risco.
A comida, a sexualidade, a saúde e a terra são dinâmicas de reprodução da vida social. Em torno destas dinâmicas  se criam procedimentos e rituais que garantem ou restauram a ordem/saúde de todo o grupo.

“Tudo que pode acontecer a um homem na forma de desastre deveria ser catalogado de acordo com os princípios ativos envolvidos no universo de sua cultura particular. Algumas vezes, palavras engatilham cataclismos, algumas vezes atos, algumas vezes condições físicas...as idéias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões, têm como função principal impor sistematização numa experiência inerentemente desordenada. É somente exagerando a diferença entre dentro e fora, acima e abaixo, fêmea e macho, com e contra, que um semblante de ordem é criado.”  [2]

No Levítico em particular e nas religiões antigas em geral é impossível pensar no sistema saúde-doença sem levar em conta o "princípio vital" que se faz presente de modo concreto nos fluídos corporais e os possíveis mecanismos de controle nele implicado.




Problema:

Para mim, nada é finito. O que não passa através da pele,
entre nossa pele, mistura-se nos fluidos dos nossos corpos.
Nosso. Ou pelo menos o meu.
E como o meu é contínuo com o seu, não há limite fixo para impor
uma nítida separação. Exceto por você.
Quando você diz: eu sou, ou existo. Ou: você é isso.
cercando nossa natureza, transformando nossos corpos em
 propriedades privadas ou casas prefabricadas. [3].


Nossa ideia de corpo é escrava da ideia de conceito, como uma unidade e identidade, mas os corpos são passagens, são buracos, orifícios entre isso e aquilo, como funções e relações de continuar vivo. O corpo não é. O corpo flui. Narinas, boca, poros, vaginas, anus, olhos, orelhas e todas as trocas possíveis entre os corpos de gente e o corpo do mundo. 
A troca de fluido através dos limites que não são fixos, especialmente as fronteiras permeáveis de corpos, e as possibilidades infinitas de intercâmbio, sugere uma vital in-corporação de vários corpos/subjetividades, em oposição à incorporação opressiva/ apropriação na a economia heterossexista pelo qual a mulher e o homem são limitadas dentro das fronteiras finitas de definição.
As culturas desenvolvem modos de controle e ordenação do sistema "fluidos corporais", seus conteúdos e símbolos associados, através de técnicas corporais e rituais aplicadas a cada fluído, as regras de comportamento e cuidados relativos à manipulação e os lugares de descarte. Mais do que o estudo individualizado, é necessário formular significados para o lugar deste sistema para os processos de produção e reprodução da vida social e ritual.


As religiões antigas médio-orientais oferecem um cenário privilegiado para perceber como os sistemas de crença se apropriam, organizam e significam as dinâmicas dos fluidos corporais. Os sistemas de crença produzem relações de poder e saber que fundam processos de exclusão, naturalização da desigualdade e normatização da hierarquia. Outros cenários mantem a proximidade com a religião mas ampliam as técnicas de manipulação para o campo da ciência, da medicina e da cosmética como pode ser conhecido, por exemplo, no Livro dos Mortos ou na teoria dos temperamentos do Corpus Hippocraticum[4].
No caso da literatura bíblica o Levitico pode ser considerado um cenário privilegiado para o estudo de proposta ritual de controle e ordenação das trocas pessoais e sociais e seus processos de contaminação/comunicação. Esta proposta ritual se oferece para alem dos códigos de pureza da Biblia Hebraica, exercendo pressão também sobre as comunidades judaico cristas do 1º século como pode ser estudado no Novo Testamento, textos de Qumran e também em expressões iconográficas, como amuletos de proteção.
Uma aproximação critica ao livro do Levítico tem com objetivo identificar os materiais da retórica fundamentalista e suas contradições desvinculando o texto bíblico dos abusos discursivos e recolocando-o no seu lugar significativo e importante para o estudo da religião judaico-cristã e suas interferências complexas na cultura contemporânea. 
Os usos e malfeitos da leitura do Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para as pretensões de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica do Cristianismo Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as interdições. Os temores de contágio – que insistem, por exemplo,  na vinculação aids/desordem/castigo – encerram em si uma ideologia heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na homogeneidade e repetição do mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas clássicas de teologia sistemática  e no lobby das hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo, das relações, das peles e do pelo.



Justificativa: das totalidades e seus contágios

"Por que está doente?", perguntaram à Herr Keuner as pessoas. "Porque o Estado se acha em desordem", respondeu ele. "Por isso também meu modo de vida não está em ordem, meus rins, meus músculos e meu coração ficam em desordem... Quando chego à cidade, tudo anda mais rápido ou mais lento do que eu. Falo apenas com quem está falando, e escuto quando todos escutam. Todo o proveito que ganho de meu tempo vem da confusão; a clareza não traz proveito, a não ser que apenas um a possua." Geschichten vom Herrn Keuner. Bertolt Brecht[5]


Uma das formas importantes no Levítico de conexão das partes e do todo é a dinâmica de “contaminação”: pode ser uma ideia, uma doença ou uma culpa. Tudo se comunica com tudo. Mas é uma conexão não necessariamente projetada ou sistêmica porque a concepção de contágio guarda está ideia de “fora do controle”, pode até mesmo acontecer sem que se saiba, de maneira insidiosa.
Esta percepção de que as trocas e comunicações sociais e pessoais são suscetíveis de levar-e-trazer conteúdos não desejáveis coloca todo o sistema e sub-sistemas num lugar de vulnerabilidde  que pode gerar confusão colocando as parte-e-todo em situação de distúrbio das identidades e integridades pretendidas. Este processo fora do controle – contaminação – distúrbio é justamente o que pode ameaçar a “totalidade social” pretendida e seus eixos de disciplina. Aqui reencontramos as heranças e interdições que fundam e mantém o cristianismo patriarcal.
O Levítico é particularmente atento a situações de passagem, aos espaços entre isto-e-aquilo porque são os ínfimos lugares de conexão do todo-e-partes que definem a santidade do sistema pretendido. Desde o pescoço do animal sacrificado e a asa destroncada da ave, passando pela fusão do azeite sob a farinha até o contato do sacerdote com um cadáver, passando pelas trocas vitais de todos os poros e orifícios corporais nas dinâmicas de sexo-comida-saúde, chegando até os tipos de semente, os fios da roupa, os processos de divida e a posse da terra: entre uma coisa e outra, um corpo e outro um grupo social e outro existem espaços de poder que precisam ser controlados, fronteiras estabelecidas e limites impostos para garantir o pleno funcionamento da vida.
Para além de uma compreensão funcional e mecânica dos espaços de comunicação, o Levítico identifica normatividades e padrões e alerta para os elementos estranhos e indesejados que podem diluir e comprometer a integridade desejada. Pode ser o mofo, pode ser um animal com barbatanas, pode ser uma mancha num animal, pode ser sexo incestuoso, o sangue menstrual, ou a situação de endividamento não superável: tudo isso é confusão, abominação e impureza. Se algumas destas situações são inesperadas e não controláveis outras são frutos da decisão e da contravenção, da transgressão que geram poluição. Tudo que coloca o tecido social em distúrbio na forma de caos ou indiferenciação precisa ser identificado e excluído pelos sistemas de controle da cultura[6].
Tanto os pecados conhecidos como os desconhecidos precisam sem examinados, identificados e reconhecidos como impureza que coloca toda a vida pessoal e social em perigo. Se consequência do imponderável nas relações com a natureza ou consequência da subversão dos atos humanos o altar reivindica para si sob os olhos do sacerdote a legitimidade de conferir e certificar, considerar aceitável ou inaceitável, puro ou impuro.
Este poder de comunicação/transmissão são identificados nos fluídos corporais (sêmen, sangue, pus, cuspe,etc.) que extrapolam suas potencialidades para além do corpo mesmo assumindo caráter condutor das relações interpessoais, grupais, sociais e até mesmo ambientais. Fora do corpo os fluídos merecem ser identificados, catalogados e controlados por colocarem todos os níveis de relação em processo de comunicação/transmissão/contaminação.
O Levítico tem a proposta de organizar toda a vida e suas redes a partir do altar, do sacrifício e do sacerdócio que expressam e representam a vontade e o mandamento de Deus. Esta noção de “rede” pode parecer moderna mas surpreendentemente corresponde ao modo como o Levítico articula as relações de relações do complexo vital.



O projeto do Levítico se ocupa com a ordenação e a integridade dos corpos: o corpo pessoal, o corpo social e o corpo da terra. Também aqui o uso de “corpo” pode parecer fora do lugar, mas o Levítico compreende as materialidades “encorpadas” que se relacionam no processo de vida e tudo está em relação com tudo. Os textos se ocupam com a coceira num corpo e com os mecanismos sociais de distribuição da terra, passando pelos arranjos familiares, relações de trabalho e conflitos.
Esta característica de “totalidade” do projeto do Levítico é sistematicamente descartada em usos mais rápidos e inescrupulosos que destacam itens e os isolam sem as necessárias articulações internas. A modernidade interpretativa aqui – de tratar da totalidade literária e da totalidade sócio-simbólica – é uma opção teórica que procura manter a organicidade e materialidade histórica do texto.

A categoria de totalidade significa (...), de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas[7].

Neste sentido os abusos fundamentalistas das leituras bíblicas encontram coerência e aderência na descostura dos pós-modernismos que pairam pela teologia reduzindo as tradições religiosas e seus textos “a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva produção do conhecimento[8]. O Levítico, sem critica e sem mediações, passa a fazer parte do circo de horrores da teologia retributiva e patriarcal sem corpo, contra o corpo e apesar do corpo.


O Levítico é um livro sobre os corpos, de corpos sobre corpos, de corpos evitados, de corpos mediados e mediadores. Todo o livro está organizado na forma de códigos como se todos os procedimentos da vida ritual e cotidiana estivessem previstos e codificados. Para entender o Levítico é preciso então o exercício de perceber as linguagens corporais sobrepostas: o corpo jurídico e o corpo ritual como vestimentas sobre os corpos dos seres e suas relações. Neste sentido, se faz necessário identificar as vestes dos códigos para desvestir o discurso e re-encontrar o corpo: pessoal e social.
Para ler estas materialidades e suas representações é necessário deslocar os eixos redacionais clássicos privilegiando as dinâmicas culturais e suas representações literárias. Mais do que perguntar pelos códigos como corpo jurídico, procurar pelos corpos concretos de homens, mulheres e outros seres da natureza perguntando pela ordenação das relações, que são ordenações do mundo na relação com o sagrado. São os mistérios mais dolorosos e os mais gozosos que dão e tiram sentido pra vida vestidos de rituais e gestos que, repetidos re-inventam o movimento que sustenta a vida.
            O corpo é a mediação pela qual a sociedade produz e se reproduz. Mais que uma estrutura biológica, o corpo é uma realidade sócio-cultural.[9]
O Levítico para ser entendido no âmbito da corporeidade precisa ser lido sem os preconceitos da compreensão ritualísticas que criam uma falsa antí-tese entre ritual/culto como contrários da dinâmica profética e evangélica.
            De fato o Levítico não pode ser lido a partir dessa cultura religiosa da palavra e dos atos interiores. O Levítico tem uma exterioridade e uma plasticidade que não convive com a percepção do judaísmo-cristianismo como religião do Livro e da Palavra. No Levítico a Palavra não tem função. O que está por escrito não precisa ser dito, não há fórmulas a serem repetidas, são os gestos e os rituais, os sacrifícios e sua geografia do corpo animal, os banhos e a materialidade dos corpos, as ofertas e seus odores desprendíveis.
No princípio era o corpo. E o corpo era sem forma e vazio... havia o caos entre as dobras do corpo e seu contorno, entre o hálito da fera e o casco das cabras, entre a flor de farinha e o azeite de cheiro, entre a coceira interminável e o sangue na pedra, entre a água e o fogo, o cru e o cozido, o fora e o dentro, o um e o outro, entre o muito e o fim.
É na passagem entre uma coisa e outra que o corpo é fabricado, tecido, cozido, criado, disposto, enfiado, trazido.
O corpo é passagem, lugar de trocas necessárias e cotidianas, no exato lugar imprevisível entre o desejo e a sobrevivência, precisão e vontade.
Relação de relações, o corpo é espelho do mundo, no reflexo do olho, na ponta da língua, na palma da mão, no palmo de terra, na planta do chão, na planta do pé, no pé de feijão, no fundo do prato, no clarão do sexo, na pressa da dor... o corpo se faz ritual.
O corpo se faz ritual entre istos e aquilos, entre eu e uma outra, entre o almoço e jantar – mesmo quando não há; entre nascer e morrer, entre o molhado e seco, o gozo e o medo... tudo é corpo.
Na pele do mundo
no rosto do bicho
na densidade da água
na forma do fogo
na aspereza da fome
na estreiteza do corte.

Entre os entres de estar vivo, entradas e saídas de rituais repetidíssimos acontecem de novo e de novo, variações improváveis da marcação do ritmo do ar que entra pelo nariz

da semente que arrebenta a terra

do sol em seu giro de sombra
da chuva e suas vontades de pouco e muito
do ponto de cozer a carne
do sangue vindo todo mês
da festa e suas predigistações
de nove meses pra poder nascer.

Os rituais de fabricação do corpo são assim a exata proporção entre a necessidade e a invenção, natureza e cultura de não se poder dizer onde uma antropofageia a outra sem desaparecer.
Seres de ser assim: rituais sobre o corpo. Religião.
O Levítico é um livro sobre as trocas religiosas e culturais. Um exercício de olhar a realidade e de identificação de seus pontos de passagem, as encruzilhadas das trocas sociais e seus mecanismos de poder.



Eis aqui o corpo com tudo que pode acontecer com um… ou quase! O capitulo 13 do Levítico é exaustivamente meticuloso e conhece todas as possibilidades de cores, riscos e sensações. Os capítulos 13 e 14 tratam da lepra. Uma leitura mais cuidadosa revela que pôr lepra se entende toda e qualquer mancha ou marca ou sinal que aparecer num corpo. Tudo que coçar, modificar, irritar, tingir a pele de uma outra cor...tudo que desordenar a aparência, a ordem visível de um corpo...é lepra.
Inchação, pústula, mancha, pêlo, pele, carne, cabeça e pés,  úlcera, cicatriz, queimadura, barba, cabelo, calva, bigode. Podem ser amarelas, brancas, vermelhas ou verde, fundas ou superficiais, lustrosas ou baças. Podem aparecer na roupa, lã ou linho, na costura, na linha, no couro, na pele, avesso ou direito. Vão merecer fogo ou água; vão poder conviver ou não no meio da comunidade.
Todas estas possibilidades e, quem pode verificar, avaliar e decidir é o sacerdote. É diante de um sacerdote que o corpo marcado pôr qualquer dessas coisas deve se apresentar e aguardar o veredicto:
“Será imundo durante os dias em que a praga estiver nele; é imundo, habitará só: a sua habitação será fora do arraial.” (Lev. 13, 46)


Aqui os códigos estão lidando com materiais muito antigos, selecionados e colecionados a partir de temas básicos da cosmovisão do judaísmo. A seqüência corpo/casa/cosmo é freqüente em muitas culturas e a crença de que as doenças são co-extensivas ao corpo da pessoa, da casa e do cosmos também :

            “Habita-se o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo...Toda  ‘moradia estável’ onde o homem se ‘instalou’ eqüivale, no plano filosófico, a uma situação existencial que se assumiu.” [10]

 Os tabus e interditos sobre doença podem ser protetores e criativos se vividos na ambivalência e conflituosidade do corpo do doente, da casa/coisas, do cosmo.  Mas, idealizados e legitimados como mecanismos de exclusão podem matar. Entre tantas e outras doenças que excluem e matam na América Latina, enfrentar os conteúdos religiosos das metáforas sobre saúde e doença é uma exigência, também no que diz respeito à AIDS:

            “As afirmações dos que pretendem falar em nome de Deus podem de modo geral, ser facilmente explicadas como a tradicional retórica do discurso sobre as doenças sexualmente transmissíveis - desde as fulminantes  de Cotton Mather até  as recentes declarações de dois destacados religiosos brasileiros, o cerdeal-arcebispo de Brasília, D, José Falcão, para quem a AIDS é ‘conseqüência da decadência moral’, e o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro,  d. Eugênio Sales, que vê na AIDS ao mesmo tempo um castigo de Deus’ e uma ‘vingança da natureza’.”[11]  

Nas metáforas da AIDS convivem o medo de uma sociedade plural, a idéia de uma sociedade suja merecedora de condenação, o imaginário de deterioração que vem do contato com quem não é normal, ou alguém que vem de fora, além da relação com uma sexualidade doentia, exótica e poluente.

O contagio: entre uma coisa e outra
            A função que o sistema do Levítico atribui ao sacerdote é o de examinar e identificar, categorizar e anunciar os estados de pureza-impureza e seus rituais asociados à economia do altar: para cada exame, declaração e ritual se estabelece uma troca econômica que legitima o poder do sacerdote no cumprimento de sua função social. Esta lógica é fundamental para entender o lugar da religião nos processos de  certificação social: é a partir destes mecanismos que os agentes religiosos e suas agências se recriam economicamente.


            Parte do trabalho do sacerdote descrito no capítulo 13 é o de não só identificar o status corporal deste ou daquilo, mas também de avaliar os trânsitos entre uma coisa e outra. Interessa a cor, o tamanho, a espessura da ferida na pele mas também existe a exigência de avaliar o trânsito, a possibilidade e o alcance do contágio.
            O capítulo 13 começa com:
2 O homem que tiver na sua pele inchação, ou pústula, ou mancha lustrosa, e isto nela se tornar como praga de LEPRA, será levado a Arão, o sacerdote, ou a um de seus filhos, sacerdotes.
 3 O sacerdote lhe examinará a praga na pele; se o pêlo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de LEPRA; o sacerdote o examinará e o declarará imundo.
 4 Se a mancha lustrosa na pele for branca e não parecer mais profunda do que a pele, e o pêlo não se tornou branco, então, o sacerdote encerrará por sete dias o que tem a praga.


            A tarefa inicial é a de análise e qualificação das marcações corporais e seus comprometimentos: inchação, pústula e mancha; branco, lustroso, profundo ou não. Sob uma designação genérica todos os fenômenos são reunidos numa mesma categoria צרעת “tsaraath” que vai se tornar mais genérico e impreciso nas traduções para o latim lepra e este do grego λέπρα (lepra, doença de pele que provoca o aparecimento de escamas). 
            Bem distante do termo moderno e seus usos, o termo “tsaraath”, no hebraico, significava uma condição anormal da pele dos indivíduos, das roupas, ou das casas, que necessitava de purificação. Segundo o Livro Sagrado, o “tsaraath” na pele dos judeus seriam “manchas brancas deprimidas em que os pelos também se tornavam brancos”. Na tradução grega, a palavra “tsaraath” foi traduzida como lepra e “lepros” em grego, significa “algo que descama”.  Afeta seres animados e inanimados; aflige seres humanos (1), roupas/tecidos (2) e casas/objetos (3). A raiz linguística sugere “afligir, causar aflição”; termo geral para certos tipos de doenças de pele e não uma condição; qualquer doença que produz feridas e erupções na pele.

            O outro termo utilizado pelo Levítico 13 (34 vezes em 59 versículos) é נֶגַע nega` que pode ser traduzido por  peste, doença, marca, praga local e tem como matriz o significado  o que pode  tocar, fazer chegar, estender, atingir como por exemplo em Levítico 6, 18:

Todo varão entre os filhos de Arão comerá dela, como a sua porção das ofertas queimadas do Senhor; estatuto perpétuo será para as vossas gerações; tudo o que as tocar נָגַע será santo.

A segunda tarefa do sacerdote torna o exame mais apurado (discernir, distinguir, considerar, refletir) aproximando o “nome da coisa” ao “medo da coisa” na raiz נֶגַע nega`: peste → espalhar, estender
5 Ao sétimo dia, o sacerdote o examinará; se, na sua opinião, a praga tiver parado e não se estendeu na sua pele, então, o sacerdote o encerrará por outros sete dias.
 6 O sacerdote, ao sétimo dia, o examinará outra vez; se a LEPRA se tornou baça e na pele se não estendeu, então, o sacerdote o declarará limpo; é pústula; o homem lavará as suas vestes e será limpo.
 7 Mas, se a pústula se estende muito na pele, depois de se ter mostrado ao sacerdote para a sua purificação, outra vez se mostrará ao sacerdote.


A atenção do sacerdote se volta para os processos de comunicação ou não de “tsaraath” e nega` e a “opinião” que o sacerdote deve emitir tem como objetivo identificar se o contágio é um processo que se alastra ou se houve interrupção do processo. A “opinião” do sacerdote vai implicar em processos de exclusão ou não da pessoa “contaminada”.
Os termos hebraicos importantes aqui são:
se a praga tiver parado”  עָמַד `amad permanecer, perseverar, manter uma posição de
“se a pústula se estende” פָּשָׂה  pasah  que se traduz como disseminação, espalhar

            Contra o perigo de transmissão, de contágio o texto vai propor medidas de controle ou destruição uma vez que este “fato social” coloca em risco o conjunto, a totalidade da vida comunitária sob guarda dos altar. Pessoas e coisas que foram declaradas impuras nos capítulos devem ser purificadas ou destruídas: (a) Lavado com água (cf. Lv 11:32; 15:06.). (b) queimadas a fogo (cf. Lv. 13:52, 55, 57). (c) Quebradas (cf. Lv. 11:33, 35). (d) Demolidas (cf. Lv. 14:40-41, 45).
            A pessoa que for considerada impura pelos sacerdotes sofre a humilhação de ser publicamente declarada ou até mesmo de ter que se declarar imunda, o que tem como consequência o isolamento da presença de Deus e da vida comunitária. O que está imundo deve ser colocado fora do campo, longe da presença de Deus, longe do povo. "... Ela não deve tocar em qualquer coisa consagrada, nem entrar no santuário" (Lv 12:4). Em alguns casos a coisa imunda ou pessoa era visto como sendo um elemento de contágio que precisa ser controlado ou eliminado (cf. Lv. 15:4-12, 23-24, 26-27). O Levítico confere este poder aos sacerdotes e toda a vida comunitária depende desta tarefa de manter o puro longe do impuro... e se este lugar não existe ele pode ser inventado pelo ritual.


Conclusão:
a clareza não traz proveito, a não ser que apenas um a possua... Brecht
            Os equívocos da história da tradução e da interpretação reforçaram ainda mais o potencial inquisidor e persecutório do texto do Levítico que, a rigor, representa a formulação conjuntural de tratamento de casos de doença de pele e de processos de contaminação na antiguidade. Está claro que a proposta do Levítico de uma sociedade controlada a partir do altar tem condicionantes políticos e econômicos e a explicitação das situações de conflito presentes na comunidade. Claro está também que este projeto de totalidade não se sustenta como modelo de ordenação da vida comunitária uma vez que muitos elementos vitais da proposta foram deslocados, relativizados e superados. Mas...
a proibição do homoerotismo permaneceu. A Igreja herdou a visão antropológica da heterossexualidade universal, com suas interdições.[12]

            Os usos e malfeitos da leitura do Levítico e outros textos bíblicos têm servido de combustível para as pretensões de reforço de poder da igreja patriarcal, elitista e homofóbica do Cristianismo Ocidental que reivindica para si o papel de guardiã de uma pretensa heterossexualidade normativa e universal que trata de naturalizar as interdições. Os temores de contágio – que insistem na vinculação aids/desordem/castigo – encerram em si uma ideologia heterossexual colonizadora dos corpos, baseada na homogeneidade e repetição do mesmo – uma porno-grafia – expressa nas formas clássicas de teologia sistemática[13] e no lobby das hierarquias contra outras formas de organização e vivência do sexo, das relações, das peles e do pelo.
            Quando o Papa Bento XVI afirma que o casamento gay ameaça a humanidade[14] e que se deve proteger a heterossexualidade em nome de Deus como se protege o planeta o que está sendo dito é que os arranjos sexuais, familiares e comportamentais escapolem do controle da igreja que vê minguando seus mecanismos de poder. Tal clareza só traria proveito para o Papa mesmo... se ele fosse um poder inconteste. Não é.   Mal ou bem me sinto acompanhada: faz tempo que não pronuncio Teu nome em vão.







[1]   MEYERS, Carol, As raízes da restrição - as mulheres no Antigo Testamento, in: Estudos Bíblicos, Vozes, Petrópolis, n.20, 1988. p. 18
[2]   DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo, Perspectiva, Sao Paulo, 1998,  p. 15
[3] IRIGARAY, Luce. Elemental Passions, New York: Routledge,1992.
[4] MARTINS; SILVA; MUTARELLI; A teoria dos temperamentos: d o corpus hippocraticum ao século XIX http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a14/martisilmuta01.pdf
[5] BRECHT, B., Stories of  Mr. Keuner (Excerpts), in:  http://www.bopsecrets.org/CF/brecht-keuner.htm (acesso em 12/11/2011)
[6] DOUGLAS, Mary, Pureza e perigo, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976. p. 15
[7] LUKÁCS, G. Existencialismo ou Marxismo? São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979,  apud. CRUZ, M. M. Avaliação de Políticas e Programas de saúde: contribuições para o debate. In : MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde, 2011. p.181-199, http://www.ims.uerj.br/ccaps/wp-content/uploads/2011/10/Capitulo-7.pdf (acesso 20/12/2011)
[8] CARVALHO, Edimilson, A Totalidade Como Categoria Central na Dialética Marxista, Revista Outubro, Instituto de Estudos Socialistas, nº 15, 2007, in: http://orientacaomarxista.blogspot.com/2008/07/totalidade-como-categoria-central-da.html (acesso em 20/12/2011)
[9]              MADURO, Otto, El cuerpo en América Latina, in: Revista Feminista de México, N. 14, 1979, p. 14
[10] ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano - a essência das religiões,  Edição Livros do Brasil, Lisboa, p. 184 e 185
[11] SONTAG, Susan, op.cit., . p.73
[12] LIMA, op. Cit.,
[13] MUSSKOPF, A.S., Via(da)gens Teológicas, itinerários de uma teologia queer  no Brasil, tese de doutorado, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2008, in: http://pt.scribd.com/doc/17202107/35/Marcella-Althaus-Reid-e-uma-%E2%80%9Cteologia-inde


estado laico: o jOgO dos 7 erros

encontrei 7 erros nesta frase...
"O Estado brasileiro é um Estado laico. Mas, citando o salmo de Davi, queria dizer que feliz é a nação cujo Deus é o Senhor." - Dilma, a presidenta
1. O Estado Brasileiro não é um Estado laico pleno (confira próximos itens abaixo);

     2.Não se coloca um MAS depois de uma afirmação constitucional;

3.Dilma não queria nem saberia dizer o que disse... disse por imposição de campanha (que assessoria é essa?);

    4.Este Salmo não é de Davi;

5.Davi não escreveu este Salmo nem nenhum Salmo;

6.Este verso pressupõe 2 afirmações inaceitáveis num Estado laico e democrático:   

- que a “felicidade” da vida nacional depende da garantia do senhorio de um Deus Senhor;
- implica numa percepção de povo escolhido;


7.este Salmo usa 3 expressões yāša‘ (salvar), nāşal (escapar), e mālaţ (salvar) - versos 16 e 17 – mas do jeito que a coisa vai... vamos ter que nos virar do avesso para escapar do fundamentalismo religioso porque o Estado prefere o escambo ao direito.


confira: 

https://www.youtube.com/watch?v=F_s5Gnrvoj0

http://www.estadao.com.br/noticias/geral,feliz-e-a-nacao-cujo-deus-e-o-senhor-diz-dilma-a-evangelicos,1540929