Em 1524 o
campesinato alemão organizado publicou 12 teses com suas reivindicações que
considerava estar no âmbito das reformas necessárias, também a reforma
religiosa. O manifesto reivindicava:
1) O direito de
eleger seus próprios pastores / líderes
2) Garantir que
a comunidade controlava os recursos: apoiar os pastores, os pobres e as
situações de necessidade;
3) A libertação
dos servos, já que todos os seres humanos foram redimidos através do sangue de
Cristo
4) Liberdade
para caçar e pescar
5) O direito de
cortar lenha na floresta para uso doméstico
6) Restrição de
serviços obrigatórios
7) Pagamento por
trabalho extra do que estava estipulado no contrato
8) Redução do
aluguel
9) Eliminação de
punições arbitrárias
10) Restituição
à comunidade de pastagens e campos que lhes foram retirados
11) Abolir o
imposto de herança, porque as viúvas e órfãos são roubados de sua herança
12) Todos esses
itens devem ser examinados com base nas Escrituras e se algo tem que ser
corrigido será.[1]
Era isso. Tudo
justo e simples. Mas os príncipes alemães não estavam dispostos a negociar.
Lutero também não. E assim começou a guerra camponesa. Animados por uma minoria
de teólogos e pastores reformados a guerra camponesa não se conformava com a
reforma superficial de uma Europa desigual, elitista e feudal.
Mais de 300.000
camponeses tomaram parte na revolução, muito mais do que qualquer rebelião
popular naquela época. Ao todo, cerca de 100 mil pessoas morreram a maioria de camponeses.
1-
A
Guerra Camponesa ainda não terminou… é verdade que a revolta camponesa alemã de
1524 não foi a primeira a ser reprimida e violentamente dominada; o novo foi a
consolidação de um discurso teológico que legitimou não só a autoridade dos
príncipes, mas legitimou a propriedade privada como elemento constitutivo da
hierarquia divina: igreja, estado e casa. Em nome dessa ordem Lutero chamou os
camponeses de cachorro e palha, apoiou a violência e o massacre de mais de 100
mil camponeses.
2-
Mas
esta guerra ainda não terminou! Ela fazia parte de um quadro maior de mudanças
que tinha na agricultura sua origem e no estatuto da propriedade sua base
fundamental; expulsos, os camponeses de toda Europa assumem o caminho da
migração para o novo mundo fugindo das horrorosas guerras religiosas entre
protestantes e católicos romanos, fugindo da fome, da doença e da expropriação;
não havia lugar para estes milhões no capitalismo em formação;
3-
A
terra não era uma questão secundária nem a guerra camponesa uma crise
colateral. A repressão e a demonização dos camponeses pelos reformadores
tiveram e têm custos pesados para as teologias protestantes, em especial na sua
capacidade de entender os últimos 500 anos e seu metabolismo do sistema-mundo
fora do interesse teológico ou institucional em si. O campesinato que encheu os
navios e atravessou o Atlântico têm a seu favor os vínculos religiosos –
católicos ou reformados – e entram na América como território extendido de seu
mundo particular: o que não havia para os milhões na Europa a América vai
oferecer: terra! A guerra camponesa atravessa o Atlântico norte e sul e vai se
esparramar pelo novo mundo. Derrotados no velho mundo vão derrotar povos
originários nas Américas protegidos pelo sistema-mundo do cristianismo que
confere a estas populações deslocadas um lugar de destaque em sua estratégia de
dominação: possuir a terra!
4-
Os
nativos e os modos de vida do local vão ser destruídos e destituídos; a guerra
camponesa encontra sua outra cara na invisibilidade do lugar e sua gente; a
expansão econômica e militar da europa cristã – mesmo com suas diferenças –
resolveu sua questão agrária na transferência de milhões de sem terras pobres
para outro território; em troca do acesso à terra estes milhões ofereciam o
volume necessário de presença para se opor e negar as populações locais. A
guerra camponesa encontra sua cara indígena!
5- “Quando os europeus conquistaram os trópicos, eles
puseram em prática as terras e suas cercas. Confiscaram a melhor terra. Eles
tribalizaram e escravizaram os povos nativos, forçando-os a cultivar culturas
comerciais para exportação. Essa violência massiva contra os povos nativos, a
vida camponesa e a cultura rural moldou a agricultura industrializada.” [2]
6-
O
mito mais querido do capitalismo é dizer dele mesmo que depende da ética de
trabalho do mundo protestante, de sua frugalidade e capacidade de economizar.
Mentira! Livros e mais livros foram produzidos nestes 500 anos para dizer da
matriz ideológica do protestantismo como matriz do mundo industrial,
tecnológico e berço dos modos de pensar e conhecer mais abrangentes e universais.
Mentira! O protestantismo resolve sua disputa com o mundo católico, divide os
territórios e suas influências e marcha soberano sobre o novo mundo com suas
comunidades ávidas pela vida espiritual que se expressava no sucesso material.
E os camponeses interditados na velha Europa vão ser promovidos a colonizadores
no novo mundo as custas de extração excessiva de recursos que vão bancar o
processo de industrialização e ao mesmo tempo a inviabilização da resistência
dos povos originários.
7- “A descoberta das terras do ouro e da prata, na
América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas
minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação
da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora
da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos
fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das
nações europeias, tendo o mundo por palco.”[3]
8-
O
que estava em disputa nos difíceis tempos da Reforma Protestante... não eram
somente ideias religiosas, mas eram formas distintas de grupos distintos
exercerem poder sobre os modos econômicos e as duas formas básicas de produção
da vida: o acesso à terra (água, madeira, animais, minérios, alimentos, etc) e o sistema de trabalho. Os fortes debates
religiosos estruturam e são estruturados por estas mudanças e enfrentamentos na
Europa do século XVI. A importância da religião nesse mundo é inegável assim
como inegável também é a importância da terra e posse da terra nas formas de
organização dos poderes da época.
9-
Ainda
hoje o protestantismo entre nós se cala diante da guerra camponesa insistente,
se identifica com a propriedade privada da terra e não é capaz de ouvir e
dialogar com as lutas por terra e território de povos tradicionais. Depois de
500 anos as 12 teses do campesinato continuam como desafio dramático para a
teologia e a pastoral. Como na poesia de Pedro Casaldáliga:
—Com a força dos braços lavramos
a terra
cortamos a cana, amarga doçura na
mesa dos brancos.
— Com a força dos braços cavamos
a terra,
colhemos o ouro que hoje recobre
a igreja dos brancos.
—Com a força dos braços, o grito
entre os dentes,
a alma em pedaços, erguemos
impérios,
fizemos a América dos filhos dos
brancos!
[1] e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/download/1125/925
[3] Karl
Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 285.

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