julho 23, 2017

do querer bem & os buracos sagrados


Corpo, sexualidade, afetividade
- Palestra proferida no dia 03/09/2015, no período noturno, pela
 Profª Dra. Nancy Cardoso, transcrita pelo
 acadêmico Erick Dorff Schmitz -


                   Introdução

Para permanecermos vivos nós precisamos de energia, mas para permanecermos vivos nós precisamos gastar energia, e tudo se dá em trocas constantes de energia. Para respirar, nós trocamos o ar sujo com ar limpo, além de respirar nós precisamos comer, beber, de abrigo... São essas questões e trocas concretas como o ar, alimento, água que nós precisamos para fazer funcionar essa coisa incrível que é o nosso corpo. Nós só pensamos no nosso corpo quando ele dói, quando vem uma dor forte ou uma privação, se não, na maioria do tempo não pensamos em nosso corpo.
Essas trocas são pessoais e sociais, por isso quando eu falo corpo, estou entendendo o corpo pessoal, o corpo social e o corpo do mundo, essas três dimensões tem que estar articuladas quando falo sobre corpo e corporeidade. O meu corpo só é corpo em relação ao corpo social e em relação ao corpo do mundo. Se não houver uma relação de perguntas e respostas, de entradas e saídas do meu corpo com o corpo social, a vida não é vivida.

A relação do corpo pessoal com o corpo social

Nós fazemos o tempo todo intervenções no corpo do mundo, respirando, comendo, bebendo, etc. A minha boca precisa trazer o mundo para dentro, eu preciso comer o mundo, aproximar o mundo de mim. Crescemos no grupo social, depois escolhemos o grupo social que viveremos e esse grupo tem mecanismos de aproximar o meu corpo do corpo do mundo, esse é um aprendizado que fazemos na família, na escola, na igreja, com as pessoas que convivemos. São mecanismos para continuar vivos. Viver é basicamente isso e é tudo isso. Essa relação do corpo pessoal, com o corpo social é muito boa. E “Deus viu que era bom”.
Mas nessa relação, por exemplo, a água está lá e minha sede está aqui, por isso, na história da civilização o ser humano desenvolveu técnicas de aproximar essa água para perto do meu corpo. Essa foi uma revolução que nos deixou mal acostumados a acessar o corpo do mundo e matar a sede. Essas resoluções se dão nas formas de trabalho. É no trabalho, na tecnologia e na criatividade que os seres humanos fazem essa aproximação para responder aos desejos, as vontades e as necessidades.
O trabalho, a tecnologia, a arte, são formas que nós recebemos no grupo social e vamos vendo de que maneira pode ser melhorado e modificado. Por exemplo, a água, que foi sequestrada na garrafa, e cada vez mais as empresas detém esse recurso e lucram com isso; nós acolhemos essas tecnologias ou dizemos que é indigno. Isso é fundamental para discutir corpo.
 Precisamos falar de certas materialidades, que já estamos tão acostumados, que precisamos desacostumar, ou desconstruir algumas dessas resoluções que são repostas ao corpo pessoal, ao corpo social e ao corpo do mundo. Essas trocas do corpo pessoal e do corpo social produzem dejetos, lixos, e precisamos resolver isso também. Mas isso não está resolvido e nos acostumamos. Consumir produz energia; para viver eu preciso de ar, água, comida, roupa, limpeza, moradia; todas essas coisas são necessárias para que os corpos tenham condição de viver como gente.

Teologia e materialidade

Os corpos estão envolvidos por essa trama de relações de produzir as relações da vida material. Uma teologia que quer pensar o corpo está aí! E todas essas questões arranham os corpos das pessoas, dos idosos, das crianças, etc. e arranham de forma desigual, pois nem todos participam desse corpo social de forma igualitária. Os corpos vão definir a classe social, a raça e a participação do corpo no corpo social. Viver é relação, são os corpos que vivem, e esses corpos precisam se relacionar entre si para viver no corpo do mundo. Infelizmente, a grande maioria, dos pobres, dos negros, das mulheres, não tem acesso ao corpo do mundo. Por isso não podemos fazer uma teologia do corpo de forma universal, não existe corpo universal, existem corpos concretos, e isto exige na teologia tratar com as materialidades.
E entre as trocas materiais, as formas de estar vivo, está também o sexo. Aliás, todas essas formas de estar vivo entram pelos buracos maravilhosos do nosso corpo. O que conta no nosso corpo não são as partes densas, que são boas também, mas são os orifícios. São todos esses orifícios que nos fazem estar vivos, que estabelecem as relações do meu corpo com outro corpo, com o corpo social, com o corpo do mundo. É por essas partes abertas que a vida entra e sai, sai e entra. Essas relações com o corpo social, com o corpo do mundo e com o corpo do outros tem mediações.
A teologia esta aí para complicar, “desexplicar”, criar o estranhamento. A teologia não explica nada, os teólogos fazem confusão, polêmica. E viver no corpo social causa esse estranhamento que provém dos buracos sagrados, que vêm de Deus.


Desejos e vontades

Quando falamos de corpo temos que analisar todas essas formas de comer, de mexer, de respirar, de beber, de dormir, etc. Mas o corpo humano não é só essas necessidades, é também desejo e vontade. Na relação do corpo pessoal com o corpo do mundo há desejo e há vontade. Os animais também tem necessidades, mas eles possuem memória biológica e eles têm como resolver essas questões do corpo. O ser humano não é só memória biológica; nós também lembramos como nossos pais resolveram essas questões da vida. Os seres humanos tem também memória social, pelo fato de ver e conviver com a família e com os grupos, e ali aprender como resolver os problemas. Porém, nós podemos alterar isso e fazer diferente. A arte, o trabalho, etc. são ferramentas que o corpo pessoal tem para interagir e modificar o corpo social e a memória social. O ser humano tem memória social, e pode modificar o que aí está.
Necessidade, desejo e vontade existem para viver, para comer e para fazer sexo. A questão da sexualidade é desejo, necessidade e vontade. É descobrir como se dá a relação do meu corpo com o outro corpo. No sexo eu deixo que o outro chegue perto de mim definitivamente. Há sexo bom, e há sexo ruim. Há sexo que é obrigação, que é comércio, que é estupro. Assim como há formas sociais de resolver questões de comida, de beber, de sono, há também formas de resolver questões de sexo. É dar e receber. O sexo é uma forma de produzir energia e gastar energia, e é uma tarefa do grupo social também, pois influi na população, no grupo social, etc. O sexo serve também para resolver questões de reposição populacional, que já pode ser feita de maneira artificial, e é uma questão também para reflexão teológica.
Comida não é só necessidade, mas também vontade e desejo, então é arte. Há maneiras de se vestir, de resolver as questões da casa e de sexualidade também; há maneiras de resolver questões de grupo, mas também é vontade e desejo. E assim como nas soluções referentes à               água e à comida há formas opressivas, também no sexo acontece a mesma coisa: culturalmente as mulheres sofrem mais com arranjos matrimonias e sexuais ruins. Isso é perverso para as mulheres e para os homens. Deve haver um acordo de amor, para ter satisfação a ser partilhada, do contrário, no corpo social se pode ter formas diversificadas de escravidão e de opressão.


Deus quando veio morar definitivamente perto de nós, quis ficar definitivamente perto de nós, por isso o Verbo se fez carne. É extremamente sensual e erótico esse desejo de Deus por nós. Deus, o divino, se fez carne e de forma concreta no menino. O Natal é altamente erótico, a Páscoa é ressurreição da carne, é vida que continua. Os cultos neopentecostais e carismáticos colocam o erotismo na relação com o sagrado, mas não o colocam na relação com o corpo social e o corpo do mundo, o resto do mundo não importa. Nossa teologia é uma teologia de corpo, e a teologia da libertação entendeu isso, porém alguns teólogos se cansaram, pois não é fácil afirmar o totalmente divino no totalmente humano.

A proposta de Jesus

Nos evangelhos há muita comida e há muitos corpos doentes; há muitas andanças;  o evangelho transpira essa corporeidade. Só não há sexo nos evangelhos, nem há uma família inteira, nem mesmo José, Maria e Jesus. Há fragmentos de grupos humanos, o que expressa a realidade de opressão de sistemas políticos com suas vítimas: pessoas enlouquecidas, com fome, doentes... E daí surge a proposta de Jesus.
Recuperar as relações é urgente para Jesus, e aí entra a comida. Também a família entra aqui. Contra a família patriarcal tradicional Jesus vai propor outra família: minha mãe e meus irmãos são aqueles que fazem a vontade do Pai. A proposta de Jesus é essa família ampliada, é essa outra subjetividade, onde ninguém vai ficar com fome ou sozinho. No Reino de Deus Jesus projeta novas subjetividades e novas formas das pessoas se relacionarem consigo mesmas, com a sociedade e com o corpo do mundo.
O Evangelho de Mateus 15 dialoga diretamente com o Levítico que mostra claramente a relação do ser humano com a comida, sexo e saúde. Mas a proposta do Levítico é controlar a comida, o sexo e a saúde a partir do altar. 

Em resposta ao Levítico, Jesus nos evangelhos conversa com os corpos pessoais e sociais e propõe uma nova subjetividade e afetividade, contrária a do Antigo Testamento. No Levítico, a comida, o sexo e a saúde passam pelo poder do altar e do sacerdote que exercerá um controle sobre o corpo pessoal e o corpo social. O altar vai ter a função de disciplinar o corpo. O Evangelho vai refletir essas questões corporais e oferecer uma revolução social. Há uma questão cristológica muito forte na questão da comida, do sexo e da saúde. O Evangelho de Jesus recupera a máxima que também está no Levítico, dando-lhe o verdadeiro sentido: amar o próximo como a si mesmo.


Dra. Nancy Cardoso.

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