novembro 12, 2008

entre o erótico e a barbárie



espiritualidade feminista
para os tempos de mercado[1]







As coisas: enfileiradas em ordem de prateleiras. Categorias e gêneros. Substâncias e suas mesuras. Invólucros. Qualidades em quantidades: valor. Cabides dependurados entre valor de troca e valor de uso. Você tem fome de quê? – pergunta o mercado como se conhecesse minha língua materna... indecifrável até pra mim. Empurro o carrinho que me identifica na feira do consumo e me aflijo entre as formas oferecidas de necessidade e desejo.
É que na lógica do mercado as relações de troca assumem o dinheiro como linguagem de valor sem precisar mais repousar sobre a linguagem da necessidade. Uma abstração se concretiza! Ninguém vê, mas todo mundo experimenta: o milagre da transubstanciação:

“O valor de troca atado ao corpo da mercadoria anseia ser redimido sob a forma do dinheiro [2].”

O milagre acontece quando a pessoa se realiza como consumidor. No ato do consumo mercadoria e dinheiro se beijam e o lucro promete congregar toda sociedade, um dia, no mercado pleno. Ou não: interessa que o lucro e o valor se reproduzam e se realizem.
É ao mesmo tempo uma operação complexa e simples, sensual demais e totalmente metafísica. Trata-se de realidades, coisas, substâncias, objetos, istos e aquilos que, tocados pela linguagem do valor, se transformam na subjetivação das necessidades. As realidades materiais e concretas são despossuídas de sua cotidianeidade de valor de uso, para assumirem a metafísica do valor de troca.

“Ansiosa pelo dinheiro, a mercadoria é criada na produção capitalista à imagem da ansiedade do público consumidor. Essa imagem será divulgada mais tarde pela propaganda, separada da mercadoria.[3]

Ansiedade. Amor. Imagem. Desejo. Sedução. Parecem não ser palavras devidas para a discussão econômica... entretanto são aquelas que talvez expressem melhor o processo de fabulação estética da mercadoria.
Marx vai dizer que a mercadoria ama o dinheiro e acena com o seu preço lançando olhares amorosos[4] e identifica uma certa malícia angelical na especulação com o dinheiro[5]; vai afirmar que o dinheiro não é apenas um objeto da paixão de ficar rico, e sim, o dinheiro é a própria paixão[6].
Se as metáforas do discurso amoroso poderiam ser entendidas meramente como recurso estilístico para o capitalismo industrial, limitando-se ao campo da retórica, as análises do capitalismo de mercado globalizado identificam nesse campo semântico uma chave hermenêutica vital.
A mercadoria deseja ser consumida, precisa ser escolhida, comprada; para isso precisa fazer-se amável, desejável, precisa adivinhar o desejo ou inventá-lo oferecendo um estímulo estético.

É preciso induzir uma nova forma de prazer sempre submetida à manutenção da capacidade de reprodução do capital mesmo.
Marx vai apresentar duas senhoras: Senhora Moral e Senhora Religião[7]. Estas duas Senhoras são completamente obsoletas e desnecessárias no que diz respeito às leis econômicas: a moral da economia política é o ganho e subordina as duas senhoras à sua lógica num metabolismo eficiente de alienação.


Alienação erótica - o corpo se faz fetiche:

No âmbito da economia de mercado alienação deve ser entendida não como falta mas como abundância de promessas. Alienação não é ausência, mas é promessa de presença. Alienação não é a negação do corpo, mas a expropriação da sensualidade e da erótica a serviço da apropriação do produto. Alienação das materialidades do trabalho para consolidação existencial do consumo. As coisas e os corpos perdem sua materialidade imediata para serem mediatizados no consumo da mercadoria. O corpo se faz mercadoria. Assim, fetichismo funciona bem tanto no discurso econômico como na linguagem porno-erótica.
A invisibilização do trabalho se dá na glamourização da corporalidade e da erótica. O corpo das classes trabalhadoras, transformado em mercadoria dele mesmo, se aliena no consumo erotizado que oscila entre desejo e realização. Na invisibilidade e inviabilidade da experiência do trabalho como acontecimento humanizador e criador de cultura, o mercado esvazia o lugar da produção para fazer o elogio do mercado no âmbito do consumo sem permitir perguntas sobre relações reprodutivas e distributivas.
Localizado o movimento fundamental na base do consumo e negando o conflito entre capital e trabalho, o mercado particulariza a distribuição das riquezas, tornando inviável a democratização do consumo. A dinâmica entre promessa e realização, desejo e posse, alimenta-se da sensualidade para manter os modos de reprodução e controle do capital.
O que para alguns se explica com a existência e a funcionalidade de sistemas dinâmicos parcialmente auto-reguladores, no que se refere aos comportamentos humanos[8] as feministas insistem em apontar como reinvenção de mecanismos históricos de dominação. Não seria possível chamar o mercado de mecanismo auto-regulador porque o termo reflexivo continua expressando uma particularidade (de classe, de gênero e etnia) que se pressupõe universal ou global.

Erotizar a teologia para enfrentar o deus-mercado:

Alienação e fetichismo não são invenções do capitalismo e do patriarcalismo: precisam ser entendidos no âmbito da fabricação dos mitos, dos cultos, dos encantamentos, dos rituais mágicos de manutenção de ambos, seus deuses (capital/pai) e seus truques. A religião sempre foi também expressão e reprodução de situações econômicas e de relações sociais de poder. Nesta dobradiça entre o discurso amoroso e sensual e o discurso religioso é que a teologia feminista percebe, não um conjunto de comparações ou recursos estilísticos, e sim um espaço de análise e crítica fundamental das relações entre capital-mercado-patriarcalismo.
De igual modo se mostra necessário identificar e criticar o dualismo imagético do pensamento marxista dividido entre as duas senhoras desnecessárias (moral e religião) e as representações do imaginário feminino da grande sedutora nas relações de consumo. Rever os imaginários – antigos e novos – se faz necessário na busca de um metabolismo econômico sustentável e igualitário. Suspeitar e desconstruir estas redes de imaginário que alimentam alienação e fetiche do capital e do patriarcado, se articulam de modo necessário com o desvelamento das redes institucionais de regulação das economias mundiais (nunca! de auto-regulamentação) e sua
aparência metafísica.

A estetização da mercadoria confere ares de divindade ao dinheiro e ao mercado, garantindo fundamento metafísico para a cultura burguesa e seus rituais e cultos que demandam a produção de legitimação de si mesma e de constante reificação das necessidades dos dominados. Esta produção estética, que se apodera do corpo, sua capacidade criativa, inventiva, sensual e erótica, vem cooptando as teologias cristãs, suas exegeses e hermenêuticas, seus sacrifícios e mecanismos de postergação como linguagem missionária da suposta inexistência do conflito de classe e da invevitabilidade do mercado como realização plena da vida humana.
A contribuição ética do feminismo se dá na insistência de que o pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a produção é distributiva, o consumo é criativo. Esta reversabilidade dos sentidos e suas relações confronta qualquer modelo político metafísico de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e necessidades. Não há nenhum mecanismo fora da história, no passado ou no futuro, capaz de concretizar relações igualitárias.
Ao insistir em trabalhar com o corpo, a vida cotidiana e suas relações como lugar vital de construção e circulação de poder e significados sociais e teológicos[9], a teologia feminista quer inviabilizar a mercantilização dos corpos e a estetização da mercadoria. Neste sentido, e de modo especial, a Bíblia e a teologia deixam de ser uma identidade auto-referenciada nos métodos sociológicos e histórico-críticos e passam a conviver com a vertigem da pluralidade dos paradigmas: classe, gênero, etnia, ecologia. São estas simultaneidades vivenciais e suas diferenças irredutíveis que tornam impossível qualquer tentativa idolátrica de mercantilização do corpo e estetização da mercadoria.
Visibilizar o caráter hermenêutico das relações políticas e econômicas e desvendar os mecanismos de construção de ídolos e rituais auto-reguladores, exigem uma teologia capaz de desistir de qualquer mão invisível auto-reguladora (seja ela dogmática ou exegética) para se inscrever definitivamente no campo da criação cultural, estética de memórias, hermenêutica de libertação. Deus conosco


* todas as gravuras a seguir são de Marc Chagall





Esporas do desejo:

ler a Bíblia ou consumir religião?

Escolho meus materiais de imaginação e desejo sem precisar me explicar demais: trabalho com os estalidos da literatura bíblica não mais como destino ou necessidade, mas desconhecendo qualquer fronteira entre espasmo e terremoto no corpo da minha história pessoal e no corpo sub-evangelizado dessa América Latina. São narrativas estranhas e próximas: dócil prisioneiras dos altares e das academias de teologia; selvagens e míticas no uso oscilante e mágico da leitura popular. Refaço a leitura e invento contrários: mastigo as narrativas fundantes com dentes de muitos dias sem comer e recuso toda forma educada de participação no metabolismo ocidental, burguês e cristão das imagens. Quando o verbo se faz mercadoria e se perpetua entre nós... é preciso tomá-lo de novo como carne crua, negar seu valor de troca, enfrentar seu valor de imagem e grudá-lo de novo na pele suada dos homens e mulheres pobres: dolorosos e gozosos, benditos e malditos. Iluminada pela delicadíssima brutalidade da disputa pelos corpos e seus desejos, eu leio no feminino plural.
Os pequenos textos que se seguem são ao mesmo tempo rascunho de um programa inacabado de um tratado teológico que não quer ser nem tratado nem só teológico. São trajetórias cultivadas em textos e assessorias e, reunidas assim, só mostram o seu avesso: o que eu queria mesmo era fazer uma canção.




Por uma estética do desejo sem culpa (Gênesis 3):


Eva, a primeira. A mulher de grandes olhos abertos que viu para além do que a divindade e o homem haviam acertado entre si. Eva, senhora da menina de seus olhos. Vê e deseja. A árvore. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de mão e boca. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. A árvore? Boa de se comer! Agradável... agradável aos olhos; gostosa na boca se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, agarrar com as mãos e colocar na boca. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Examinados e acareados, Eva e o homem se dividem na culpa e se danam na moral que dita a lei sem os arrepios do desejo. A palavra criadora subordina o desejo inventivo. O trabalho criador amaldiçoa o corpo lúdico e curioso. Houve medo e castigo, o primeiro último dia da criação.

Por uma estética do trabalho seus desejos
(Cântico dos Cânticos)


A Amante. A mulher de grandes boca e pernas abertas que tomou posse para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Ela, senhora da menina dos seus olhos, sua boca, seus seios, suas mãos, seu sexo, seu trabalho, seu amor. Vive e deseja. O homem. A terra. O fruto. Entre o olhar e o desejo ela cria seu próprio corpo, inventa mais de uma fome e se lança na contramão dos mecanismos de controle da terra, da vinha, da cidade, do corpo de mulher, da família. Puro erotismo modelando a carne e projetando alternativas. O homem? Bom de se comer! Agradável aos olhos: imagem de desejar se deixar querer. Gostoso na boca o fruto do trabalho libertado se adivinhava na pele do pastor/homem amado. Gozar na ponta da língua: poesia e orgasmo, sombra do desejo que inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, capinar, lavrar, podar, colher, carregar, juntar, separar... trabalhar o mundo e suas forças como quem se deita com alguém. Ele come o que o desejo/trabalho dela criou. Abrem-se as pernas. Estão nús. Extasiados e cansados, a Amante e o amante dividem o sono e se aconchegam na cama da mãe e seus arrepios de desejo. A palavra criadora se apaixona pelo desejo inventivo. O trabalho criador abençoa o corpo lúdico e curioso. Houve gozo e prazer, um outro dia de trabalho e criação da criação.




Por uma estética da propriedade
e sua erótica (Rute):



Rute, a outra. A mulher de grandes ombros curvados que desejou para além do que a divindade e os homens haviam acertado entre si. Rute, menina dos olhos da senhora: Noemi. Vê e trabalha. A terra. Os restos. Entre a produção e a sobra ela cria o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança de corpo inteiro na vinha, na vida, do homem senhor da terra. Puro erotismo que umedece a carne e se projeta num vestido de alternativas. O homem? De idade. Bom de se deixar comer. A terra. Agradável aos olhos. Ela se faz gostosa, na boca do homem se adivinhava. O desejo que constrói entendimento. O corpo que se projeta nos gestos, festa de desejo, inventa eroticamente o mundo, a propriedade, o pão e a família. Ele come o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nús. Amedrontados e excitados, Rute se despede do homem antes que seja manhã. Ele enfrenta culpa e moral da lei com os arrepios do desejo. O desejo criador subordina a lei sem paixão. O trabalho braçal abençoa a terra no abraço das mulheres. Houve terra e criança naquele dia de recriação.


Por uma estética distributiva e seu prazeres

(2 Reis 4, 1 a 7):

Viúva, a última. A mulher de grande boca aberta que desejou para além do que a divindade, o marido e o credor haviam acertado entre si. A viúva, mãe dos meninos de seus olhos. Vê e grita. Um filho. O outro. Entre a dívida e a escravidão ela fabrica o seu próprio corpo, inventa outra fome e se lança ávida e faminta sobre potes e vasilhas. Puro erotismo modelando as horas e projetando alternativas. O óleo? Bom de ver escorrer. Maravilhoso... de um pote ao outro; um milagre na vida se adivinhava. Milagre para dar entendimento. O corpo que se movimenta entre as vizinhas e suas vasilhas, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo, a vida dos filhos. Produz conhecimento. Esticar as mãos e encontrar outras, encher a vida de sentido e azeite. Os meninos comem o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão salvos. Libertados e cuidados, ela e os filhos aprendem a consumir milagres distribuídos de mão em mão sem os arrepios da lei. A palavra criadora encontra o trabalho comunitário. O desejo inventivo abençoa o corpo cansado e glorioso. Houve fartura e sossego, aquele dia de salvação.






















Por relações reprodutivas libertadoras
e o prazer de decidir:


Maria, a Virgem. Mulher de grandes ouvidos abertos que ouviu para além do que o deus, o pai e o homem haviam acertado entre si. Maria, senhora do labirinto de ouvir. Ouve e deseja. O filho. O fruto. Entre o ouvir e o desejo ela cria o seu próprio corpo, inventa espaço pra mais alguém e se lança de mãe e boca:

O Espírito de Deus está sobre mim... porque eu me ungi dizendo: sim! para anunciar as boas-novas às mulheres, para libertar as sem escolhas, sarar as abortadas e proclamar os tempos de decisão (entre Isaías e Lucas).

Puro erotismo modelando o útero e projetando alternativas. O filho? Bom de se desejar. Agradável... volumoso nas entranhas se adivinhava. Desejável para dar entendimento. O corpo que se projeta no ventre, barro de desejo, inventa eroticamente o mundo. Produz conhecimento. Esticar os braços, aninhar a criança e oferecer o peito. Ele mama o que o desejo dela criou. Abrem-se os olhos. Estão nus. Bem-aventurada e saciado, Maria e o filho se juntam nos arrepios do evangelho com desejo. A palavra criadora convida o desejo inventivo de pescadores e prostitutas. O trabalho reprodutor abençoa o corpo lúdico e sofrido. Houve cruz e castigo, o último primeiro dia de salvação.


[1] extraído de me texto “Commodity aesthetics and the erotics of relationship” publicado in: Marcella ALTHAUS-REID, Liberation Theology and Sexuality, Ashgate, UK, 2006
[2] HAUG, W.F., Crítica da Estética da Mercadoria, UNESP, São Paulo, 1996. p.30
[3] ibid., p.35
[4] MARX, O Capital, vol.1, in: HAUG, op.cit., p.30
[5] MARX, Para a Crítica da Economia Política, Os Pensadores, Victor Civita, São Paulo, 1985, p.163
[6] MARX, ibid., p.214
[7] MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Os Pensadores, p.19
[8] MO SUNG, Jung, Novas Formas de Legitimação da Economia, Koinonia, ReLat 273, www.koinonia.org/relat
[9] vv.aa., Pautas para uma hermenêutica feminista da libertação, Ribla 25, Vozes, Petrópolis, pp.5-10

Um comentário:

Rodrigo Moura disse...

Como falta poesia na igreja. Precisamos de mais textos como esses, tudo está quadrado demais. Obrigado pastora.