julho 24, 2017

As Mulheres e a Reforma: falemos das bruxas!



Nesses 500 anos da Reforma Protestante temos insistido em fazer uma releitura inclusiva para que as narrativas não sejam todas no masculino plural. Este é um esforço necessário e importante que fazemos... MAS existe um outro lugar de memória sobre as mulheres e a Reforma protestante: o lugar nada confortável das "bruxas"
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.” - nos disse Eduardo Galeano... e as aprendizagens necessárias da crítica feminista precisam desvelar as narrativas fáceis e dóceis e fazer das ferramentas da história parte importante de conhecer a realidade para modificá-la. Falemos sobre elas: as bruxas!
Anoto aqui algumas leituras e socializo traduções provisórias acreditando que um dia poderemos conversar com mais qualidade de tempo e coragem sobre isso.

primeira leitura:
"Eu quero ser o primeiro a pôr fogo nas bruxas", disse Lutero sobre as bruxas num contexto de crescente mania de perseguição à bruxaria no século XVI. Lutero não foi o único que demonstrou tal zelo. Um número sem fim de fogueiras queimaram em todo o país. Milhares de pessoas, a maioria mulheres, perderam a vida. Mas Lutero foi realmente pioneiro na perseguição de bruxas?
Martinho Lutero viveu no mundo do final da Idade Média, Lutero estava enraizado no clima intelectual de seu tempo e a partir daí ele criou algo totalmente novo. 
A igreja deveria reabilitar as bruxas?

Somente na Alemanha, 25.000 mulheres e homens morreram depois de processos duvidosos. Durante meses, um grupo de trabalho lidou com este tema da reabilitação das bruxas - é um tópico para o ano de Lutero 2017.

>> tradução de trechos: Martin Luther and the witches
https://www.luther2017.de/en/wiki/martin-luther-and-the-witches/



segunda leitura:
A caça às bruxas estava irrevogavelmente ligada à Reforma Protestante. Ambos os países católicos e protestantes se ocuparam do combate de bruxarias e rituais pagãos mas, sem dúvida, os casos aumentaram em número durante o período crucial da Reforma - a segunda metade do século XVI. James Sharpe afirmou que a feitiçaria operava "dentro do contexto da reforma e contra-reforma". [I] A feitiçaria não se tornou um fator importante na vida das pessoas até a Reforma e desapareceu à medida que a situação religiosa em toda a Europa se estabilizava. Na Inglaterra, por exemplo, a última pessoa executada para bruxaria foi Jane Wenham em 1712. [ii] Esta foi uma época em que a Inglaterra foi estabelecida e unificada com a Escócia. 
Em alguns países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, houve relativamente poucos casos de perseguição de bruxas. No entanto, o Papa Sixto IV sentiu que o perigo era suficiente para garantir que se aprovasse uma Inquisição para lidar com os casos [Iii] . Enquanto a Igreja de Roma tinha um poder incoteste os casos eram tratados localmente e sem alardes. No período posterior, a partir da Reforma Protestante,  com o poder escorregando lentamente, foi importante assumir uma batalha explícita como forma de afirmação da liderança sobre a Europa cristã. A Inquisição num primeiro momento se ocupou mais com judeus e mouros na Espanha, mas ampliou sua ação incluindo a heresia da bruxaria a partir das iniciativas protestantes. Na Espanha em particular, as bruxas foram definidas pela  Inquisição como uma expansão do entendimento de heresia. [Iv] A heresia já não era apenas definida como a não crença católica (ou protestante),  mas também como aqueles/as que pareciam diferentes e uma ameaça ao domínio da crença e do saber, como bruxas. 
De acordo com Merry Wiesner, os espanhóis apenas mataram um punhado de bruxas, os portugueses apenas um e os italianos nenhum. [V] Muitos dos países católicos estavam no sul da Europa, e a bruxaria parecia se expressar mais na parte norte, como Alemanha, França e Escócia.

Ao contrário dos países católicos, em países protestantes como a Suíça, a feitiçaria foi vista como um remanescente das crenças católicas e um produto da ignorância. [Vi] As bruxas eram, portanto, vistas como ignorantes da verdadeira crença e da verdadeira religião. A feitiçaria e a heresia estavam intimamente ligadas, à medida que os processos de bruxaria aumentavam, os processos de heresia de crença em larga escala diminuíam. 
Na Escócia, houve caças de bruxas em larga escala em 1590, 1597, 1620 e 1649. [vii] Foi depois do período de ensaios de heresia abrangentes. Por isso, pode-se argumentar que a feitiçaria era apenas uma maneira alternativa de acusar os hereges, sem chamá-lo de "heresia" mas de bruxaria.
Essas diferenças regionais não podem realmente ser facilmente explicadas. Em lugares como a Rússia e a Estônia, a maioria dos processos de bruxaria foram executados contra homens e não mulheres. [Ix] De acordo com as estatísticas apenas 32% das bruxas eram do sexo feminino na Rússia, em comparação com 82% na Alemanha, por exemplo . [X] 
Isto revela que a Europa Oriental tinha visões muito diferentes da Europa Ocidental, possivelmente porque a Europa Oriental era menos dividida pela religião e tinha diferentes visões das mulheres em geral.



O sociólogo Nachman Ben-Yehuda afirma que: "Somente os países em desenvolvimento mais rápido, onde a igreja católica foi mais fraca, experimentaram uma mania de perseguição às bruxa virulenta (ou seja, Alemanha, França e Suíça). Onde a Igreja Católica foi forte (Espanha, Itália, Portugal), quase não houve uma epidemia de perseguição às bruxa.
A Reforma foi definitivamente a primeira vez em que a igreja teve que lidar com uma ameaça em grande escala de sua própria existência e legitimidade ". [Xi] Isso implica que a fraqueza da Igreja Romana - corrupção, riqueza e poder -  que gerou nas pessoas um desejo de Reforma - foi também a razão para tantas mortes em toda a Europa de pessoas inocentes. 
O desenvolvimento dos Estados-nação e suas definições eclesiásticas, em vez de colocar consolidar a fé na lógica, parece ter tido o efeito  contrário: fez as pessoas acreditarem mais nas superstições de uma certa maneira. A caças às  bruxas aconteceram como mecanismo de autoproteção de um poder religioso em formação: tudo que não era controlável era considerado heresia e merecia ser exterminado.
- tradução livre do texto: Witchcraft and the Reformation
https://tudorblogger.wordpress.com/2013/05/02/witchcraft-and-the-reformation-2/


referências:
[i] James Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’ in R. Po-Chia Hsia, A Companion to the Reformation World (Oxford: Blackwell Publishing, 2006) p. 444
[ii] David Ross, England: History of a Nation (New Lanark: Geddes & Grosset, 2008) p. 319
[iii] Hugh Trevor-Roper, Religion, the Reformation and Social Change (London: Macmillan and Company Ltd, 1967) p. 108
[iv] Ibid, p. 109
[v] Merry E. Wiesner-Hanks, Women and Gender in Early Modern Europe(Cambridge: Cambridge University Press, 2008) p. 258
[vi] Peter G. Wallace, The Long European Reformation: Religion, Political Conflict and the Search for Conformity 1350-1750 (London: Palgrave Macmillan, 2004) p. 214
[vii] Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’, p. 445
[viii] Diarmaid MacCulloch, Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700(London: Penguin Books Ltd, 2004) p. 569
[ix] Cissie Fairchilds, Women in Early Modern Europe 1500-1700 (Harlow: Pearson Education, 2007) p. 239
[x] Ibid, p. 239
futuras leituras: 
3- The Oxford Handbook of Witchcraft in Early Modern Europe and Colonial America 
>> https://books.google.com.br/books?isbn=0191648841 

>> https://books.google.com.br/books?isbn=1619020785 


95 teses na porta de uma Igreja 12 teses na ponta da enxada





Em 1524 o campesinato alemão organizado publicou 12 teses com suas reivindicações que considerava estar no âmbito das reformas necessárias, também a reforma religiosa. O manifesto reivindicava:
1) O direito de eleger seus próprios pastores / líderes
2) Garantir que a comunidade controlava os recursos: apoiar os pastores, os pobres e as situações de necessidade;
3) A libertação dos servos, já que todos os seres humanos foram redimidos através do sangue de Cristo
4) Liberdade para caçar e pescar
5) O direito de cortar lenha na floresta para uso doméstico
6) Restrição de serviços obrigatórios
7) Pagamento por trabalho extra do que estava estipulado no contrato
8) Redução do aluguel
9) Eliminação de punições arbitrárias
10) Restituição à comunidade de pastagens e campos que lhes foram retirados
11) Abolir o imposto de herança, porque as viúvas e órfãos são roubados de sua herança
12) Todos esses itens devem ser examinados com base nas Escrituras e se algo tem que ser corrigido será.[1]
Era isso. Tudo justo e simples. Mas os príncipes alemães não estavam dispostos a negociar. Lutero também não. E assim começou a guerra camponesa. Animados por uma minoria de teólogos e pastores reformados a guerra camponesa não se conformava com a reforma superficial de uma Europa desigual, elitista e feudal.
Mais de 300.000 camponeses tomaram parte na revolução, muito mais do que qualquer rebelião popular naquela época. Ao todo, cerca de 100 mil pessoas morreram a maioria de camponeses.

1-      A Guerra Camponesa ainda não terminou… é verdade que a revolta camponesa alemã de 1524 não foi a primeira a ser reprimida e violentamente dominada; o novo foi a consolidação de um discurso teológico que legitimou não só a autoridade dos príncipes, mas legitimou a propriedade privada como elemento constitutivo da hierarquia divina: igreja, estado e casa. Em nome dessa ordem Lutero chamou os camponeses de cachorro e palha, apoiou a violência e o massacre de mais de 100 mil camponeses.
2-      Mas esta guerra ainda não terminou! Ela fazia parte de um quadro maior de mudanças que tinha na agricultura sua origem e no estatuto da propriedade sua base fundamental; expulsos, os camponeses de toda Europa assumem o caminho da migração para o novo mundo fugindo das horrorosas guerras religiosas entre protestantes e católicos romanos, fugindo da fome, da doença e da expropriação; não havia lugar para estes milhões no capitalismo em formação;
3-      A terra não era uma questão secundária nem a guerra camponesa uma crise colateral. A repressão e a demonização dos camponeses pelos reformadores tiveram e têm custos pesados para as teologias protestantes, em especial na sua capacidade de entender os últimos 500 anos e seu metabolismo do sistema-mundo fora do interesse teológico ou institucional em si. O campesinato que encheu os navios e atravessou o Atlântico têm a seu favor os vínculos religiosos – católicos ou reformados – e entram na América como território extendido de seu mundo particular: o que não havia para os milhões na Europa a América vai oferecer: terra! A guerra camponesa atravessa o Atlântico norte e sul e vai se esparramar pelo novo mundo. Derrotados no velho mundo vão derrotar povos originários nas Américas protegidos pelo sistema-mundo do cristianismo que confere a estas populações deslocadas um lugar de destaque em sua estratégia de dominação: possuir a terra!
4-      Os nativos e os modos de vida do local vão ser destruídos e destituídos; a guerra camponesa encontra sua outra cara na invisibilidade do lugar e sua gente; a expansão econômica e militar da europa cristã – mesmo com suas diferenças – resolveu sua questão agrária na transferência de milhões de sem terras pobres para outro território; em troca do acesso à terra estes milhões ofereciam o volume necessário de presença para se opor e negar as populações locais. A guerra camponesa encontra sua cara indígena!
5-      “Quando os europeus conquistaram os trópicos, eles puseram em prática as terras e suas cercas. Confiscaram a melhor terra. Eles tribalizaram e escravizaram os povos nativos, forçando-os a cultivar culturas comerciais para exportação. Essa violência massiva contra os povos nativos, a vida camponesa e a cultura rural moldou a agricultura industrializada.” [2]
6-      O mito mais querido do capitalismo é dizer dele mesmo que depende da ética de trabalho do mundo protestante, de sua frugalidade e capacidade de economizar. Mentira! Livros e mais livros foram produzidos nestes 500 anos para dizer da matriz ideológica do protestantismo como matriz do mundo industrial, tecnológico e berço dos modos de pensar e conhecer mais abrangentes e universais. Mentira! O protestantismo resolve sua disputa com o mundo católico, divide os territórios e suas influências e marcha soberano sobre o novo mundo com suas comunidades ávidas pela vida espiritual que se expressava no sucesso material. E os camponeses interditados na velha Europa vão ser promovidos a colonizadores no novo mundo as custas de extração excessiva de recursos que vão bancar o processo de industrialização e ao mesmo tempo a inviabilização da resistência dos povos originários.
7-      “A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco.”[3]
8-      O que estava em disputa nos difíceis tempos da Reforma Protestante... não eram somente ideias religiosas, mas eram formas distintas de grupos distintos exercerem poder sobre os modos econômicos e as duas formas básicas de produção da vida: o acesso à terra (água, madeira, animais, minérios, alimentos, etc) e  o sistema de trabalho. Os fortes debates religiosos estruturam e são estruturados por estas mudanças e enfrentamentos na Europa do século XVI. A importância da religião nesse mundo é inegável assim como inegável também é a importância da terra e posse da terra nas formas de organização dos poderes da época.
9-      Ainda hoje o protestantismo entre nós se cala diante da guerra camponesa insistente, se identifica com a propriedade privada da terra e não é capaz de ouvir e dialogar com as lutas por terra e território de povos tradicionais. Depois de 500 anos as 12 teses do campesinato continuam como desafio dramático para a teologia e a pastoral. Como na poesia de Pedro Casaldáliga:

—Com a força dos braços lavramos a terra
cortamos a cana, amarga doçura na mesa dos brancos.
— Com a força dos braços cavamos a terra,
colhemos o ouro que hoje recobre a igreja dos brancos.
—Com a força dos braços, o grito entre os dentes,
a alma em pedaços, erguemos impérios,
fizemos a América dos filhos dos brancos!



[1] e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/download/1125/925
[3] Karl Marx, O Capital, Volume I, Tomo 2 (São Paulo: Abril Cultural, 1984), p. 285.













julho 23, 2017

do querer bem & os buracos sagrados


Corpo, sexualidade, afetividade
- Palestra proferida no dia 03/09/2015, no período noturno, pela
 Profª Dra. Nancy Cardoso, transcrita pelo
 acadêmico Erick Dorff Schmitz -


                   Introdução

Para permanecermos vivos nós precisamos de energia, mas para permanecermos vivos nós precisamos gastar energia, e tudo se dá em trocas constantes de energia. Para respirar, nós trocamos o ar sujo com ar limpo, além de respirar nós precisamos comer, beber, de abrigo... São essas questões e trocas concretas como o ar, alimento, água que nós precisamos para fazer funcionar essa coisa incrível que é o nosso corpo. Nós só pensamos no nosso corpo quando ele dói, quando vem uma dor forte ou uma privação, se não, na maioria do tempo não pensamos em nosso corpo.
Essas trocas são pessoais e sociais, por isso quando eu falo corpo, estou entendendo o corpo pessoal, o corpo social e o corpo do mundo, essas três dimensões tem que estar articuladas quando falo sobre corpo e corporeidade. O meu corpo só é corpo em relação ao corpo social e em relação ao corpo do mundo. Se não houver uma relação de perguntas e respostas, de entradas e saídas do meu corpo com o corpo social, a vida não é vivida.

A relação do corpo pessoal com o corpo social

Nós fazemos o tempo todo intervenções no corpo do mundo, respirando, comendo, bebendo, etc. A minha boca precisa trazer o mundo para dentro, eu preciso comer o mundo, aproximar o mundo de mim. Crescemos no grupo social, depois escolhemos o grupo social que viveremos e esse grupo tem mecanismos de aproximar o meu corpo do corpo do mundo, esse é um aprendizado que fazemos na família, na escola, na igreja, com as pessoas que convivemos. São mecanismos para continuar vivos. Viver é basicamente isso e é tudo isso. Essa relação do corpo pessoal, com o corpo social é muito boa. E “Deus viu que era bom”.
Mas nessa relação, por exemplo, a água está lá e minha sede está aqui, por isso, na história da civilização o ser humano desenvolveu técnicas de aproximar essa água para perto do meu corpo. Essa foi uma revolução que nos deixou mal acostumados a acessar o corpo do mundo e matar a sede. Essas resoluções se dão nas formas de trabalho. É no trabalho, na tecnologia e na criatividade que os seres humanos fazem essa aproximação para responder aos desejos, as vontades e as necessidades.
O trabalho, a tecnologia, a arte, são formas que nós recebemos no grupo social e vamos vendo de que maneira pode ser melhorado e modificado. Por exemplo, a água, que foi sequestrada na garrafa, e cada vez mais as empresas detém esse recurso e lucram com isso; nós acolhemos essas tecnologias ou dizemos que é indigno. Isso é fundamental para discutir corpo.
 Precisamos falar de certas materialidades, que já estamos tão acostumados, que precisamos desacostumar, ou desconstruir algumas dessas resoluções que são repostas ao corpo pessoal, ao corpo social e ao corpo do mundo. Essas trocas do corpo pessoal e do corpo social produzem dejetos, lixos, e precisamos resolver isso também. Mas isso não está resolvido e nos acostumamos. Consumir produz energia; para viver eu preciso de ar, água, comida, roupa, limpeza, moradia; todas essas coisas são necessárias para que os corpos tenham condição de viver como gente.

Teologia e materialidade

Os corpos estão envolvidos por essa trama de relações de produzir as relações da vida material. Uma teologia que quer pensar o corpo está aí! E todas essas questões arranham os corpos das pessoas, dos idosos, das crianças, etc. e arranham de forma desigual, pois nem todos participam desse corpo social de forma igualitária. Os corpos vão definir a classe social, a raça e a participação do corpo no corpo social. Viver é relação, são os corpos que vivem, e esses corpos precisam se relacionar entre si para viver no corpo do mundo. Infelizmente, a grande maioria, dos pobres, dos negros, das mulheres, não tem acesso ao corpo do mundo. Por isso não podemos fazer uma teologia do corpo de forma universal, não existe corpo universal, existem corpos concretos, e isto exige na teologia tratar com as materialidades.
E entre as trocas materiais, as formas de estar vivo, está também o sexo. Aliás, todas essas formas de estar vivo entram pelos buracos maravilhosos do nosso corpo. O que conta no nosso corpo não são as partes densas, que são boas também, mas são os orifícios. São todos esses orifícios que nos fazem estar vivos, que estabelecem as relações do meu corpo com outro corpo, com o corpo social, com o corpo do mundo. É por essas partes abertas que a vida entra e sai, sai e entra. Essas relações com o corpo social, com o corpo do mundo e com o corpo do outros tem mediações.
A teologia esta aí para complicar, “desexplicar”, criar o estranhamento. A teologia não explica nada, os teólogos fazem confusão, polêmica. E viver no corpo social causa esse estranhamento que provém dos buracos sagrados, que vêm de Deus.


Desejos e vontades

Quando falamos de corpo temos que analisar todas essas formas de comer, de mexer, de respirar, de beber, de dormir, etc. Mas o corpo humano não é só essas necessidades, é também desejo e vontade. Na relação do corpo pessoal com o corpo do mundo há desejo e há vontade. Os animais também tem necessidades, mas eles possuem memória biológica e eles têm como resolver essas questões do corpo. O ser humano não é só memória biológica; nós também lembramos como nossos pais resolveram essas questões da vida. Os seres humanos tem também memória social, pelo fato de ver e conviver com a família e com os grupos, e ali aprender como resolver os problemas. Porém, nós podemos alterar isso e fazer diferente. A arte, o trabalho, etc. são ferramentas que o corpo pessoal tem para interagir e modificar o corpo social e a memória social. O ser humano tem memória social, e pode modificar o que aí está.
Necessidade, desejo e vontade existem para viver, para comer e para fazer sexo. A questão da sexualidade é desejo, necessidade e vontade. É descobrir como se dá a relação do meu corpo com o outro corpo. No sexo eu deixo que o outro chegue perto de mim definitivamente. Há sexo bom, e há sexo ruim. Há sexo que é obrigação, que é comércio, que é estupro. Assim como há formas sociais de resolver questões de comida, de beber, de sono, há também formas de resolver questões de sexo. É dar e receber. O sexo é uma forma de produzir energia e gastar energia, e é uma tarefa do grupo social também, pois influi na população, no grupo social, etc. O sexo serve também para resolver questões de reposição populacional, que já pode ser feita de maneira artificial, e é uma questão também para reflexão teológica.
Comida não é só necessidade, mas também vontade e desejo, então é arte. Há maneiras de se vestir, de resolver as questões da casa e de sexualidade também; há maneiras de resolver questões de grupo, mas também é vontade e desejo. E assim como nas soluções referentes à               água e à comida há formas opressivas, também no sexo acontece a mesma coisa: culturalmente as mulheres sofrem mais com arranjos matrimonias e sexuais ruins. Isso é perverso para as mulheres e para os homens. Deve haver um acordo de amor, para ter satisfação a ser partilhada, do contrário, no corpo social se pode ter formas diversificadas de escravidão e de opressão.


Deus quando veio morar definitivamente perto de nós, quis ficar definitivamente perto de nós, por isso o Verbo se fez carne. É extremamente sensual e erótico esse desejo de Deus por nós. Deus, o divino, se fez carne e de forma concreta no menino. O Natal é altamente erótico, a Páscoa é ressurreição da carne, é vida que continua. Os cultos neopentecostais e carismáticos colocam o erotismo na relação com o sagrado, mas não o colocam na relação com o corpo social e o corpo do mundo, o resto do mundo não importa. Nossa teologia é uma teologia de corpo, e a teologia da libertação entendeu isso, porém alguns teólogos se cansaram, pois não é fácil afirmar o totalmente divino no totalmente humano.

A proposta de Jesus

Nos evangelhos há muita comida e há muitos corpos doentes; há muitas andanças;  o evangelho transpira essa corporeidade. Só não há sexo nos evangelhos, nem há uma família inteira, nem mesmo José, Maria e Jesus. Há fragmentos de grupos humanos, o que expressa a realidade de opressão de sistemas políticos com suas vítimas: pessoas enlouquecidas, com fome, doentes... E daí surge a proposta de Jesus.
Recuperar as relações é urgente para Jesus, e aí entra a comida. Também a família entra aqui. Contra a família patriarcal tradicional Jesus vai propor outra família: minha mãe e meus irmãos são aqueles que fazem a vontade do Pai. A proposta de Jesus é essa família ampliada, é essa outra subjetividade, onde ninguém vai ficar com fome ou sozinho. No Reino de Deus Jesus projeta novas subjetividades e novas formas das pessoas se relacionarem consigo mesmas, com a sociedade e com o corpo do mundo.
O Evangelho de Mateus 15 dialoga diretamente com o Levítico que mostra claramente a relação do ser humano com a comida, sexo e saúde. Mas a proposta do Levítico é controlar a comida, o sexo e a saúde a partir do altar. 

Em resposta ao Levítico, Jesus nos evangelhos conversa com os corpos pessoais e sociais e propõe uma nova subjetividade e afetividade, contrária a do Antigo Testamento. No Levítico, a comida, o sexo e a saúde passam pelo poder do altar e do sacerdote que exercerá um controle sobre o corpo pessoal e o corpo social. O altar vai ter a função de disciplinar o corpo. O Evangelho vai refletir essas questões corporais e oferecer uma revolução social. Há uma questão cristológica muito forte na questão da comida, do sexo e da saúde. O Evangelho de Jesus recupera a máxima que também está no Levítico, dando-lhe o verdadeiro sentido: amar o próximo como a si mesmo.


Dra. Nancy Cardoso.
A Bíblia não é plana: é pluri-dimensional. A Bíblia não é linear... nem circular: é acontecimento. Qualquer leitura fundamentalista paralisa a “palavra de Deus” que precisa ser lida na Bíblia e na Vida como simultaneidade de tempo e espaço. Quando estudamos a Bíblia um texto remete a outro texto e capítulos e versículos organizam a busca tornando possível ir abrindo janelas (Windows) sem perder o rastro da pesquisa. Assim o texto bíblico pede uma agilidade de uso de ferramentas de interpretação internas e externas ao texto bíblico, o que é parte do desafio e o compromisso de uma reflexão ecumênica e popular em que a Bíblia esteja entre outros livros amados, lidos e suados.

roteiros de reinvenção da família no evangelho de Marcos




A família no evangelho de Marcos está e não está, é e não é importante. Sempre presente, mas sem definir o principal das relações que movimentam o Evangelho.
Vamos apontar alguns textos e fazer a pergunta por esta presença ausente: de que maneira as relações familiares são apresentadas? Qual o papel/lugar dessas relações no desenvolvimento das narrativas do Evangelho?

1-      “primo” não é parente?
A primeira relação familiar já se apresenta no Evangelho de Marcos capítulo 1, vv. de 2 a 11: João Batista primo de Jesus.
Eis aí envio diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu caminho...
O texto de Marcos não aponta para a relação de parentesco entre Jesus e João Batista. O texto de Lucas faz a referência da relação familiar entre Isabel e Maria:
                                               E Isabel, tua parenta... (Lucas 1, 36)
O que vai explicar a relação entre Jesus e João vai ser a participação na missão de Deus: João vai ser apresentado com uma moldura de profecia (Malaquias 3,1) como meu mensageiro, voz do que clama no deserto. Sem qualquer indicação de ser parte da mesma parentela, o texto caracteriza João com os elementos da vida no deserto: vestes de pelo de camelo, cinto de couro e alimentando-se de gafanhotos e mel (Marcos 1, 6). Não há nenhuma indicação de que Jesus e João compartilhassem um mesmo estilo de vida o que poderia ser caracterizado como um habitus familiar.
A mensagem de João Batista é:
Após mim vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual eu não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias das sandálias. (Marcos 1,7)
Seria possível apontar para um processo significativo de adequação e subordinação das narrativas sobre João Batista aos ciclos narrativos de Jesus. Este processo obedeceria a uma lógica cronológica – João vem primeiro – e uma lógica de qualidade da ação no projeto de Deus – João prepara, Jesus realiza; João anuncia, Jesus atualiza; João batiza com água, Jesus com o Espírito Santo; João batiza, Jesus é o batizado (Marcos 1, 8). Deste modo o texto de Marcos reconhece a importância do movimento de João Batista para a criação das condições para o movimento de Jesus. O processo de ajuste das narrativas vai ser pleno com a informação da prisão de João:
Depois de João ter sido, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus. (Marcos 1, 14)
Esta breve análise dos textos deixa ver que o vínculo familiar não é, em nenhuma hipótese, utilizado pelo Evangelho de Marcos para consolidar o ritmo inicial de sua narrativa. João e Jesus se aproximam a partir do que interessa para a apresentação da Boa Nova.
Vamos utilizar esta mesma chave de leitura para estudar outros textos do Evangelho de Marcos. Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

2-      pescadores que são irmãos? irmãos que são pescadores?

Caminhando junto ao mar da Galiléia, viu os irmãos Simão e André, que lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhe Jesus: vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homem. Então eles deixaram imediatamente as redes, e o seguiram. Pouco mais adiante, viu Tiago filho de Zebedeu, e João seu irmão, que estavam no barco consertando as redes. E logo os chamou. Deixando eles no barco a seu pai Zebedeu com os empregados, seguiram após Jesus. (Marcos 1, 16 a 20)

Roteiro de Leitura:
1-      identifique no texto as relações familiares
2-      identifique no texto as relações de trabalho
3-      identifique o cenário (lugar e coisas)
4-      como vocês caracterizariam a relação entre trabalho e família?
5-      o que vai ser deixado para trás? o que Jesus pede deles?
6-      no segundo chamado o pai Zebedeu não vai ser incluído no chamado e também vai ser deixado: o que isso significa no chamado de Jesus?
7-      no chamado para o discipulado o que é mais significativo: o fato de serem irmãos? o fato de serem pescadores? o fato de estarem dispostos a se comprometer?






3-      a sogra de Pedro é mãe de quem?

E, saindo eles da sinagoga, foram com Tiago e João, diretamente para a casa de Simão e André. A sogra de Simão achava-se acamada, com febre; e logo lhe falaram a respeito dela. Então aproximando-se, tomou-a pela mão; e a febre a deixou, passando ela a servi-los. (Marcos 1, 29 a 31)

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      quem fala sobre a febre as sogra de Simão? quem são eles que falaram?
4-      como vocês avaliam as relações entre estes personagens?
5-      qual a resposta da mulher depois do encontro com Jesus?
6-      a “casa” é um lugar só para a família?
7-      o serviço na casa é só para os familiares?






4-      discípulos: filhos de... irmãos de... (Marcos 3, 14 a 19)
Depois subiu ao monte e chamou os que ele mesmo quis, e vieram para junto dele. Então designou doze para estarem com ele e para os enviar a pregar, e a exercer a autoridade de expelir demônios. Eis os doze que designou: Simão a quem acrescentou o nome de Pedro; Tiago filho de Zebedeu e João seu irmão, aos quais deu o nome de Boanerges, que quer dizer filhos do trovão; André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o Zelote, e Judas Iscariotes, que foi também quem o traiu.

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      qual o objetivo desse texto? quais as tarefas atribuídas?
4-      que relações familiares são apresentadas? de que personagens?
5-      quem não tem referência familiar apresentada?
6-      quem tem seu nome trocado? qual seria o motivo?
7-      de Simão sabemos que é Zelote; de Judas temos a informação de que foi o traidor: o que estas informações nos dizem sobre o grupo convocado?
8-      como avaliar o papel da família na convocação do discipulado?




5-      a família de Jesus (Marcos 3, 31 a 35)
Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos, e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele, e lhe disseram: olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então ele lhes respondeu, dizendo: quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.
Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      compare com Lucas 8, 19 a 21: alguma informação diferente?
4-      como entender o chamado da família de Jesus?
5-      o que Jesus estava fazendo e com quem?
6-      como entender a resposta de Jesus?
7-      Jesus foi desrespeitoso com sua família?
8-      qual compreensão de família Jesus apresenta neste texto?





6-      não é este o filho de Maria? (Marcos 6, 1 a 6)

Tendo Jesus partido dali, foi para a sua terra e os seus discípulos o acompanharam. Chegando o sábado passou a ensinar na sinagoga; e muitos, ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: donde vêm a este estas cousas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas mãos? Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e Simão? e não vivem aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se nele. Jesus, porém, lhes disse: não há profeta sem honra senão na sua terra, entre seus parentes e na sua casa. Não pode fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos.
Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
1-      identifique os personagens
2-      identifique o cenário
3-      como entender os comentários sobre Jesus? o que dizem dele?
4-      como as questões familiares são utilizadas nesses comentários?
5-      por que as pessoas se escandalizavam? com o que?
6-      como entender a resposta de Jesus?
7-      como Jesus relaciona a profecia e a honra com a “terra”, os “parentes” e “sua casa”?
8-      como entender a informação de que Jesus “não pode fazer nenhum milagre” na região de seus familiares?



7-      nenhum pai (Marcos 10, 23 a 31)
Então Jesus, olhando ao redor, disse aos seus discípulos: quão difícilmente entrarão no reino de Deus os que têm riqueza. Os discípulos estranharam estas palavras; mas Jesus insistiu em dizer-lhes: Filhos, quão difícil é (para os que confiam nas riquezas) entrar no reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus. Eles ficaram sobremodo maravilhados, dizendo entre si: então quem pode ser salvo? Jesus porém fitando neles o olhar disse: para os homens é impossível; contudo não para Deus, porque para Deus tudo é possível. Então Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. Tornou Jesus: em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho que não receba, já no presente, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos com perseguições e no mundo por vir a vida eterna.

Faça a leitura do texto e, se possível, compare algumas traduções disponíveis. Logo depois peça ao grupo para recontar o texto com outras palavras. Volte para o texto bíblico e leia novamente. Anime o grupo a trabalhar com o roteiro de perguntas.

Roteiro de Leitura:
                Da 1ª. parte: versículos 23 a 28
1-      identifique o assunto principal da fala de Jesus
2-      que personagens e coisas são apresentadas como ilustração?
3-      como os discípulos reagem à fala de Jesus?
4-      por que Jesus insiste no mesmo tema?
5-      qual a reação de Pedro?

Da 2ª. parte: versículos 29 a 31
1-      identifique o que precisa ser deixado de acordo com a fala de Jesus (faça uma lista num papel grande dividido em 2 partes)
2-      o que exige o “deixar”? que amor é esse?
3-      o que Jesus aponta para ser “recebido”? (anote cada item ao lado da lista já feita)
4-      o que é “deixado” que não vai ser “recebido”? como entender isso?
5-      por que este projeto implica em perseguições?

6-      que modelo de família e de sociedade aparece neste texto?