novembro 11, 2008

BLASFÊMIA Cecília Meireles




SENHORA DA VÁRZEA, Senhora da Serra!
pelos teus santuários, com cinza na testa,
irei arrastando os joelhos e a reza; subindo e descendo ladeiras de pedra, sustentando andores, carregando velas, para me livrares,


Senhora, da lepra! Senhora da Várzea, Senhora da Serra!
terás mais altares, terás mais capelas, sinos de mais bronze, mais flores, mais festas, mais círios, mais rendas, e de ouro coberta brilharás, Senhora,
de fazer inveja a todas as santas que há na glória eterna!
Matei minha filha: mas era tão bela!




Roubei cinco noivas: mas o amor não cega?
E Deus não perdoaa quem se confessa?
Ergui seis igrejas: nenhuma te alegra?
Todas em memória dessas seis donzelas que por mim perderam seu corpo, na terra...
Meus crimes, paguei-os com brincos, fivelas, coroas de prata,
e mais que te dera, para me livrares,


Senhora, da lepra! Senhora da Várzea! Senhora da Serra!
pede-me por sonhos: darei quanto peças - mais ouro, mais prata, mais luzes, mais telas.
Maior que os meus crimes é a minha promessa.
Vejo com os meus olhos como degenera a carne que tive.
Por que me desprezas, Senhora da Várzea?
Do mal que me cerca, por que não me livras, Senhora da Serra?
Mão com que matei, hoje se me entreva.S
into desmanchada em cinza funestaa boca de outrora.
E a língua me emperra aquela peçonha de que seis donzelas
receberam morte, lindas e sinceras.


Senhora da Várzea! Senhora da Serra!
Paguei meus pecados,- e não me libertas?
Calcaste dragões, dominaste feras, e ao mal que me oprime, Senhora, me entregas?
Por que não me salvas? Que ordenas? Que esperas?
Ah, santa insensível, não sofres, não pecas!

Senhora da Várzea! Senhora da Serra!
Devolve o ouro e a prata das minhas ofertas!
Que o vento arrebente portas e janelas das tuas igrejas!
E fiquem nas trevas ou sejam levados pelas labaredas altares queimados e naves desertas!
Caiam no teu peitomais agudas setas! Arda em brasa o ramo que nas mãos carregas!
Nunca mais se arrastem meus joelhos nas pedras, nem a minha boca suspire mais rezas!
Nunca mais andores, nem círios nem festas! Dei-te seis igrejas: que me deste? Lepra!

Senhora da Várzea! Senhora da Serra!
Grito aos quatro ventos do céu e da terra:
Conheci seis virgens: nenhuma severa como tu, nem fria, serena e perversa!
Seis virgens matei! Sou morto por esta! Dei-lhe seda e ouro que às outras não dera!
Soluçar de joelhos,- só diante dela! Morro impenitente, fazendo-lhe guerra.
Que o fogo profundo lamba a minha lepra!
Seja eu todo cinza,no tempo dispersa, negra cinza de ódio que te envolve e nega,
Senhora da Várzea, Senhora da Serra, ó virgem das virgens, sem piedade - e ETERNA!

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