julho 23, 2017

O riso da escrava trácia e a lida com o mundo

Viver é relação.  Meu corpo em relação com o corpo do mundo e o corpo social: diversas e simultâneas relações de estar vivo. E o corpo é esta rede de poros, estas aberturas famintas e úmidas, que precisa de pedaços do mundo na forma de ar, comida, água para se refazer. E o corpo é esta rede de poros, estas aberturas famintas e úmidas na relação com outros corpos nos corpo social nas formas do trabalho e seus modos de produção, reprodução, distribuição e consumo; nas formas culturais e estéticas, nos modos de desejo e nas variadíssimas possibilidades de prazer. Ou dor. Perigo.
As relações pacificadas no discurso científico, são regulares até não serem mais, repetem repetem entram penetram expelem gotejam
A ciência descreve como se pudesse reduzir os sustos, o inesperado, tudo gira igual até ser diferente, roça, toca, atrita... reduz! mas não controla. Se controlasse, já não seria ciência.

As sementes em sua lida, se modificam, se alteram biodiversidade, pluri invenção genética. O mundo está vivo e pulsa, deseja entre liberdade e necessidade.
Este conjunto de perguntas e respostas, estes diálogos ordinários de chuva-sol-terra & semente, a comida no prato e os arranjos de junto e separado da vida em sociedade, famílias e coletivos, bandos de ser feliz. Ou tentar.

Quando a escrava trácia riu de Tales de Mileto[1]  – que observava atentamente o céu e as estrelas e, descuidado, caiu num poço de água – riu de que? Seria um riso de depreciação da investigação cósmica do filósofo? Não. Ela riu o riso das trabalhadoras vinculadas ao mundo da necessidade e todas as relações com todo o mundo habitado. “Ele – o filósofo - quería saber o que se passava no céu, mas ele não quería ver o que estaba adiante de seus próprios pés.”[2]


Quero aproveitar o riso da escrava/trabalhadora como um lugar possível para uma reflexão sob os nossos pés latinoamericanos e todo o mundo habitado.
Palavras vizinhas se atritam aqui: economia, ecologia, ecumenismo. As três compartilham o oikos: unidade básica social (casa, mas também mundo). O uso ampliado e extensivo de oikos de modo a fazer caber a “casa” e o “mundo” tem sido negligenciado. A palavra, que quer dizer as duas coisas (casa e mundo), o diz assim por fazer caber uma na outra, isto é, as medidas do mundo todo se mostram num lugar de vida habitat. O metabolismo dos espaços de viver - sem desconhecer a escala e as variações - aproxima “o mundo da casa” e “a casa do mundo” revelando as relações de relações que fazem a vida funcionar. Neste sentido o olhar sobre o oikos não pode ser tão grande que afaste a vida cotidiana dos viventes de sua compreensão. Viventes aqui são um montón de cosas santas mescladas con cosas humanas como te explico . . . cosas mundanas - da música de Mecedes Sosa.
Na imagem da escrava trácia, o mundo seu da necessidade d´água e o mundo do filósofo – o céu sobre a cabeça, condensação de estrelas – são acontecimentos simultâneos e entretecidos de uma mesma vida. O que cria ruído não é a risada da escrava, mas as tantas formas de hierarquia que se levantam entre “ela” e “ele”, a hierarquia entre o trato da vida doméstica e o trato da vida do cosmos: esta hierarquia sim a dimensão política que estrutura o “oikos” – casa e mundo: sexismo, racismo, desigualdade social.
Coisas humanas: de viver em sociedade. Coisas mundanas: de viver na vida do mundo. Tudo-tudo um “amontoado” de coisas santas, a simultaneidade de viver o corpo-meu no corpo social, corpo do mundo. Esgotadas das falas científicas e filosóficas que segmentam e hierarquizam o conhecimento do oikos, e cansadas dos modismos neo-coloniais que queriam proibir as “grandes narrativas” um pensamento crítico latino-americano têm diante de si o desafio de apurar toda a sua paixão libertadora articulando as coisas mundanas – humanas – santas como mescla vital: economia – ecologia – ecumenismo.
Nas palavras de Ivone Gebara:
“Os problemas sociais imediatos, aqueles que nossos olhos podem ver e nossos corpos sentir, são esquecidos ou tornados coisa banal. Para muitos, isso não é ecologia! A ecologia social não tem mais espaço público significativo. Aliás, não se percebe a injustiça social como um problema ecológico, ou seja, como um problema que tem a ver com a “oikia”, a nossa casa comum, origem da palavra e da ciência ecológica[3]


São assim três formas de estar no mundo e organizar a vida no mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender essas relações suas lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. Propomos três desafios antigos e novos para nós mesm@s no pensamento crítico latino-americano: o enfrentamento dos fundamentalismos econômico (capitalismo), social (racismo e sexismo) e religioso como expressão de uma práxis libertadora.

Do riso e das lutas na América Latina:

            Nas lidas dos movimentos sociais por terra e território na América Latina todas estas possibilidades atravessam momentos e propostas evidenciando a centralidade crescente da questão ecológica e as dificuldades concretas de articular esta questão com outras pautas vitais da vida plural do campesinato, populações tradicionais e indígenas latino-americanos. De modo especial as complexas questões que se organizam em torno da pauta da reforma agrária precisam ser consideradas. Este lugar “do povo da terra” se parece ao riso da escrava/mulher trácia: não despreza o debate acadêmico e científico, mas afirma o chão da vida do povo pobre com/na natureza como lugar de reflexão e mística que cria os critérios de aproximação ou não dos modos ecológicos/econômicos disponíveis.
“É por isso que milhares de camponeses, pescadores, povos nativos, mulheres, pastores, trabalhadores rurais sem terra e outras organizações da sociedade civil mobilizaram-se em massa durante a conferência. Exigimos uma nova visão de reforma agrária.
O movimento internacional de camponeses La Via Campesina acredita que uma reforma agrária genuína oferece um modelo alternativo importante de desenvolvimento. Isto inclui arrancar o controle sobre a terra, a água, os recursos marítimos, as sementes e outros recursos naturais das garras dos que utilizam essas vantagens para aumentar seus próprio lucros, e dá-lo ao povo da terra.”26

            Os povos da terra e territórios se enfrentam com as garras mais afiadas do capitalismo explorador e depredador, e é nas terras e territórios dessas populações a nível mundial que sistemas de vida, florestas e águas continuam intactas ou em preservação de resistência. Não considerar a demanda desses segmentos sociais em suas relações concretas com o corpo do mundo a partir de qualquer abordagem filosófica, torna a ecologia/terra um apetrecho das políticas de manutenção dos poderes constituídos e suas violências institucionais.

            Para os povos da terra e territórios a questão da reforma agrária pontua uma questão fundamental e imprescindível: o enfrentamento e desmontagem das estruturas de propriedade privada da terra, tanto na forma do modelo agrário como do modelo agrícola. Para os movimentos sociais latino-americanos esta é a questão central de toda e qualquer conversa sobre ecologia.

“A alteração mais importante imposta pelo sistema-mundo moderno foi o estabelecimento de uma base legal sistemática para o chamado direito de propriedade da terra. Por outras palavras, criaram-se regras que determinavam que uma pessoa ou entidade empresarial podia “possuir” terra diretamente. A posse de terra – ou seja, os direitos de propriedade – significava que se podia utilizar a terra da forma que se quisesse, e que só se estava obrigado às limitações específicas impostas pelas leis do Estado soberano dentro do qual esta unidade de terra se situava. A terra sobre a qual uma pessoa tinha direito de propriedade, era terra que podia legar aos seus herdeiros ou vender a terceiros ou entidades empresariais”27

            Qualquer formatação, formulação de um pensamento crítico na América Latina (África? Àsia?) precisa se colocar a questão da propriedade e suas ordenações como mecanismo estruturante de toda a desigualdade e toda a voracidade que destrói vidas. Humanas. Vidas de todos os seres viventes. Destruição da Vida. Que sustenta o Estado e sua subserviência aos modelos depredadores da terra, dos viventes, dos seres – o capitalismo.
Tomando esta perspectiva como lugar de avaliação do nosso tempo, precisamos conhecer as formas do dizer, do viver e do lutar do povo latino-americano por terra e território. Problemas de léxico e contornos filosóficos precisam ser subordinados? – reencantados – melhor - aos processos organizativos destas comunidades lembrando e insistindo que são estas, em especial na persistência das mulheres camponesas, indígenas e de comunidades tradicionais, que mantém ainda de pé territórios vivos e viventes, cobiçados pelo capitalismo do agronegócio, das mineradoras, madeireiras e das biopiratarias das indústrias de cosméticos e farmacêutica. Como na “Declaração de Surin”: Encontro Global da Via Campesina sobre Agroecologia e Sementes Camponesas28, em novembro de 2012.
“Também entendemos que a agroecologia é uma parte inerente à resposta global aos principais desafios que enfrentamos como humanidade. Em primeiro lugar, a agricultura em pequena escala pode alimentar e está alimentando à humanidade e pode solucionar a crise alimentar através da agroecologia e da diversidade.
Em segundo lugar, a agroecologia contribui para lutar contra a crise ambiental. Com a agroecologia e a diversidade, a agricultura camponesa esfria o planeta, mantendo o carbono no solo e proporcionando aos camponeses e à agricultura familiar os recursos necessários para ser resilientes (com capacidade de adaptar-se) às mudanças climáticas e ao aumento das catástrofes naturais. A agroecologia transforma a matriz energética e agrícola dependente do petróleo, uma parte fundamental das mudanças sistêmicas necessárias para frear as emissões.
Em terceiro lugar, a agroecologia reforça o bem comum e o coletivo. Ao mesmo tempo em que cria as condições para uma melhor qualidade de vida para as pessoas das zonas rurais e urbanas, a agroecologia, como pilar da soberania alimentar e popular, estabelece que a terra, a água, as sementes e os conhecimentos devem continuar sendo patrimônio dos povos a serviço da humanidade.
Através da agroecologia, transformaremos o modelo hegemônico de produção alimentar, permitindo a recuperação do ecossistema agrícola, restabelecendo o funcionamento do metabolismo natureza-sociedade e colhendo os produtos que alimentarão a humanidade. Como dizem os camponeses filipinos "Kabuhanan, Kalusugan, Kalikasan” (pela economia, pela saúde e pela natureza)”


O riso da mulher/escrava trácia insiste em ser lugar de discernimento e crítica das formas consagradas e legitimadas de saber, de política, de espiritualidade. Não se trata mais da abstrata “sociedade civil”. Trata-se de uma perspectiva de classe social, de gênero e de etnias que se afirmam e se empoderam recusando ao mesmo tempo a minoridade e subordinação da terra e seus seres e das mulheres, pobres e etnias. Os povos da terra e do território riem sua gargalhada pelos corredores e calçadas dos fóruns de debate sobre filosofia, economia, crise ambiental, climática, alimentar... todas as crises. E, riem: Kabuhanan, Kalusugan, Kalikasan”

Voltamos à escrava trácia e seu trabalho com o poço e seus equipamentos:
“Se se considerasse esta mulher em conjunção com a roda (una com ela) um coração da terra, ela operaria sobre o solo, pela via dos regos da água (veias e artérias do corpo/campo) uma acção regeneradora, terapêutica e profiláctica: ensinar-lhe-ia a respiração e a re-circulação de ar e água, sopro e líquido fertilizador, sangue e ânimo de um corpo terrestre que se deseja arejado, vivificado, saudável”

Voltar para este momento do riso da mulher da Trácia é procurar superar o exato momento em que o chamado “pensamento ocidental” preferiu romper a busca de um conhecimento orgânico e úmido quando recusou a mediação do riso da mulher. O texto do Teeteto apresenta esta recusa apontando a fragilidade inútil da mulher e do riso:

“A mesma coisa se pode dizer a todos os que passam a vida a filosofar. É certo que estes não conhecem parentes nem vizinhos, nem sabem o que eles fazem; sabem apenas se são homens ou criaturas de outra espécie; e põem toda a sua atenção a estudar e a descobrir o que é o homem, o que convém à sua natureza fazer ou suportar, o que o distingue dos outros seres. Compreendes, Teodoro, o que quero dizer?”29

            O riso da mulher não vai se sustentar por muito tempo nos argumentos do filósofo, que, por fim, conclui que o conhecimento não responde ao riso - ...não das escravas da Trácia, ou dos ignorantes, porque estes não se apercebem de nada...30. O elogio do conhecimento que não conhece nem parentes nem vizinhos nem muito menos criaturas de outras espécies e que se dedica a estudar “o homem” distinto dos outros seres aponta numa mesma reflexão a separação e a subordinação do homem filosófico sobre todos os outros seres e também sobre as mulheres/escravas.
...(o) filósofo, educado no seio da liberdade e da ociosidade, não deve ser censurado por parecer ingénuo e inútil em presença de trabalhos servis, porque não sabe, por exemplo, arrumar uma mala de viagem, temperar comida, ou dizer lisonjas. O outro é capaz de fazer tudo isso com habilidade e rapidez, mas não sabe usar o manto como um homem livre, compreender a harmonia do discurso, nem cantar a vida dos deuses e dos homens felizes.31

No riso da mulher trácia recuperamos um lugar de suspeita e crítica de um pensamento ocidental que se pensa universal e auto-suficiente na ruptura com o corpo das necessidades, o corpo social e o corpo do mundo e seus “outros seres”. 


A filosofia será da libertação se submergida nas lutas populares. A filosofia escutará no riso das trabalhadoras na busca por água seus motivos últimos e penúltimos: arrumar uma mala, temperar comida... conquistar o manto das gentes libertadas, compreender a harmonia de todo o mundo habitado e cantar a felicidade.

Nancy Cardoso Pereira
nancycpt@yahoo.com.br



[1] PLATÃO, Teeteto/Crátilo (172d – 176 a), tradução: Carlos Alberto Nunes / coordenação de Benedito Nunes. Belém: EDUFPA, 2001
[2] Ibid.
[3] GEBARA, Ivone, Justiça ecológica: limites e desafios, in: Tempo e Presença Digital, ano 5, n° 21, 2010, in: www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=400&cod_boletim=22&tipo=Cr%F4nica (acesso em 22/6/2014). Para a questão do ecossocialismo feminista, cf. PEREIRA, Nancy Cardoso. Remover pedras, plantar roseiras, fazer doces - por um ecossocialismo feminista. São Leopoldo: CEBI, 2009.
26 VIA CAMPESINA, Via Campesina Tempo para Reforma Agrária,Minga/Mutirão Informativa, in: http://movimientos.org/es/cloc/fororeformagraria/show_text.php3%3Fkey%3D6594 (acesso em 18/6/2014)
27 WALLERSTEIN, Immanuel, 2010. “Ecologia versus Direitos de Propriedade. A terra na economia-mundo capitalista”. JANUS.NET e-journalofInternationalRelations, N.º 1, Outono 2010janus.ual.pt/janus.net/pt/arquivo_pt/pt_vol1_n1/pt_vol1_n1_art1.html (acesso em 18/6/2014)
29 PLATÃO, Teeteto.
30 Ibid.
31 Ibid.



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