Viver é relação. Meu corpo em relação com o corpo do mundo e o
corpo social: diversas e simultâneas relações de estar vivo. E o corpo é esta
rede de poros, estas aberturas famintas e úmidas, que precisa de pedaços do
mundo na forma de ar, comida, água para se refazer. E o corpo é esta rede de
poros, estas aberturas famintas e úmidas na relação com outros corpos nos corpo
social nas formas do trabalho e seus modos de produção, reprodução,
distribuição e consumo; nas formas culturais e estéticas, nos modos de desejo e
nas variadíssimas possibilidades de prazer. Ou dor. Perigo.
As relações pacificadas
no discurso científico, são regulares até não serem mais, repetem repetem entram penetram expelem gotejam
A ciência descreve como
se pudesse reduzir os sustos, o inesperado, tudo gira igual até ser diferente,
roça, toca, atrita... reduz! mas não controla. Se controlasse, já não seria ciência.
As sementes em sua
lida, se modificam, se alteram biodiversidade, pluri invenção genética. O mundo
está vivo e pulsa, deseja entre liberdade e necessidade.
Este conjunto de
perguntas e respostas, estes diálogos ordinários de chuva-sol-terra &
semente, a comida no prato e os arranjos de junto e separado da vida em
sociedade, famílias e coletivos, bandos de ser feliz. Ou tentar.
Quando a escrava trácia riu de Tales de Mileto[1] –
que observava atentamente o céu e as estrelas e, descuidado, caiu num poço de água
– riu de que? Seria um riso de depreciação da investigação cósmica do filósofo?
Não. Ela riu o riso das trabalhadoras vinculadas ao mundo da necessidade e
todas as relações com todo o mundo habitado. “Ele – o filósofo - quería saber o que se passava no céu, mas ele não
quería ver o que estaba adiante de seus próprios pés.”[2]
Quero aproveitar o riso da escrava/trabalhadora
como um lugar possível para uma reflexão sob os nossos pés latinoamericanos e
todo o mundo habitado.
Palavras vizinhas se atritam aqui: economia, ecologia,
ecumenismo. As três compartilham o oikos:
unidade básica social (casa, mas também mundo). O uso ampliado e extensivo de oikos de modo a fazer caber a “casa” e o
“mundo” tem sido negligenciado. A palavra, que quer dizer as duas coisas (casa
e mundo), o diz assim por fazer caber uma na outra, isto é, as medidas do mundo
todo se mostram num lugar de vida habitat.
O metabolismo dos espaços de viver - sem desconhecer a escala e as
variações - aproxima “o mundo da casa” e “a casa do mundo” revelando as
relações de relações que fazem a vida funcionar. Neste sentido o olhar sobre o oikos não pode ser tão grande que afaste
a vida cotidiana dos viventes de sua compreensão. Viventes aqui são um montón de cosas santas mescladas con cosas
humanas como te explico . . . cosas mundanas - da música de Mecedes Sosa.
Na imagem da escrava trácia, o mundo seu da necessidade
d´água e o mundo do filósofo – o céu sobre a cabeça, condensação de estrelas –
são acontecimentos simultâneos e entretecidos de uma mesma vida. O que cria
ruído não é a risada da escrava, mas as tantas formas de hierarquia que se
levantam entre “ela” e “ele”, a hierarquia entre o trato da vida doméstica e o
trato da vida do cosmos: esta hierarquia sim a dimensão política que estrutura
o “oikos” – casa e mundo: sexismo, racismo, desigualdade social.
Coisas humanas: de viver em sociedade. Coisas mundanas: de
viver na vida do mundo. Tudo-tudo um “amontoado” de coisas santas, a
simultaneidade de viver o corpo-meu no corpo social, corpo do mundo. Esgotadas
das falas científicas e filosóficas que segmentam e hierarquizam o conhecimento
do oikos, e cansadas dos modismos
neo-coloniais que queriam proibir as “grandes
narrativas” um pensamento crítico latino-americano têm diante de si o
desafio de apurar toda a sua paixão libertadora articulando as coisas mundanas
– humanas – santas como mescla vital: economia – ecologia – ecumenismo.
Nas palavras de Ivone Gebara:
“Os problemas sociais imediatos, aqueles que nossos olhos podem ver e
nossos corpos sentir, são esquecidos ou tornados coisa banal. Para muitos, isso
não é ecologia! A ecologia social não tem mais espaço público significativo.
Aliás, não se percebe a injustiça social como um problema ecológico, ou seja,
como um problema que tem a ver com a “oikia”, a nossa casa comum, origem da
palavra e da ciência ecológica”[3]
São assim três formas de estar no mundo e organizar a vida no
mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida
na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender essas relações suas
lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e
subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. Propomos três desafios antigos e
novos para nós mesm@s no pensamento crítico latino-americano: o enfrentamento
dos fundamentalismos econômico (capitalismo), social (racismo e sexismo) e
religioso como expressão de uma práxis libertadora.
Do riso e das lutas na América Latina:
Nas
lidas dos movimentos sociais por terra e território na América Latina todas
estas possibilidades atravessam momentos e propostas evidenciando a
centralidade crescente da questão ecológica e as dificuldades concretas de
articular esta questão com outras pautas vitais da vida plural do campesinato,
populações tradicionais e indígenas latino-americanos. De modo especial as
complexas questões que se organizam em torno da pauta da reforma agrária
precisam ser consideradas. Este lugar “do povo da terra” se parece ao riso da
escrava/mulher trácia: não despreza o debate acadêmico e científico, mas afirma
o chão da vida do povo pobre com/na natureza como lugar de reflexão e mística
que cria os critérios de aproximação ou não dos modos ecológicos/econômicos
disponíveis.
“É por isso que milhares de camponeses, pescadores, povos nativos,
mulheres, pastores, trabalhadores rurais sem terra e outras organizações da
sociedade civil mobilizaram-se em massa durante a conferência. Exigimos uma
nova visão de reforma agrária.
O movimento internacional de camponeses La Via Campesina acredita que
uma reforma agrária genuína oferece um modelo alternativo importante de
desenvolvimento. Isto inclui arrancar o controle sobre a terra, a água, os
recursos marítimos, as sementes e outros recursos naturais das garras dos que
utilizam essas vantagens para aumentar seus próprio lucros, e dá-lo ao povo da
terra.”26
Os
povos da terra e territórios se enfrentam com as garras mais afiadas do
capitalismo explorador e depredador, e é nas terras e territórios dessas
populações a nível mundial que sistemas de vida, florestas e águas continuam
intactas ou em preservação de resistência. Não considerar a demanda desses
segmentos sociais em suas relações concretas com o corpo do mundo a partir de
qualquer abordagem filosófica, torna a ecologia/terra um apetrecho das
políticas de manutenção dos poderes constituídos e suas violências
institucionais.
Para os povos da terra e territórios
a questão da reforma agrária pontua uma questão fundamental e imprescindível: o
enfrentamento e desmontagem das estruturas de propriedade privada da terra,
tanto na forma do modelo agrário como do modelo agrícola. Para os movimentos
sociais latino-americanos esta é a questão central de toda e qualquer conversa
sobre ecologia.
“A alteração mais importante imposta pelo sistema-mundo moderno foi o
estabelecimento de uma base legal sistemática para o chamado direito de
propriedade da terra. Por outras palavras, criaram-se regras que determinavam
que uma pessoa ou entidade empresarial podia “possuir” terra diretamente. A
posse de terra – ou seja, os direitos de propriedade – significava que se podia
utilizar a terra da forma que se quisesse, e que só se estava obrigado às
limitações específicas impostas pelas leis do Estado soberano dentro do qual
esta unidade de terra se situava. A terra sobre a qual uma pessoa tinha direito
de propriedade, era terra que podia legar aos seus herdeiros ou vender a
terceiros ou entidades empresariais”27
Qualquer formatação, formulação de
um pensamento crítico na América Latina (África? Àsia?) precisa se colocar a
questão da propriedade e suas ordenações como mecanismo estruturante de toda a
desigualdade e toda a voracidade que destrói vidas. Humanas. Vidas de todos os
seres viventes. Destruição da Vida. Que sustenta o Estado e sua subserviência
aos modelos depredadores da terra, dos viventes, dos seres – o capitalismo.
Tomando esta perspectiva como lugar de avaliação do nosso
tempo, precisamos conhecer as formas do dizer, do viver e do lutar do povo
latino-americano por terra e território. Problemas de léxico e contornos
filosóficos precisam ser subordinados? – reencantados – melhor - aos processos
organizativos destas comunidades lembrando e insistindo que são estas, em
especial na persistência das mulheres camponesas, indígenas e de comunidades
tradicionais, que mantém ainda de pé territórios vivos e viventes, cobiçados
pelo capitalismo do agronegócio, das mineradoras, madeireiras e das biopiratarias
das indústrias de cosméticos e farmacêutica. Como na “Declaração de Surin”:
Encontro Global da Via Campesina sobre Agroecologia e Sementes Camponesas28, em novembro de 2012.
“Também entendemos que a agroecologia é uma parte inerente à resposta
global aos principais desafios que enfrentamos como humanidade. Em primeiro
lugar, a agricultura em pequena escala pode alimentar e está alimentando à
humanidade e pode solucionar a crise alimentar através da agroecologia e da
diversidade.
Em segundo lugar, a agroecologia contribui para lutar contra a crise
ambiental. Com a agroecologia e a diversidade, a agricultura camponesa esfria o
planeta, mantendo o carbono no solo e proporcionando aos camponeses e à
agricultura familiar os recursos necessários para ser resilientes (com
capacidade de adaptar-se) às mudanças climáticas e ao aumento das catástrofes
naturais. A agroecologia transforma a matriz energética e agrícola dependente
do petróleo, uma parte fundamental das mudanças sistêmicas necessárias para
frear as emissões.
Em terceiro lugar, a agroecologia reforça o bem comum e o coletivo. Ao
mesmo tempo em que cria as condições para uma melhor qualidade de vida para as
pessoas das zonas rurais e urbanas, a agroecologia, como pilar da soberania
alimentar e popular, estabelece que a terra, a água, as sementes e os
conhecimentos devem continuar sendo patrimônio dos povos a serviço da
humanidade.
Através da agroecologia, transformaremos o modelo hegemônico de
produção alimentar, permitindo a recuperação do ecossistema agrícola,
restabelecendo o funcionamento do metabolismo natureza-sociedade e colhendo os
produtos que alimentarão a humanidade. Como dizem os camponeses filipinos
"Kabuhanan, Kalusugan, Kalikasan” (pela economia, pela saúde e pela
natureza)”
O riso da mulher/escrava trácia insiste em ser lugar de
discernimento e crítica das formas consagradas e legitimadas de saber, de
política, de espiritualidade. Não se trata mais da abstrata “sociedade civil”.
Trata-se de uma perspectiva de classe social, de gênero e de etnias que se
afirmam e se empoderam recusando ao mesmo tempo a minoridade e subordinação da
terra e seus seres e das mulheres, pobres e etnias. Os povos da terra e do
território riem sua gargalhada pelos corredores e calçadas dos fóruns de debate
sobre filosofia, economia, crise ambiental, climática, alimentar... todas as
crises. E, riem: Kabuhanan, Kalusugan,
Kalikasan”
Voltamos à escrava trácia e seu trabalho com o poço e seus
equipamentos:
“Se se considerasse esta mulher em conjunção com a roda (una com ela)
um coração da terra, ela operaria sobre o solo, pela via dos regos da água
(veias e artérias do corpo/campo) uma acção regeneradora, terapêutica e
profiláctica: ensinar-lhe-ia a respiração e a re-circulação de ar e água, sopro
e líquido fertilizador, sangue e ânimo de um corpo terrestre que se deseja
arejado, vivificado, saudável”
Voltar para este momento do
riso da mulher da Trácia é procurar superar o exato momento em que o chamado
“pensamento ocidental” preferiu romper a busca de um conhecimento orgânico e
úmido quando recusou a mediação do riso da mulher. O texto do Teeteto apresenta
esta recusa apontando a fragilidade inútil da mulher e do riso:
“A mesma coisa se pode dizer a todos os que passam a vida a filosofar.
É certo que estes não conhecem parentes nem vizinhos, nem sabem o que eles
fazem; sabem apenas se são homens ou criaturas de outra espécie; e põem toda a
sua atenção a estudar e a descobrir o que é o homem, o que convém à sua
natureza fazer ou suportar, o que o distingue dos outros seres. Compreendes,
Teodoro, o que quero dizer?”29
O riso
da mulher não vai se sustentar por muito tempo nos argumentos do filósofo, que,
por fim, conclui que o conhecimento não responde ao riso - ...não das escravas da Trácia, ou dos
ignorantes, porque estes não se apercebem de nada...30.
O elogio do conhecimento que não conhece nem parentes nem vizinhos nem muito
menos criaturas de outras espécies e que se dedica a estudar “o homem” distinto
dos outros seres aponta numa mesma
reflexão a separação e a subordinação do homem filosófico sobre todos os outros
seres e também sobre as mulheres/escravas.
...(o) filósofo, educado no seio da liberdade e da ociosidade, não deve
ser censurado por parecer ingénuo e inútil em presença de trabalhos servis,
porque não sabe, por exemplo, arrumar uma mala de viagem, temperar comida, ou
dizer lisonjas. O outro é capaz de fazer tudo isso com habilidade e rapidez,
mas não sabe usar o manto como um homem livre, compreender a harmonia do
discurso, nem cantar a vida dos deuses e dos homens felizes.31
No riso da mulher trácia
recuperamos um lugar de suspeita e crítica de um pensamento ocidental que se
pensa universal e auto-suficiente na ruptura com o corpo das necessidades, o
corpo social e o corpo do mundo e seus “outros seres”.
A filosofia será da
libertação se submergida nas lutas populares. A filosofia escutará no riso das
trabalhadoras na busca por água seus motivos últimos e penúltimos: arrumar uma
mala, temperar comida... conquistar o manto das gentes libertadas, compreender
a harmonia de todo o mundo habitado e cantar a felicidade.
Nancy Cardoso Pereira
nancycpt@yahoo.com.br
[1]
PLATÃO, Teeteto/Crátilo (172d – 176 a), tradução: Carlos Alberto Nunes /
coordenação de Benedito Nunes. Belém: EDUFPA, 2001
[2]
Ibid.
[3]
GEBARA, Ivone, Justiça ecológica: limites e desafios, in: Tempo e Presença
Digital, ano 5, n° 21, 2010, in: www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=400&cod_boletim=22&tipo=Cr%F4nica (acesso em 22/6/2014). Para a questão do ecossocialismo
feminista, cf. PEREIRA, Nancy Cardoso.
Remover
pedras, plantar roseiras, fazer doces - por um ecossocialismo feminista. São Leopoldo: CEBI, 2009.
26 VIA
CAMPESINA, Via Campesina Tempo para Reforma Agrária,Minga/Mutirão Informativa,
in: http://movimientos.org/es/cloc/fororeformagraria/show_text.php3%3Fkey%3D6594
(acesso em 18/6/2014)
27 WALLERSTEIN,
Immanuel, 2010. “Ecologia versus Direitos de Propriedade. A terra na
economia-mundo capitalista”. JANUS.NET e-journalofInternationalRelations, N.º
1, Outono 2010janus.ual.pt/janus.net/pt/arquivo_pt/pt_vol1_n1/pt_vol1_n1_art1.html
(acesso em 18/6/2014)
29 PLATÃO,
Teeteto.
30 Ibid.
31 Ibid.
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